Uma polêmica envolvendo a construção de uma usina de dessalinização na Praia do Futuro, em Fortaleza (CE) – de onde saem 18 cabos submarinos de fibra óptica que ligam o Brasil à Europa, Estados Unidos e África, responsáveis pela conexão de internet no País --, está caminhando para um impasse de desfecho imprevisível.
A disputa teve início há dois anos, quando a estatal Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) anunciou uma Parceria Público-Privada (PPP) com o consórcio Águas de Fortaleza para construção de uma planta de dessalinização de água marinha na Praia do Futuro.
O projeto, de R$ 3,2 bilhões, prevê que a usina terá capacidade de produzir mil litros de água por segundo, vazão destinada ao macrossistema de água da capital cearense, beneficiando 720 mil pessoas.
Mas desde o seu anúncio, a construção da usina no local vem enfrentando resistência das operadoras de telecomunicações, que utilizam os cabos submarinos e operam datacenters a poucos metros da praia, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e de outros órgãos governamentais federais, além da International Cable Protection Committee (ICPC), que supervisiona os mais de 460 cabos submarinos do mundo todo.
O argumento é que a usina, quando entrar em operação, poderá afetar a infraestrutura terrestre e marítima associada aos cabos submarinos, com risco de interferir nas telecomunicações de toda a América do Sul, preocupação que deve afugentar novos investimentos.
Os cabos submarinos de fibra óptica transportam 99% do tráfego de dados e de voz que circulam pela internet e são imprescindíveis para rodar os aplicativos e serviços digitais, de streaming à telemedicina, passando pela Internet das Coisas (IoT), carro autônomo, realidade virtual, e-games e serviços financeiros, além de aplicações de Inteligência Artificial (IA).
Cada cabo costuma levar 4 pares de fibra óptica, cada fibra com a espessura de um fio de cabelo. A Praia do Futuro foi escolhida para instalá-los por estar mais próxima do continente europeu.
Mais de 90% dos dados do Brasil passam pela capital cearense antes de serem distribuídos para outras regiões, o que transformou a Praia do Futuro no segundo maior hub do mundo de conexão de fibra óptica, atrás apenas da cidade de Shima, no Japão.
Tanto a Cagece quanto o consórcio sempre alegaram que as infraestruturas da usina não apresentam nenhum risco para o funcionamento dos cabos submarinos que operam na Praia do Futuro.
"Isso está claramente demonstrado, razão pela qual mais de 20 pareceres de órgãos técnicos ambientais aprovaram a Licença Prévia para a execução do projeto", diz nota emitida pelo consórcio.
Em meio às negociações para tirar a obra do papel, o projeto original foi alterado a pedido da Anatel, ampliando de 50 para 500 metros a distância entre o ponto de captação da água do mar e os cabos submarinos.
No entanto, ao ser notificada da mudança, em agosto, a agência alegou que a alteração era apenas uma das 11 recomendações do ICPC. Em parecer técnico emitido no dia 15 de dezembro, a Anatel reforçou sua objeção à obra, sugerindo que fosse feita em outra praia.
Reviravolta
Dias após a divulgação do parecer técnico da Anatel, o presidente da Cagece, Neuri Freitas, postou um artigo no site da estatal, anunciando que o braço estadual da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) havia emitido uma autorização e que a obra teria início em março de 2024, com previsão de conclusão em 2026.
No artigo, Freitas ainda acusou as empresas de telecomunicações de “privatizar a Praia do Futuro, formando uma reserva de mercado, em nome de um lucro futuro, com pouca preocupação com o social”.
O anúncio causou surpresa e, no dia seguinte, por meio de nota, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do qual a SPU faz parte, informou que "a construção da Usina de Dessalinização na Praia do Futuro ainda se encontra em análise no âmbito da Secretaria do Patrimônio da União".
A nota reforça que qualquer decisão sobre esse caso vai exigir análise técnica e jurídica do mérito, envolvendo não apenas as unidades do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
"Por se tratar de obra em área com presença de infraestrutura crítica de telecomunicações, deverão ser consultados outros órgãos e as instâncias colegiadas competentes no Governo Federal, com o intuito de compatibilizar o uso dos bens públicos entre os diferentes empreendimentos", diz a nota.
A estatal de água cearense respondeu ao governo federal em tom conciliatório, informando que irá analisar e responder todos os questionamentos colocados pela Anatel.
"A Cagece deverá providenciar complemento ao projeto apresentando novos estudos, avaliações e planejamento mais detalhado e específico de gestão de riscos, quanto à infraestrutura”, diz a nota, acrescentando que “a apresentação desse complemento ao projeto provocará uma reanálise célere por parte da Agência reguladora”.
A Anatel, no entanto, deverá manter a objeção à obra. Especialistas do setor reforçam que a construção da usina de dessalinização perto de um hub de telecomunicações pode trazer riscos, tanto para o meio ambiente quanto para a infraestrutura.
“A usina pode interferir no campo eletromagnético do cabo óptico, gerando ruídos, distorções ou perdas de sinal que podem afetar a velocidade, a qualidade ou a segurança da comunicação de dados”, afirmou ao NeoFeed, sob condição de anonimato, o executivo de uma empresa de telecomunicação que opera um cabo submarino na Praia do Futuro.
Segundo ele, a usina pode competir com o datacenter ou o cabo óptico pelo uso da energia elétrica, da água ou do espaço, "aumentando os custos operacionais, reduzindo a eficiência ou limitando a expansão dessas infraestruturas”.
As grandes teles, por sua vez, já deixaram claro que não vão aceitar a realização da obra na Praia do Futuro e pretendem judicializar a questão, se for necessário. Segundo elas, a tendência é que a convivência entre a usina e os cabos submarinos inevitavelmente deverá apresentar problemas a curto e a médio prazo.