VENEZA - Nada de cinebiografia tradicional. “Ferrari”, que concorre ao Leão de Ouro desta 80ª edição do Festival de Veneza, captura o ritmo acelerado da vida de Enzo Ferrari (1898-1988) em momento crítico na trajetória da marca, que hoje traduz todo um estilo de vida.

Em 1957, ano escolhido para a ambientação da história, Ferrari ainda não era sinônimo de beleza, poder, desejo, luxo e excelência. Embora a marca já tivesse força, o fabricante de carros de competição e esportivos de luxo estava à beira da falência.

O império que Ferrari começou a construir em 1939 corria risco porque o fundador gastava mais do que deveria com a sua maior paixão: as corridas. Com isso, a fabricação e a venda ficavam para segundo plano.

O filme dirigido por Michael Mann e estrelado por Adam Driver mostra a estratégia usada por Ferrari para virar o jogo. Como precisava atrair investidores para salvar a empresa, ele resolve apostar todas as suas fichas na Mille Miglia.

Naquele momento, só uma vitória na lendária corrida com percurso de mil milhas (disputada na Itália de 1927 a 1957) traria novo fôlego à companhia. Até porque as rivais Maserati e Jaguar andavam deixando a Ferrari para trás nas pistas, além de estabelecerem recordes de velocidade.

O prestígio da conquista encorajaria o investimento, o que garantiria um aumento na produção anual de carros (de menos de 100 para 400 veículos), o crescimento necessário para sair do sufoco. E para vender mais carros, nada melhor que a publicidade de uma vitória.

“Você ganha a corrida no domingo, e os consumidores compram carros da marca na segunda”, diz Ferrari, no filme.

Interessante observar como o fato de a Ferrari fabricar carros com a motivação maior de vencer as corridas foi o que fez a empresa prosperar. O foco estava na performance dos veículos, o que exigia muito esforço em termos de engenharia e, com o tempo, acabou definindo seu mercado de alto desempenho. O fundador até costumava dizer que não vendia carros e sim “motores”.

Com estreia no Brasil prevista para o início do ano que vem, o longa-metragem é baseado na biografia “Enzo Ferrari: The Man and the Machine”, escrito pelo americano Brock Yates e publicado em 1991. Daqui também foi extraída a crise pessoal que Ferrari enfrentava em 1957.

O casamento com Laura Dominica Garello (Penélope Cruz), parceira de Ferrari nos negócios, desmoronava – principalmente depois da morte do filho do casal. E para piorar, Ferrari tinha um filho, Piero Lardi Ferrari (hoje o vice-presidente da empresa, com 78 anos), com a amante, Lina Lardi (Shailene Woodley), um fato que a esposa até então desconhecia.

“Naquele ano, houve uma colisão de conflitos na vida de Enzo Ferrari. A empresa estava falindo, ele tinha perdido o filho e casamento com Laura chegava ao fim. E o futuro (tanto da família Ferrari quanto da companhia) dependia desse momento”, contou o diretor Michael Mann, em Veneza, ao justificar o recorte de tempo escolhido para a produção.

“Sua história é profundamente humana. E, quando você encontra um personagem tão dinâmico e operístico quanto ele, quanto mais específica a abordagem e quanto mais fundo você mergulha, mais universal a sua história se torna”, completou Mann, em encontro com a imprensa do qual NeoFeed participou.

E os desastres, que eram ainda mais comuns no automobilismo daquela época, ainda acrescentam mais drama ao roteiro. Há cenas em que os pilotos escrevem cartas de despedida às namoradas e aos familiares, na noite anterior à corrida – mostrando que a fatalidade nas pistas era quase algo corriqueiro.

Duas sequências impressionam pelo realismo na reconstrução. Em uma delas, o piloto Alfonso de Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel Leone) nem se incomoda em conseguir uma vaga na Ferrari ao assistir à morte de seu antecessor em um teste.

E, mais tarde, o próprio Portago vai se deparar com a morte na tal corrida Mille Miglia, a que representava a esperança de recuperação da Ferrari, que tinha cinco competidores.

Ainda que a prova tenha sido marcada pela tragédia, com a morte de um piloto, um navegador e nove espectadores, incluindo cinco crianças (assim que o pneu de uma Ferrari 335 S estourou na estrada perto da cidadezinha de Guidizzolo), a escuderia conquistou o podium, com a vitória de Piero Taruffi (vivido por Patrick Dempsey).

Mas o fundador da Ferrari só conseguiu comemorar o feito (e a concretização de seu plano comercial) mais tarde. Só depois de a empresa ser isentada da responsabilidade do acidente.

O problema não foi a qualidade do pneu, conforme a suspeita inicial. E sim de um objeto pontudo que foi parar na pista de rua e o furou, fazendo o piloto perder o controle do carro em alta velocidade e voar por cima do público.