Além das vitórias, títulos e recordes que acumulou como jogador de futebol, Pelé tem outro feito inigualável que merece ser inscrito em sua biografia: o de maior embaixador do Brasil no mundo que o país já teve.

Pelé sempre fez questão de divulgar o país no exterior, a ponto de não ser exagero afirmar que foi o rei do futebol quem fez o Brasil ficar conhecido no planeta, e não o contrário - como costuma ocorrer com qualquer personalidade que ganha fama mundial.

Ao estrear na Copa do Mundo da Suécia, em 1958, quando tinha apenas 17 anos, o café era a maior referência do Brasil no exterior. Desde então, passou a ser Pelé, cujo sucesso nos gramados ao longo de 20 anos de carreira ultrapassou as fronteiras do futebol e se estendeu até os dias atuais, 45 anos após pendurar as chuteiras.

Até interromper as viagens internacionais por causa de problemas de saúde, Pelé jamais teve a oportunidade de sair do hotel, fazer uma caminhada ou visitar os lugares turísticos de qualquer cidade no exterior que tenha pisado, seja na China, na Nova Zelândia, em algum país da África ou na Islândia.

Durante décadas, o assédio sempre foi por um autógrafo ou uma foto ao lado do rei. “O Pelé é um brasileiro por esses acasos da natureza, é um cidadão do mundo, um patrimônio da humanidade”, afirma o jornalista Antero Greco, que acompanhou de perto boa parte da carreira do rei.

“Certa vez, fui a trabalho para a Indonésia e, ao desembarcar, o guarda da alfândega olhou meu passaporte e falou: ‘Pelé, Pelé, Pelé’. Era assim em épocas distintas, nos anos 80, 90 e 2000, e em países diferentes”, acrescenta Greco.

Popularidade

O melhor exemplo do papel de embaixador do Brasil exercido por Pelé ocorreu em outubro de 1977, em Nova York, logo após pendurar as chuteiras no New York Cosmos.

A visita na sede da Organização das Nações Unidas, onde receberia o título de Cidadão do Mundo, é até hoje uma das mais tumultuadas da história da entidade.

O caos teve início assim que Pelé entrou no prédio. Ainda na calçada, o ex-chanceler alemão Willy Brandt, que acabara de sair do carro, correu para cumprimentar o rei.

No plenário, os embaixadores de mais de 150 países deixaram a diplomacia de lado e passaram a trocar empurrões para conseguir um autógrafo do rei. Ao discursar, Pelé mostrou-se um craque também na oratória ao agradecer o título de cidadão do mundo.

“Olha, eu chorei de emoção quando fui campeão do mundo pela primeira vez na Suécia, em 1958, no Chile em 1962 e no México, quando ganhamos o tri. Mas esse foi o maior título que já ganhei: não disputei com ninguém, não precisei vencer nenhum adversário.” O plenário quase veio abaixo.

O então embaixador do Brasil nas Nações Unidas, JB Pinheiro, presente na sessão, resumiu a importância do rei. “Pelé jogou futebol por 22 anos e, durante aquele tempo, fez mais para promover a amizade e a fraternidade mundial do que qualquer outro embaixador.”

Outras situações reforçaram o incrível carisma que o rei sempre despertou nos quatro cantos do mundo. Pelé conseguiu a proeza de adiar o início de uma guerra e interromper outra.

O cessar-fogo ocorreu em 1969, quando o Santos excursionava na África. Para disputar o amistoso na República do Congo, o avião do time deveria desembarcar no vizinho Congo Belga - hoje conhecido por República Democrática do Congo -, que estava mergulhado numa guerra civil.

Os guerrilheiros que lutavam contra o governo do Congo Belga só aceitaram permitir uma trégua para a passagem de fronteira se o Santos de Pelé disputasse na sequência duas partidas contra uma seleção local. Assim foi feito e a guerra civil teve uma semana de paz.

O outro episódio ocorreu em 1975. Pelé havia se aposentado do Santos e ainda não havia se transferido ao Cosmos, quando participou de um amistoso em Beirute, no Líbano. O país estava à beira da guerra civil, num clima de tensão envolvendo milícias cristãs, muçulmanas e forças israelenses.

O temor de cancelamento da partida falou mais alto: após garantias de todos os lados envolvidos, a partida aconteceu em um estádio lotado de torcedores compostos de forças inimigas, gritando “God, God, God” para Pelé.

Uma semana depois, a guerra civil libanesa teve início, se estendendo por 15 anos.

Celebridade

A construção do mito global Pelé teve um grande impulso pelo fato de ele ter estreado muito jovem numa Copa do Mundo na Europa, o grande centro do futebol da época. Com apenas 17 anos, era um desconhecido e só passou a ser escalado no terceiro jogo da Seleção Brasileira.

Pelé estraçalhou os adversários. Marcou seis gols no Mundial sendo dois na final, contra o time da casa, a Suécia - entre eles, um dos mais bonitos da história das Copas.

Os europeus ficaram impressionados e o desenvolvimento da carreira de Pelé na sequência coincidiu com o início da era da televisão.

Além dos Mundiais que participou depois, até a Copa do México, em 1970, Pelé disputou cerca de 350 jogos amistosos pelo Santos no Brasil, na Europa, nas Américas e na África.

Os africanos, em especial, se identificaram coletivamente com a trajetória de um negro alçado ao posto de maior jogador do mundo.

As atuações de Pelé tiveram forte repercussão no contexto da descolonização dos anos 60 e 70 na África e da emergência do Terceiro Mundo no cenário mundial. Pelé sempre foi cobrado, principalmente no Brasil, por não ter atuação militante no movimento negro.

O rei nunca escondeu o desconforto de abordar temas políticos e sociais, em especial o racismo, talvez pelo fato de que a cor da sua pele não o impediu de virar um ídolo inquestionável nos quatros cantos do mundo. Mesmo os líderes negros que lutaram contra o racismo – como Ali, Mandela e Obama, entre outros – sempre elogiaram o rei pela forma como usou o esporte para unir os povos.

“Pelé costumava rebater essa acusação dizendo que a melhor maneira dele enfrentar situações de racismo era jogando futebol, dando o máximo”, lembra o escritor Maurício Oliveira, autor “1283 – Pelé”, biografia do rei cujo título faz menção ao número de gols marcados na carreira.

O ambiente mais hostil à cor de sua pele que enfrentou num estádio foi na decisão da Libertadores de 1963, entre Santos e o Boca Juniors, na Argentina. Pelé foi chamado pelos torcedores argentinos de “negro sujo” e “macaco” boa parte do jogo, no superlotado estádio da Bombonera.

Com uma atuação antológica do rei, o Santos venceu por 2x1, de virada. Pelé deu o passe para um gol e fez o outro. Comemorou socando o ar e soltando palavrões para a torcida.

“Nenhum negro no mundo contribuiu mais para varrer as barreiras raciais do que Pelé”, escreveu o jornalista Mario Filho (1908-1966), no livro 'A história do negro no futebol brasileiro'. “Ele se tornou o maior ídolo do esporte mais popular do mundo. Quem torce por ele, torce para um negro.”

Popstar

Ao longo de sua trajetória, Pelé foi afagado por reis, artistas, políticos e estadistas, de Mohammed Ali a Nelson Mandela.

Quando veio ao Brasil em 2019, já como ex-presidente dos EUA, Barack Obama avisou: “Quero conhecer a única lenda viva que ainda não conheço: Pelé”.

A passagem do rei pelo futebol norte-americano, entre 1975 e 1977, rompeu a última barreira de popularidade de Pelé em um país. Os EUA sempre deram preferência a outros esportes, mas coube a ele virar o jogo.

Pelé, que já tinha parado de jogar profissionalmente quando recebeu o convite do Cosmos, relutou em aceitar a proposta milionária da Warner.

O então secretário de Estado Henry Kissinger, nascido na Alemanha e fanático por futebol, chegou a enviar um telegrama ao chanceler brasileiro Antonio Azeredo da Silveira, pedindo ajuda para convencer Pelé. O argumento era que a contratação contribuiria “para estreitar as relações entre os países”.

O chanceler brasileiro não chegou a falar com o rei, que acabou aceitando o convite. Pelé ajudou a transformar o soccer – como os americanos chama o nosso futebol – num esporte popular.

“O Pelé se transformou em uma instituição”, disse anos depois Kissinger. “Até os torcedores que não o viram jogar sentem de alguma forma que ele faz parte de suas vidas. Pelé fez a transição do superstar para a figura mítica” acrescentou.

Nos EUA, sempre foi tratado como rei. Todos os presidentes americanos desde Richard Nixon posaram ao seu lado.

Em outubro de 1982, Pelé foi recebido na Casa Branca. “Muito prazer, eu sou Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos. Mas você não precisa se apresentar, porque o mundo inteiro sabe quem é Pelé”, disse Reagan.

Pelé com o presidente dos EUA, Ronald Reagan

Mas foi o período em que viveu em Nova York que o rei desfrutou de sua majestade nos EUA ao lado de celebridades. O multiartista pop Andy Warhol (1928-1987), famoso por ter profetizado que todos seriam “mundialmente famosos por 15 minutos”, mudou de ideia ao ser apresentado ao rei. “Pelé é um dos poucos craques que contrariam minha tese. Em vez de 15 minutos de fama, terá 15 séculos”, disse.

Outro que se curvou ao rei foi John Lennon. Os dois se encontraram por acaso na escola de línguas de Nova York onde Pelé aprendia inglês e Lennon, casado com Yoko Ono, o japonês. Lennon contou que, durante a Copa de 1966, na Inglaterra, os Beatles tentaram fazer uma visita à concentração da delegação brasileira em Liverpool, antes do jogo contra a Bulgária, para conhecer o rei.

Um dos dirigentes da delegação, depois identificado como Carlos Nascimento, porém, barrou a visita “daqueles cabeludos”. Pelé disse que não sabia dessa tentativa e, depois de ser informado por Lennon, passou a repetir a história com uma ponta de orgulho.

Talvez por sua popularidade ter aumentado cada vez mais ao longo dos anos, enquanto os tempos de jogador ficavam para trás, Pelé viu sua trajetória inigualável ser reconhecida de forma tardia: foi escolhido Atleta do Século pelo jornal francês L’Equipe em 1981, nomeado embaixador da Boa Vontade pela UNESCO, em 1995, e Maior Jogador do Século, pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS), em 2000.

Em 1997, recebeu da rainha Elizabeth II da Inglaterra o título de Cavaleiro do Império Britânico. O brasileiro foi o primeiro esportista não-britânico a receber o título de Sir.

“Pelé é um dos poucos seres humanos que se tornaram mais influentes, mais populares, mais famosos e mais lendários depois de seus dias de glória do que quando jogava”, escreveu o escritor britânico Harry Harris, autor de uma das dezenas de biografias já feitas sobre o rei.

Uma explicação para essa fama inesgotável ao longo do tempo pode ter razões meramente futebolísticas – jamais surgiu um jogador tão completo quanto Pelé – ou atribuídas ao seu carisma, que seguiu contagiando o mundo décadas após abandonar os gramados.

Seja qual for a explicação, a história já decretou: diferentemente do mortal Edson Arantes do Nascimento, que acaba de nos deixar, Pelé, o rei do futebol, é eterno.