Após enfrentar um período de turbulência nas últimas semanas - com o escândalo do fracassado lançamento da criptomoeda $LIBRA e um desgaste político com a repressão violenta a um protesto de aposentados -, o presidente da Argentina, Javier Milei, comemorou na quinta-feira, 20 de março, uma importante vitória no Congresso, obtida na véspera, para avançar em um acordo de refinanciamento da dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Milei demonstrou habilidade política para driblar a falta de maioria na Câmara dos Deputados e no Senado e aprovar o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que autoriza a negociação com o Fundo: em vez de um projeto de lei – que exigiria aprovação nas duas Casas -, o governo enviou uma ordem executiva, cuja aprovação na Câmara, com ajuda de partidos de centro-direita, foi suficiente para passar o DNU.

O decreto foi aprovado por margem apertada - 129 votos a favor, 108 rejeições e 6 abstenções -, com o Congresso cercado por aposentados, que protestavam do lado de fora durante uma sessão que avançou a noite.

O próximo passo é que os funcionários do FMI anunciem um acordo de nível de equipe com a Argentina, essencial para o país receber dinheiro novo e fortalecer as reservas internacionais e ajudar Milei a colocar em ação a esperada reforma cambial.

O montante a ser obtido ainda é desconhecido, mas se somará aos US$ 44 bilhões (cerca de R$ 250 bilhões, em valores atuais) devidos pela Argentina em 2018 e deverá ser utilizado para cancelar dívidas com o Banco Central (BCRA) e pagar obrigações do próprio FMI.

O processo com o Fundo deve ser finalizado até o fim de abril, mas as negociações no Congresso para a aprovação do DNU e a expectativa de uma desvalorização do peso, que seria exigida pelo FMI em troca de novo empréstimo, geraram uma corrida ao dólar.

Desde o início da semana, o BC argentino queimou mais de US$ 500 milhões de reservas – daí o alívio da Casa Rosada com a aprovação do decreto, evitando cair num período de mais especulação em relação à política cambial.

As medidas de Milei

Milei obteve vitórias incontestáveis nos 15 meses em que ocupa o cargo. Conseguiu equilibrar as contas públicas após anos no vermelho, por meio de ajuste fiscal equivalente a 5% do Produto Interno Bruto (PIB), com corte de 35% dos gastos do governo, incluindo todos os subsídios.

As medidas ajudaram a derrubar a inflação mensal de 25,5% no final de 2023 para 2,4% em fevereiro, além de transformar décadas de déficit fiscal em superávit. Tudo isso sem aumento de impostos, com minoria no Congresso e em meio a dois anos de recessão.

O preço de ajuste, porém, foi pesado: a economia sofreu uma contração de 1,8% em 2024 e o consumo está em queda há 14 meses, o que elevou o índice de pobreza para 52% da população.

A questão cambial continua sendo a parte incompleta da agenda reformista de Milei. O peso está sobrevalorizado - a Argentina voltou a ficar cara porque a estratégia do governo de adotar um regime cambial com desvalorizações mensais controladas e graduais na faixa de 2%, conhecida no mercado financeiro como crawling peg, não tem acompanhado a inflação.

Num contexto de maiores reservas após um acordo com o FMI, Milei poderá entrar num processo gradual de desmantelar os controles de capital e evoluir para um sistema de câmbio mais flexível.

Sua resistência em desvalorizar a moeda já também atende a um fator político – Milei prefere esperar as eleições parlamentares de outubro, na qual espera aumentar a representação no Congresso, antes de correr risco de uma incerteza com o dólar.

Além disso, soltar o câmbio quando as reservas do Banco Central ainda são limitadas pode afetar seu programa econômico. Milei, porém, aposta nas projeções de crescimento do PIB de 5,7% para 2025.

Política cambial reprovada

Até mesmo analistas alinhados com o programa econômico de Milei reconhecem que a normalização do mercado de câmbio é uma das questões pendentes do atual governo.

Hernán Lacunza, que foi ministro da Economia por um breve período de quatro meses em 2019 durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019), alertou sobre o dólar.

“Com essa taxa de câmbio, há mais demanda do que oferta, e é por isso que as restrições não estão sendo suspensas”, disse Lacunza numa palestra no Rotary Club, horas antes da votação do DNU.

“Isso acontece porque a reforma cambial foi adiada por 15 meses", acrescentou o ex-ministro, que deu nota 10 em política fiscal, 7 em política monetária e 4 em política cambial para a gestão Milei.

Segundo ele, o atual governo errou ao iniciar o processo de abertura da economia com uma taxa de câmbio inadequada. Para avançar, ele afirmou que o desmantelamento das restrições deve ser gradual: "Devemos testar as operações que estão atualmente restritas para ver que valor emerge delas.”

Milei precisava do sinal verde para negociar com o FMI para se recuperar do desgaste político que começou a manchar seu governo nas últimas semanas.

No mês passado, o presidente argentino virou protagonista de um escândalo envolvendo a criptomoeda $Libra. Lançada em 14 de fevereiro, a memecoin foi promovida por Milei em sua conta pessoal na rede X. A promessa era de que seria um projeto de financiamento para pequenas empresas argentinas, incentivando a economia.

Poucas horas após a divulgação, a Libra perdeu valor drasticamente, causando prejuízos a cerca de 40 mil investidores que acreditaram na promoção do presidente. Milei se desculpou, afirmando que não falava da criptomoeda “como um chefe de Estado”, apagou o post, mas o mercado reagiu negativamente.

Quatro dias depois, o caso aumentou em proporção, depois que Hayden Davis, uma figura-chave por trás do token $LIBRA, se gabou, em uma mensagem de texto para outro investidor, de estar pagando Karina Milei (irmã e assessora pessoal do presidente) para que ela convencesse o líder argentino a seguir suas instruções.

O escândalo envolvendo o caso da criptomoeda já gerou mais de 100 denúncias formais contra Milei na Justiça argentina. Por enquanto, as ameaças de impeachment no Congresso não prosperaram.

Mas, nesta semana, foi aberta uma ação civil coletiva representando mais de 200 vítimas da criptomoeda à Suprema Corte de Nova York, nos Estados Unidos. O processo não acusa o presidente Milei —ainda que o descreva como um personagem central para essa fraude.

Na quarta-feira da semana passada, 12 de março, o presidente argentino já havia sofrido desgaste após ordenar uma repressão violenta contra um protesto de aposentados, que reivindicam reajustes nas pensões e alegam que perderam poder de compra devido à inflação e às recentes medidas econômicas do governo. Até torcidas organizadas de times argentinos, os “barras”, engordaram o protesto.

Cerca de 150 pessoas foram detidas e mais de uma dezena saiu ferida – incluindo um fotojornalista que continua internado em estado grave e uma mulher de 81 anos brutalmente agredida por um policial. Milei acusou os manifestantes de serem “comunistas”.