O mundo das tecnologias digitais está em constante evolução. E parte integrante desse processo são algumas ondas de tecnologias superestimadas, que geram um imenso hype de mercado, atraindo atenção de investidores que aportam bilhões de dólares. Algumas aparecem e em pouco tempo viram fumaça. Outras persistem e se consolidam.
Das que praticamente viraram pó vimos a onda dos patinetes elétricos que durou pouco. Vemos agora que os veículos autônomos estão caindo na real e aquele objetivo de um carro inteiramente autônomo, nível 5, rodando pelas ruas de cidades populosas, com seus trânsitos caóticos, está se transformando, de forma mais realista, em se alcançar um nível 4, e daqui a muito anos.
Os drones para entregas de pizza na última milha nem chegaram a decolar de verdade. Estão há anos nas experimentações. O Hyperloop saiu de cena. Mas logo que uma tecnologia deixa de chamar atenção, surge outra.
Agora, falamos de eVTOL (electric vertical take off and landing), conhecidos também como carros voadores e chamados de o "Uber dos céus". Pode ser uma boa ideia, mas será factível? Será que mais uma vez estamos superestimando seu potencial disruptivo e subestimando as pedras no caminho?
Hoje, estamos naquela fase da emoção, onde a tecnologia é vista como solução para os problemas, que talvez nem sejam problemas. As otimistas notícias atuais são que, em alguns anos, 5 a 10 milhões de pessoas voarão em centenas desses aparelhos nas principais cidades do mundo.
O choque de realidade acontecerá quando nos depararmos com o mundo real e seus desafios. Vamos debater alguns pontos aqui. É uma proposta de debate para chegarmos a alguma conclusão mais racional e termos um mínimo de informações e menos emoção para apostarmos ou não na tecnologia.
No cenário atual, é indiscutível que esse emergente mercado de táxis aéreos eVTOL está chamando muita atenção e, consequentemente, uma avalanche de investimentos. Literalmente, centenas de empresas estão disputando o mercado. Claro que não haverá espaço para todas. Mas, tirando os vídeos atrativos de protótipos, comunicados de imprensa e esforços de angariação de fundos SPAC, como sabemos quais estão realmente decolando e se chegarão a decolar?
A maioria das iniciativas é de startups, embora algumas grandes empresas fabricantes de aeronaves estão colocando seu dedinho na água, para testar a temperatura, como Airbus, Boeing e Embraer. Mas, quanto as startups, para termos uma ideia de quais terão um mínimo de chance de sobrevida precisamos analisar alguns aspectos.
O primeiro é o financiamento. Quanto de investimento a empresa captou e consegue captar? Eles têm o suficiente para completar deadlines específicos em seu desenvolvimento para justificar novos aportes? Eles têm o suficiente para construir um protótipo e não apenas vídeos e animações? Eles têm o suficiente para obter as futuras certificações? Eles têm o suficiente para colocar em operação de forma sustentável e lucrativa?
O segundo fator é a sua equipe. Não apenas o CEO, mas a equipe é da área aeroespacial? Eles estão familiarizados com a indústria? Eles sabem o que significa certificar uma aeronave? Eles já executaram programas desse tamanho, dessa complexidade?
Temos agora a tecnologia aeronáutica. O que conseguimos ver é o design e as aeronaves são muito diferentes umas das outras. Ninguém consegue saber todos os detalhes dos projetos, a menos que esteja dentro do programa, porque são altamente confidenciais.
A NASA usa uma escala de nível de prontidão tecnológica (TRL), que é basicamente uma escala de um a nove que analisa a maturidade da tecnologia. Qualquer coisa menor que seis não está pronta para ir para o mercado.
O TRL 6 é a primeira vez que um protótipo voa no ambiente real, uma aeronave em tamanho real e que cobre todo o envelope de voo. Então, ele decola verticalmente, faz a transição, voa e pousa. TRL 9 seria o produto final. Para maiores detalhes da escala TRL (Technology Readiness Level) vejam aqui.
Temos o desafio da certificação. As startups entendem os requisitos de certificação? Quão distantes dessas certificações eles estão? A certificação é muito importante, pela simples razão de que as regras para certificar esses veículos são novas e ninguém fez isso antes.
Apesar de terem semelhanças com aeronaves já certificadas, os eVTOL têm características bastante peculiares e para que sejam empregados em escala comercial, aspectos básicos da aviação devem ser percorridos pela tecnologia: aeronavegabilidade, produção, manutenção e operação. A certificação de tipo, que significa a aprovação regulatória para o projeto, constitui o primeiro passo para operação comercial em escala.
A certificação é uma tarefa crucial e muito custosa. O orçamento de certificação depende do tipo de veículo que as startups estão tentando certificar. Algumas das configurações mais complexas, que possam até ser similares a de pequenas aeronaves comerciais, falamos na escala de até dezenas de milhões de dólares.
Para modelos mais simples, vamos falar de algo em torno de US$ 250 mil. Multicópteros são mais baratos para certificar do que configurações mais complexas, como configurações de elevação com mais empuxo ou configurações de empuxo vetorial.
No Brasil, o papel fundamental da certificação é da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Ela já começou a trabalhar no processo para Certificação de Tipo do EVE-100, projeto eVTOL da Embraer. A ANAC, tem expertise acumulada nos últimos anos, desenvolvendo regulamentos para a certificação de novas tecnologias aéreas, como drones profissionais de alta capacidade, já atuantes no mercado brasileiro.
Evidentemente, os eVTOL, com passageiros, demandam um padrão similar à da aviação tripulada. Também será necessária a padronização de regulação entre diferentes países, pois de maneira similar ao que ocorre hoje para aeronaves “tradicionais”, a operação em escala mundial depende desse fator chave.
Os fabricantes desses veículos estão falando de milhares de veículos. Na indústria aeroespacial, não acontece nada aos milhares
Por último, temos que analisar a produção. Os fabricantes desses veículos estão falando de milhares de veículos. Na indústria aeroespacial, não acontece nada aos milhares. Basta a ver a Airbus, a Boeing ou Embraer. Eles produzem no máximo umas 50 a 60 aeronaves por mês. Isso é o que, cerca de 600 a 700 aeronaves por ano, por fabricante.
Mas, no mercado de eVTOL, as startups estão falando em produzir até 1.500 por ano. Embora sejam bem mais simples que um Airbus 320, mesmo assim são complexos produtos aeronáuticos. Qual é a capacidade deles? Eles podem construir milhares, com quais cadeias logísticas de componentes, peças e aviônicos?
A cadeia de suprimentos é essencial. Então, se a startup decidir se tornar totalmente vertical, produzindo tudo internamente, precisa de mais dinheiro, porque todos os componentes precisam estar em conformidade e precisam ser certificados, e arcar com todo esse ônus.
Se, em vez disso, eles usarem a estratégia aeroespacial típica para a cadeia de suprimentos, como ter parceiros de compartilhamento de riscos, cada um dos parceiros terá uma parte do ônus da certificação e a empresa precisará de menos dinheiro. Por exemplo, uma startup poderá construir a fuselagem da aeronave, e os aviônicos e os sistemas de controle de voo ficarão com outra empresa.
Os aspectos tecnológicos são essenciais e um dos principais. Como são veículos elétricos, são a bateria. Tanto para os eVTOL quanto para carros elétricos, uma métrica importante é a “densidade de energia”: quanta energia as baterias fornecem por unidade de peso que adicionam.
Projetos com grandes rotores em eixos rotativos, precisam de baterias que forneçam cerca de 240 Wh/Kg, que é bem mais do que os 186 Wh/Kg de um Tesla Model S Long Range, embora alcançável pela tecnologia de íons de lítio, que estão agora em estágio de protótipo.
Mas os veículos eVTOL têm um requisito extra crucial que um Tesla não tem: eles gastam uma parte desproporcional de energia em uma explosão rápida no minuto ou mais de decolagem vertical. Quanto mais peso em relação à área do disco dos rotores, maior o “requisito de potência específica”.
Obviamente que sacrificar o alcance e a capacidade de número de passageiros pode compensar os problemas de energia. Por causa da “queima” de energia necessária para a decolagem, o eVTOL é menos eficiente que os carros elétricos em viagens de menos de 120 quilômetros, típicas de trajetos urbanos.
Adicionando o incômodo do passageiro ter que se deslocar a um “vertiporto” de carro, a promessa de um mercado urbano tipo “Uber dos céus” talvez seja difícil de acontecer na escala que os atuais fabricantes falam.
Assim, rotas curtas dentro de cidades estão muito longe da oportunidade de negócios de US$ 1 trilhão prevista por alguns proponentes do eVTOL. Como comparação, o mercado de helicópteros vale apenas US$ 50 bilhões em todo o mundo.
Curioso que já começamos a ver datas como 2025 ou 2026 cogitadas como o possível início de serviços comerciais aqui e ali. Mas esses prazos serão realistas? Claro que o cronograma realmente depende do tempo que as autoridades de certificação exigirão para a startup certificar seu aparelho. E essa certificação não está nas mãos dos fabricantes, está nas mãos de os órgãos reguladores.
Um fator essencial, mas que não vejo ser debatido, é a questão da infraestrutura. Em breve, ao sair da fase da fantasia e cair na realidade, os fabricantes vão começar a entender o desafio e complexidade da questão. Poderá ser a substituição de helicópteros, usando as atuais rotas disponíveis para eles. Mas, ficarão restritos a números limitados de voos.
Para os objetivos propostos de se ter centenas e até milhares de veículos voando pelas cidades, será necessário construir uma infraestrutura que ainda não existe
Para os objetivos propostos de se ter centenas e até milhares de veículos voando pelas cidades, será necessário construir uma infraestrutura que ainda não existe. Esse talvez seja o maior obstáculo para essa visão de ficção científica: as empresas de eVTOL precisam descobrir como localizar, obter permissão e construir lugares suficientes para seus veículos pousarem e decolarem, para permitir um modelo de negócios viável para operá-los como táxis aéreos.
É um desafio e tanto. Temos que resolver a equação onde eles vão pousar e decolar, como eles serão integrados aos sistemas de controle de tráfego aéreo existentes e se o público aceitará um grande número de novos e comparativamente grandes aeronaves sobrevoando suas casas.
Para começar, há o problema de quantos locais de vertiporto adequados existem nas principais cidades aqui no Brasil e no mundo. Alguns dos fatores que afetam essa equação: o ruído, a falta de espaço aéreo ainda não reivindicado pelos aeroportos em grandes cidades e a necessidade de readequar as estruturas existentes para estarem preparadas o suficiente para acomodar veículos voadores e, também, fornecer demandas massivas de eletricidade para recarga de suas baterias. Todo lugar que um veículo de decolagem e aterrissagem vertical pretende pousar deve estar relativamente livre de estruturas circundantes.
É a necessidade explicitada nas regras de segurança da aviação, como sobre as plataformas de pouso de helicópteros, que a maioria da indústria acredita que será o modelo a ser adotado para as regras que regerão os vertiportos. Isso, por sua vez, significa que obter permissão para uma pista de pouso para um eVTOL requer descobrir todas as “glide paths” que esse veículo pode usar ao se aproximar de um local de pouso, caso sofra uma falha mecânica.
Preservar tais “glide paths” pode significar, por exemplo, que os proprietários de propriedades adjacentes a vertiportos podem nunca ter permissão para construir algo mais alto que o vertiporto, uma questão particularmente complicada e potencialmente controversa se as cidades forem locais de instalação de muitos desses vertiportos.
E usar apenas os atuais helipontos (área delimitada em terra, na água ou em uma estrutura destinada para uso, no todo ou em parte, para pouso, decolagem e movimentação em superfície exclusivamente de helicópteros) provavelmente não será suficiente para a propalada demanda de centenas desses veículos voando como táxis aéreos.
Muitos projetos de eVTOL estão propondo que suas aeronaves voem de forma autônoma. Isso poderia reduzir drasticamente o peso da aeronave e permitir que mais passageiros embarquem por voo. A autonomia também ajudaria a combater a escassez de pilotos, pois o treinamento de novos e ex-pilotos para aeronaves eVTOL pode ser difícil.
As aeronaves eVTOL vêm em muitas formas e tamanhos, o que significa que os pilotos teriam que aprender a pilotar aeronaves muito específicas. Entretanto, em um voo totalmente autônomo, o público em geral pode não se sentir confortável em voar em um táxi voador sem piloto. Por exemplo, no caso de uma pane, como será feita uma evacuação em um pouso de emergência sem orientação de alguém que conheça os procedimentos?
Os atuais sistemas de controle de tráfego aéreo não conseguem lidar com uma operação massiva de eVTOLs. Estes operarão principalmente em altitudes relativamente baixas, portanto, a questão não é evitar grandes aeronaves que possam estar operando nos aeroportos próximos. O problema é operar em torno de muitos edifícios, com outros eVTOLs e drones no mesmo espaço, e fazer isso com segurança nas movimentadas áreas metropolitanas.
Fazer isso sem pilotos com um sistema autônomo ainda é um grande desafio. Provavelmente levará pelo menos mais uma década ou mais para voar 100% autônomo, uma vez que o equipamento seja primeiramente comprovado nas operações com pilotos humanos.
No fim, tudo isso tem que se pagar. Se as tarifas forem muito mais baratas do que helicópteros, será um grande fator de aceitação. Mas, para isso acontecer, sem pesados subsídios, ou seja, a empresa pagar para manter esses preços baixos, será bem oneroso. Para alcançar um break even será necessário ter uma frota de centenas de aeronaves voando.
É muito mais uma questão econômica que tecnológica. Essa indústria ainda está a muitos anos de distância das operações de passageiros, pois a capacidade de voar com segurança, com potência suficiente, ainda não está confirmada. A energia elétrica é mais sustentável do que os dirigíveis movidos a combustível fóssil, mas tem seus próprios desafios. Uma delas é que o peso da aeronave não diminui durante o voo, pois não queima querosene de aviação, o que significa que o eVTOL deve ser capaz de pousar tão pesado quanto quando decola.
E segurança. Essencial. Ninguém vai voar em uma aeronave insegura. Pouca coisa se fala, a não ser aqui e ali comentários sobre redundância e um estranho paraquedas balístico. Mas em caso de falha total, abaixo de uma certa altura, cerca de 120 metros, você não tem tempo para abrir um paraquedas. É uma altura que provoca uma queda mortal.
Na aviação, segurança vem em primeiro lugar. Assim, todo e qualquer desses veículos deverá ser certificado pelas autoridades, com o mesmo nível de segurança que você espera ao embarcar em um avião comercial. A redundância é muito importante porque permite que você continue a voar, mesmo que algo falhe, como por exemplo, pane em um rotor.
As modalidades de segurança variam conforme o tipo de aeronave. Em uma de asa fixa você pode tentar pousar sem energia. Com um helicóptero você pode tentar autorrotação. O importante é que as autoridades de certificação trabalhem para garantir que todas as aeronaves que certificam sejam seguras, de modo que as pessoas que embarcarem em um desses veículos considerem que seja tão seguro quanto embarcar em um avião no aeroporto. Sem essa segurança, não terão passageiros e sem passageiros a ideia ficará no papel...
Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.