Médico, pesquisador e escritor, o gaúcho Olavo Amaral tem uma visão crítica da medicina e do negócio da saúde que poucos colegas demonstram possuir. Ou expressam. É o que chama de "inquietação" e que virou tema de seu primeiro livro fora da premiada carreira de ficcionista — venceu o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, levou o Troféu Simões Lopes Neto e foi finalista do Prêmio Jabuti 2018, na categoria contos.

Aos 46 anos, ele acaba de lançar Na saúde e na doença — A medicina entre a ciência e a vida real, pela Objetiva. A obra nasceu do incômodo com a forma com que os diagnósticos em psiquiatria são aceitos sem nenhum questionamento e com a influência onipresente da indústria farmacêutica sobre a pesquisa e a prática médica, que vêm em parte de seu trabalho na área de confiabilidade científica.

Com atuação destacada em metaciência, com doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutorado na Universidade de Barcelona, ele é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos responsáveis pela Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, dedicada a avaliar se os resultados dos experimentos biomédicos brasileiros podem ser replicados — ou seja, se eles são confiáveis.

Nesta entrevista ao NeoFeed, Amaral fala sobre o processo de produção de Na saúde e na doença e toca em pontos delicados sobre como a política, o mercado e a pesquisa científica determinam hoje em dia a prática da medicina. Um assunto raramente trazido a público, sobretudo por um médico e pesquisador. 

Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:

O diagnóstico médico é menos científico do que parece?
Essa constatação vem da minha visão de neurocientista sobre o diagnóstico psiquiátrico. Se você entende um pouco de como as classificações psiquiátricas são desenvolvidas, não é difícil perceber que o diagnóstico é uma convenção humana
e não uma espécie de categoria derivada diretamente da biologia ou da ciência. E faz sentido que seja assim, ainda que isso não seja óbvio para boa parte do público. Para usar diagnósticos de maneira sábia, é importante ter em mente o quanto eles têm de relativo.

Por que você define os congressos médicos patrocinados como "caricatos"?
Existe uma participação massiva da indústria farmacêutica, não somente nos estandes de publicidade, mas também em palestras patrocinadas e eventualmente na construção dos programas [dos eventos]. Uma influência, aliás, que se estende à ciência e à educação médica como um todo, já que boa parte dos pesquisadores em qualquer área clínica geralmente têm uma série de ligações com a indústria.

E qual é o problema?
As organizações que promovem esses eventos vão argumentar que isso é, de alguma forma, inevitável, para viabilizar os congressos. Mas é difícil pensar que não haja soluções viáveis para a formação médica que sejam um pouco mais isentas de conflitos de interesses.

Quem mais se beneficia com esses eventos?
Se os congressos existem e mobilizam gente, é porque de alguma forma todos os envolvidos ganham algo com eles. Quem assiste ao congresso ganha formação, experiência profissional e interação com colegas. Quem dá palestras ganha prestígio. E quem patrocina ganha exposição. Nesse processo, a ciência e a formação médica acabam muito misturadas com aquilo que a indústria tem interesse em vender — e frequentemente quem sai perdendo é o paciente.

Em que medida os pacientes perdem?
Com o patrocínio pesado dos congressos, os médicos são expostos a informação enviesada que exagera benefícios (e minimiza riscos) de medicamentos, além de criar uma relação de reciprocidade com representantes da indústria. Há evidências de que isso pode mudar os hábitos de prescrição dos médicos, por razões que não necessariamente vão de encontro à melhor evidência científica.

"A ideia de que estamos mudando dramaticamente o paradigma com que a medicina sempre foi exercida me parece um pouco exagerada"

A ingerência das "big pharmas" está restrita aos congressos?
Há uma influência onipresente da indústria farmacêutica sobre a pesquisa e a profissão médica. Nesse processo, a ciência e a formação médica acabam muito misturadas com aquilo que a indústria tem interesse em vender — e frequentemente quem sai perdendo é o paciente.

Você diz que decisões médicas são influenciadas por fatores externos à ciência. Quais seriam esses fatores?
Os mais óbvios são os econômicos, já que os cuidados prestados na medicina baseada em prestação de serviços acabam revertendo em benefícios financeiros para laboratórios, fabricantes de dispositivos médicos, hospitais e para os próprios médicos. Além disso, os profissionais de saúde também estão expostos a outras influências políticas, sociais e culturais que podem influenciar a prática — o que, em alguns momentos, pode se tornar importante, como aconteceu na pandemia de covid-19, em que várias questões médicas acabaram polarizadas em linhas partidárias.

Mas, em uma medicina baseada em evidências científicas, há espaço para esse tipo de influência?
Não há um caminho para exercer uma medicina completamente “científica”. A prática da medicina não é exatamente ciência pura — e nem deveria ser. Não há um caminho para exercer uma medicina completamente “científica”.

Não?
As decisões médicas, por exemplo, têm de levar em conta os desejos e valores dos pacientes, que não necessariamente estão codificados em diretrizes e protocolos vindos da pesquisa clínica. E é fundamental que essas coisas entrem na tomada de decisão. O problema é que, assim como existem fatores externos que influenciam decisões a favor dos interesses dos pacientes, outros tantos podem estar atendendo outros interesses. Falar sobre essas influências nos ajuda a separar as coisas e atuar melhor em prol dos interesses da população por quem trabalhamos — e que, no fim das contas, é o que importa.

No livro, você questiona a eficácia da campanha contra o câncer de próstata. Ela não funciona?
A polêmica sobre o rastreamento do câncer de próstata é antiga, desde 2009, com ensaios clínicos de resultados pouco favoráveis. Em 2012, o USPSTF [Força-tarefa de Saúde Preventiva dos Estados Unidos] desaconselhou a prática. A posição foi revista em 2018. No Brasil, o Ministério da Saúde e o Inca [Instituto Nacional do Câncer] também nunca apoiaram o rastreamento em massa.

Para grande parte da população, o rastreamento é a melhor arma contra o câncer prostático.
Na verdade, a maioria da evidência sobre o rastreamento de próstata diz respeito ao exame de sangue que mede o PSA [a proteína que, alterada, pode indicar a presença de câncer, mas também de inflamações benignas, entre outros problemas]. Ainda que o toque retal tenha se cristalizado como “o exame de próstata” no imaginário popular e ganhe bastante atenção nas campanhas de rastreamento, ele é um exame acessório — e a evidência sobre os seus benefícios é bem mais escassa. O Novembro Azul foi criado por uma organização ligada a setores com interesses diretos nesse tipo de exame. Acompanhei de perto a campanha em 2016 e vi como as recomendações de saúde ao público são moldadas por múltiplos fatores, com a evidência científica muitas vezes tendo peso menor.

Com 657 páginas, o livro custa R$ 109,90 (Foto: Editora Objetiva)

Quem lucraria com o exame? 
O exame em si não gera tantos interesses associados: no máximo, laboratórios vão lucrar com ele, e alguns médicos – em particular os urologistas – podem usá-lo para construir uma clientela regular e lucrar com consultas. Mas o diagnóstico de um câncer de próstata movimenta uma economia maior, que comporta interesses de hospitais, farmacêuticas e fabricantes de equipamentos cirúrgicos, além dos próprios médicos, que vão realizar o cuidado a longo prazo. Mesmo os efeitos colaterais do tratamento do câncer, como impotência sexual e incontinência urinária, vão trazer lucros para setores como fabricantes de fraldas geriátricas e próteses penianas.

Há uma conspiração em torno do rastreamento do câncer de próstata, visando os ganhos financeiros?
Não.  Existem motivos legítimos para defender o rastreamento. Mas, dado que os principais envolvidos na campanha são médicos e empresas que também lucram com os resultados dela, é difícil que a apreciação deles do tema seja totalmente isenta. Comunicar riscos e benefícios é desafiador, mas essencial. Não há uma decisão “melhor” sobre fazer ou não o exame — tudo depende dos valores do paciente.

A medicina personalizada por testes genéticos representa um avanço real ou é mais ilusão?
É óbvio que a promessa existe, mas ela é mais difícil de realizar do que aparenta — e o hype mercadológico faz com que ela pareça maior e mais imediata do que realmente é. Em algumas áreas, como o tratamento de alguns tipos de câncer, os frutos da personalização já estão sendo colhidos — ainda que, na maioria dos casos, por quem tem recursos para pagar por isso. Mas, em outras, a gente ainda engatinha.

Quais são os principais desafios?
Mesmo com acesso a dados genéticos de milhares ou milhões de indivíduos, conseguir fazer previsões acertadas com isso ainda é difícil, porque a informação genética disponível — ou pelo menos o sentido que conseguimos fazer dela — ainda parece explicar uma parte menor do risco do que deveria.

A inteligência artificial não pode ajudar?
É possível que modelos de IA alterem dramaticamente esse panorama, mas, com algumas exceções, ainda não estamos num momento em que isso possui um impacto tão grande na prática clínica.

E quando isso deve ocorrer?
Mesmo que essa promessa se concretize, no fundo, a ideia de “medicina personalizada” carrega um pouco de ficção no próprio nome — não importa o quanto um médico (ou um algoritmo) saiba sobre você, ele sempre vai depender de coisas apreendidas a partir de dados de outras pessoas para tentar chegar a uma decisão acertada. A ideia de que estamos mudando dramaticamente o paradigma com que a medicina sempre foi exercida me parece um pouco exagerada.