Não há uma frase simples para definir o legado de Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos que morreu aos 100 anos na madrugada de quinta-feira, dia 30 de novembro, em sua casa, em Connecticut.
Nascido na Alemanha, de uma família judia que emigrou para os EUA em 1938, Kissinger serviu ao governo americano por apenas oito anos, entre 1969 e 1977, como secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional dos governos de Richard Nixon e Gerald Ford.
Mas manteve sua influência sobre todos os presidentes americanos que se seguiram, ao longo de 50 anos. Kissinger foi muito mais do que de um dos mentores da geopolítica americana da Guerra Fria e no mundo pós-queda do Muro de Berlim.
Catedrático da Universidade Harvard, foi um intelectual brilhante, com vasta obra sobre diplomacia, geopolítica e segurança global, e um consultor requisitado por empresas e governantes estrangeiros por sua habilidade em influenciar os círculos do poder dentro e fora dos EUA.
A rigor, Kissinger ajudou a moldar a política externa americana em relação à União Soviética no auge da Guerra Fria, com todos os excessos contraditórios que marcaram esse período.
Boa parte de sua biografia política, como é previsível, ficará marcada pela sua atuação no governo americano nos anos 1970, quando os Estados Unidos mergulharam no atoleiro da Guerra do Vietnã (1959-1975) e, na sequência, se aproximaram da China, até então um país miserável e isolado, que Kissinger sempre via como um trunfo contra a União Soviética (com quem a China estava rompida) na Guerra Fria.
Conhecida como realpolitik, a política americana da Guerra Fria privilegiava os interesses dos EUA e das potências ocidentais acima da democracia e direitos humanos, os outros temas usados pela propaganda americana contra o comunismo soviético.
Assim, Kissinger aconselhou Nixon e Ford a lançarem campanhas anticomunistas na Ásia, África e América Latina, que levaram os EUA a promover massacres no Camboja e no Laos, durante a Guerra do Vietnã, e a apoiar golpes militares contra governos democraticamente eleitos no Chile e na Argentina na década de 1970 ou a derrubar ditaduras africanas que se aproximavam da URSS.
Numa mostra de como a Guerra Fria ditava as regras do jogo político, Kissinger ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1973, juntamente com o líder vietnamita Le Duc Tho, por manter conversações diplomáticas secretas que forjaram os Acordos de Paz de Paris, encerrando a campanha militar dos EUA no Sudeste Asiático.
Le Duc Tho recusou o prêmio, dizendo que a paz não foi alcançada. Kissinger aceitou o seu prêmio “com humildade”, em meio a uma campanha contra ele por críticos que pediam seu indiciamento por crimes de guerra por sugerir operações militares americanas que se converteram em massacres no Sudeste Asiático.
“Kissinger foi um personagem marcante e muito controvertido, pois ganhou o prêmio Nobel da Paz e foi muito criticado por apoiar ditadores e efeitos colaterais, com mortes de civis, em guerras”, afirma Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington.
Segundo ele, Kissinger defendeu acima de tudo o interesse nacional dos EUA. “Seu feito mais importante foram os entendimentos com a liderança chinesa para o estabelecimento das relações diplomáticas com Pequim e o afastamento da China da União Soviética”, diz Barbosa. “O pior foi o papel na guerra do Vietnã e o bombardeio do Camboja.”
A “Carta China”
Do seu período no poder, sua atuação na aproximação com a China foi, de longe, a que mais influenciou a geopolítica global.
Enviado secretamente pelo então presidente Nixon para restabelecer as ligações com o país após 20 anos sem nenhum contato, Kissinger costurou o restabelecimento de relações diplomáticas plenas entre Washington e Pequim após a morte do líder chinês Mao Tsé-Tung, em 1976.
Seu trabalho diplomático junto a Deng Xiaoping, sucessor de Mao, foi essencial por inclinar o equilíbrio global contra a União Soviética e a acelerar a integração de Pequim na economia internacional.
“Como tantos visitantes ao longo dos séculos, passei a admirar o povo chinês, sua persistência, sua sutileza, seu apego à família, bem como a cultura que os chineses representam", conta Kissinger em seu livro de 2011 Sobre a China, país que visitou por mais de 50 vezes durante o período em que negociava com Pequim.
Em 1979, quando o então líder Deng Xiaoping abriu a economia do país ao Ocidente, com apoio de Kissinger, a China era uma nação pobre e isolada do mundo.
Seu Produto Interno Bruto (PIB) representava um décimo do americano, e apenas 20% do japonês. O índice de desenvolvimento humano (IDH) era semelhante ao atual de Angola, com 80% da população vivendo no campo. Hoje a China é responsável por 21% do PIB e um terço do comércio global.
Fora do poder, Kissinger visitou a China outras 50 vezes, a última em julho, já com 100 anos, quando foi recebido pelo presidente Xi Jinping – que, ao saber da morte de Kissinger, “um velho amigo”, enviou condolências ao presidente Joe Biden.
“Tanto a China como os EUA deveriam herdar e levar adiante a visão estratégica, a coragem política e a sabedoria diplomática do Dr. Kissinger”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin.
Mais recentemente, Kissinger disse que a China representa um desafio monumental para os EUA, que nunca tiveram de enfrentar um concorrente de igual poder e recursos, advertindo que o governo americano precisa se abster de ser negligentemente adversário em relação a Pequim e, em vez disso, prosseguir o diálogo.
Legado intelectual
O historiador Niall Ferguson, que assina uma excelente biografia do ex-secretário de Estado dos EUA – Kissinger 1923-1968: o Idealista, primeiro de dois volumes, o segundo ainda inédito - traz ótimos insights de como Kissinger via o mundo.
Sobre a política interna, por exemplo, Kissinger observou que “noventa por cento dos políticos dão aos outros 10% uma má reputação”.
Ferguson também captou sua visão sobre o excesso de confiança: “Para ter certeza absoluta sobre algo, é preciso saber tudo ou nada sobre isso”. E também sobre a tomada de decisões: “Cada sucesso apenas compra um ingresso para um problema mais difícil.”
Sua opinião mais curiosa, porém, é sobre as relações de gênero: “Ninguém jamais vencerá a Batalha dos Sexos. Há muita confraternização com o inimigo.”
Em entrevistas, Ferguson diz que Kissinger enfrentou duas ondas de críticas – uma após a queda de Nixon e a outra após o colapso da União Soviética em 1991, quando os perigos da aniquilação nuclear diminuíram.
Após a queda do Muro de Berlim, porém, Kissinger prosseguiu como uma impressionante produção intelectual, escrevendo dezenas de livros e participando ativamente do debate sobre os rumos da economia global.
Além do clássico Diplomacia, lançado em 2012 – que conta ao longo de 850 páginas a história da diplomacia mundial até os dias de hoje --, suas obras mais recentes são importantes por trazer sua visão do mundo pós-globalização.
No livro Ordem Mundial, lançado em 2014, Kissinger expôs as suas opiniões num mundo cada vez mais dividido e interdependente. Em 2022, quando tinha quase 100 anos, publicou Liderança: Seis Estudos em Estratégia Mundial, no qual traçou o perfil dos líderes pós-Segunda Guerra Mundial que chamou de visionários.
Kissinger temia que a Internet estaria causando um efeito corrosivo sobre o intelecto popular e que a modernidade fosse uma incubadora deficiente para líderes perspicazes. “Ler um livro complexo com atenção e interagir com ele de forma crítica tornou-se um ato tão contracultural quanto memorizar um poema épico na era anterior da impressão”, escreveu ele em seu livro de 2022.
No ano passado, ao falar sobre a invasão russa à Ucrânia, disse que foi um erro o Ocidente apresentar à Ucrânia a possibilidade de aderir à Otan (aliança militar ocidental), argumentando que isso seria uma provocação ao presidente russo Vladimir Putin.
Segundo ele, a invasão da Rússia impôs ao Ocidente a responsabilidade de ajudar a defender a Ucrânia e, após uma paz negociada, tratá-la como membro da aliança.
“Estamos à beira de uma guerra com a Rússia e a China em questões que criamos parcialmente, sem qualquer noção de como isto vai acabar ou aonde deverá levar”, advertiu em entrevista ao The Wall Street Journal, uma de suas últimas, em 2022.