A crise causada pela falta de acordo entre líderes democratas e republicanos do Congresso dos Estados Unidos para aprovar a prorrogação do financiamento do governo americano até o início do próximo ano fiscal, em 1º de outubro, atingiu o ápice na terça-feira, 30 de setembro – último dia de vigência do atual Orçamento federal anual.
O risco de o impasse permanecer até as 23h59 desta terça era o de causar uma espécie de paralisação da máquina pública a partir do dia seguinte, impedindo o governo federal de pagar salários de funcionários públicos, manutenção de ativos federais e saldar dívidas de fornecedores, entre outras consequências.
Quando o governo dos EUA caminha para uma paralisação parcial, um instinto natural é antecipar consequências terríveis para os mercados financeiros e para a economia. A história, no entanto, não comprova isso – tanto que as bolsas americanas praticamente ignoraram eventuais riscos, com o Dow Jones Industrial Average, o S&P 500 e o Nasdaq Composite negociavam, ao longo do dia, com leves altas.
Para cada semana de paralisação, economistas estimam o declínio do PIB trimestral real, em relação ao seu nível normal, entre 0,1% e 0,3%. Um mês de paralisação reduziria o PIB trimestral real em 0,5% a 1,5%.
Um detalhe chama a atenção na atual crise: a indiferença, que vai do mercado financeiro ao mundo político americano, em relação a dois temas associados ao impasse em torno do financiamento do governo — o desequilíbrio fiscal e o aumento do endividamento público dos EUA.
Esse descontrole das contas públicas, que vem das últimas administrações democratas e republicanas, não permeou o debate, mesmo com a dívida pública dos EUA já ultrapassando 120% do PIB.
O déficit orçamentário de 2024 dos EUA foi de 6,4% do PIB, o terceiro maior da história americana, atrás apenas dos anos de pandemia (2020 e 2021). Previsões sugerem que o déficit excederá 7% do PIB durante o restante do mandato do presidente Donald Trump.
O pouco alarde da atual crise talvez se explique pelo fato de o chamado shutdown não ser novidade na política americana. Houve 14 fechamentos desde 1980, e a polarização nos últimos anos estimulou os dois partidos a empurrarem até o limite o prazo para concessões.
Houve três desses fechamentos durante o primeiro mandato de Trump, incluindo o mais longo da história, com 36 dias, encerrado em janeiro de 2019, causado por desentendimentos sobre o financiamento de um muro na fronteira com o México.
O impasse ameaça consequências de longo alcance mais para os cerca de 2 milhões de funcionários públicos federais do que para a economia como um todo. Isso porque despesas públicas essenciais, como previdência social, controle de tráfego aéreo e Forças Armadas, são obrigatórias e continuam em operação.
Outras despesas discricionárias (27% do gasto total do governo federal) têm consequências significativas, com suspensão de serviços não essenciais, a menos que o Congresso aprove uma resolução contínua, que autoriza temporariamente certos gastos por um período especificado.
É essa resolução que pautou as negociações políticas no último dia de prazo, com os partidos mais preocupados em obter ganhos da situação do que com a higidez das contas públicas.
Os republicanos controlam as duas casas do Congresso, mas no Senado não têm os 60 votos necessários para aprovar um projeto de lei de gastos. Os democratas, paralisados pelo espaço político ocupado por Trump, tentavam no último dia aproveitar a rara chance para obter concessões na área de saúde, alvo do facão do governo.
A oposição a Trump pede a extensão dos créditos fiscais que tornam o seguro-saúde mais barato para milhões de americanos — prestes a expirar — e a reversão dos cortes no Medicaid feitos pelo governo. Também se opõem aos cortes nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH).
Trump, por sua vez, ameaça usar uma possível paralisação para demitir permanentemente milhares de funcionários federais, dentro de sua política de reduzir drasticamente o tamanho do governo.
Títulos e dívida
Apesar de a crise parecer restrita ao mundo político, a demora para fechar um acordo sobre o teto da dívida teria consequências econômicas maiores do que as de uma paralisação.
Isso impediria o governo de assumir novos empréstimos líquidos. As taxas de juros dos títulos do governo americano aumentariam, pois os investidores os considerariam de maior risco, e uma paralisação prolongada também estimularia os temores de um calote dos títulos soberanos dos EUA.
Os líderes políticos preferem apostar que os eleitores americanos foram condicionados a nunca lidar com sacrifícios envolvendo contas públicas.
Desde que o governo Bill Clinton equilibrou o orçamento pela última vez, no fim dos anos 1990, líderes republicanos e democratas têm incorrido em déficits cada vez maiores, aparentemente sem consequências. E se houver recessão, crise financeira ou pandemia, os eleitores esperam obter a melhor recuperação que o dinheiro pode comprar – a robustez da economia americana.
O que mudou é que as taxas de juros reais de longo prazo hoje são muito mais altas do que eram mais recentemente. Entre 2012 e 2021, o rendimento dos títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos indexados à inflação ficou em torno de zero. Hoje, está acima de 2% e, daqui para frente, os pagamentos de juros provavelmente serão uma força cada vez maior, elevando a relação dívida/PIB dos EUA.
Paralisações governamentais e crises de teto da dívida são fenômenos distintos, apesar das semelhanças. Ambas envolvem fracassos do Congresso em aprovar leis necessárias à continuidade do trabalho governamental. Mas impasses sobre o teto da dívida são muito mais perigosos.
Na última batalha sobre o teto da dívida, em julho, o Congresso aumentou o limite em US$ 5 trilhões — dando ao Tesouro margem para tomar empréstimos por mais um ou dois anos.
Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI e professor da Universidade Harvard, adverte que os EUA caminham para uma crise fiscal e os partidos Republicano e Democrata não demonstram disposição para medidas eficazes, cogitando até um calote.
Segundo ele, ambos os partidos tendem ao populismo econômico, inclusive quanto à independência do Federal Reserve (Fed), o banco central americano.
“É mais provável que os Estados Unidos enfrentem problemas fiscais nos próximos quatro ou cinco anos”, afirmou Rogoff esta semana, durante o evento Macro Vision, promovido pelo Itaú BBA. “Não vejo a estratégia ortodoxa — corte de gastos e aumento de impostos — sendo considerada.”
Alex Agostini, economista-chefe da agência de risco Austing Rating, também aposta no aumento do desequilíbrio das contas públicas, em especial sob o atual governo.
“Trump briga frequentemente com o banco central americano, aplica tarifas e corta impostos, o resultado disso é expansão fiscal, o que significa que o aumento do déficit orçamentário e da dívida pública vai continuar”, diz.
Segundo ele, esse cenário tende a se prolongar, efeito de um processo de desgaste, com os EUA perdendo o protagonismo do dólar, sua moeda forte, com a China ganhando espaço e se desvinculando do dólar.
“A maioria dos agentes acredita que a dívida dos EUA é totalmente financiável pela poupança estrangeira; de fato, ainda é”, acrescenta Agostini, referindo-se à segurança dos títulos do Tesouro dos EUA. “Contudo, houve recuo da nota de crédito dos EUA em duas agências, e vários países têm diminuído a parcela de títulos americanos na composição de seus ativos."
Agostini prevê um prazo não muito distante para a bomba da dívida americana explodir: "Isso pode se tornar uma preocupação maior perto de 2030.”