Em algum dia de 1999, o general Wanderley Abreu atendeu um telefonema de um colega de mesma patente que dizia ter recebido uma ligação de uma major da Aeronáutica dos Estados Unidos questionando sobre um tal Abreu, que teria invadido o sistema de segurança da Nasa, a agência espacial americana, via internet.

O militar negou que fosse ele o autor do crime, mas fazia ideia de quem se tratava. Desconfiava de seu filho Junior, de 17 anos. "Só podia ter sido ele", pensou. E foi. Se quisesse, o rapaz teria deletado informações, travado todos os arquivos, mudado o nome de uma pasta ou destruído tudo que encontrasse pelo caminho. A Nasa poderia ter ido para o espaço.

Mas o garoto não fez nada de grave. Ele queria apenas vencer um desafio imposto a vários hackers como ele. Contatado pela Agência Espacial, Junior, que usava o codinome Storm (Tempestade), topou uma viagem ao Centro Espacial americano para explicar onde encontrou vulnerabilidades no sistema. Voltou de lá com um diploma de especialista em segurança digital.

Esse não foi o único feito de Junior. Ele ficou mesmo conhecido depois de usar suas habilidades para ajudar a Justiça carioca a combater uma rede de pedofilia na internet na Operação Catedra-Rio. Com o tempo, virou uma espécie de lenda, depois de se transformar em um bem-sucedido empresário e consultor de tecnologia de grandes empresas e governos.

Esses feitos despertaram o interesse de Alessandro Greco, ex-fellow de jornalismo científico do MIT, que o convenceu a deixá-lo contar sua história em livro. O resultado é Storm: A história do hacker brasileiro que invadiu a Nasa, desbaratou crimes na rede e inovou no empreendedorismo digital, que está sendo lançado pela editora Objetiva.

Adepto das frases curtas e precisas e de disposição para explicar tudo ao mais leigo dos leigos, Greco escreveu uma obra que parece ficção de espionagem de primeira linha.

Alessandro Greco, ex-fellow do MIT: três anos de pesquisas e entrevistas

Nesta entrevista exclusiva ao NeoFeed, o jornalista conta os bastidores da obra que levou três anos para ser concluída e suas impressões sobre a personalidade de seu personagem. Fala ainda da cultura hacker e aponta os motivos para que ocorram invasões em sistemas de empresas. Confira os principais trechos:

De certo modo, ao mostrar como o hacker Storm atuou contra a pedofilia, seu livro desmistifica a visão do universo sombrio dos hackers?
No nosso imaginário, hackers são pessoas que estão sempre desafiando o sistema e, por serem dotados de uma inteligência fora do comum, têm a chave mestra do mundo digital nas mãos. E, perante eles, nos sentimos vulneráveis. Storm sempre conta que os amigos dele acham que ele tem superpoderes de invadir qualquer coisa, a qualquer momento. Ele morre de rir. Historicamente, hackear não tem nada a ver com isso. O termo hack nasceu na década de 1950 e se refere a soluções inovadores para qualquer problema.

"Storm sempre conta que os amigos dele acham que ele tem superpoderes de invadir qualquer coisa, a qualquer momento. Ele morre de rir"

Com a internet ganhou outro sentido?
Com o passar do tempo, hackear passou a ser associado a programadores de computador do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que eram parte de um clube chamado Tech Model Railroad Club. Sim, um clube de estudantes que gostavam de trenzinho de brinquedo, tipo Ferrorama, e de hackear computadores. Cultura nerd total que envolve toda uma forma de pensar, uma filosofia que até hoje é cultuada no MIT.

Você descreve Storm como alguém de personalidade complexa. O que quis dizer com isso?
Storm é uma pessoa muito inteligente ao mesmo tempo emocionalmente difícil e generoso, irritadiço, sincero e culto. Ele pode simplesmente te ignorar por achar que não tem nada a aprender conversando contigo e, no momento seguinte, estar carregando caixas de legumes e verduras na serra fluminense durante a pandemia para ajudar os produtores a escoar a produção. E no mesmo dia virar para você e dizer: eu sei que passei muitas horas na frente do computador e isso prejudicou meu desenvolvimento emocional. É também uma pessoa que, aos 21 anos, se depara com a pedofilia online e diz para si mesmo: eu tenho as habilidades para combater isso e não tem mais ninguém no Brasil que possa fazer isso.

"É uma pessoa que, aos 21 anos, se depara com a pedofilia online e diz para si mesmo: eu tenho as habilidades para combater isso e não tem mais ninguém no Brasil que possa fazer isso"

Como se deu esse trabalho de investigação do qual ele fez parte?
Naquela altura, o então promotor do Ministério Público (MP) do Rio de Janeiro Romero Lyra já havia pedido ajuda as polícias militar, civil e federal e ouviu sempre a mesma resposta: não sabemos como fazer isso. Coube a um jovem adulto, sem nenhum treino policial, tomar a responsabilidade e fazer o que tinha de ser feito. Até hoje, Storm tem pesadelos horrorosos de acordar gritando devido às imagens e vídeos que viu, mas você nunca irá ouvi-lo reclamar disso. O que ele sente é, por exemplo, culpa por não ter conseguido salvar mais gente. E isso o assombra até hoje.

O que ele exatamente fazia?
Passava madrugadas dentro do MP criando personas online, se passando por um deles para fazê-los enviar imagens e vídeos, uma forma de criar provas materiais à Justiça para ela ir atrás dessas pessoas. Daí nasce a Operação Catedral-Rio, a primeira de combate a pedofilia online no Brasil. No mesmo ano, vai vestido de Obi-Wan Kenobi na pré-estreia no cinema de “Guerra nas Estrelas – Operação Fantasma”, feliz da vida.

Como você chegou a Storm e o convenceu a fazer um livro?
Em 2013, participei como ghost-writer de um livro chamado Todo mundo disse que não ia dar certo, sobre empresas que ninguém acreditava que seriam um sucesso. Uma das pessoas que entrevistei foi Storm, por conta da empresa dele. O fato de ele ter hackeado a Nasa e o supercomputador mais rápido do mundo ao mesmo tempo em que caçava pedófilos me chamou muito a atenção. Os anos passaram e eu continuei intrigado com a personalidade dele, essa relação entre luz e sombra, e comentava isso com minha mulher Gabriela. Uma hora ela simplesmente disse: “vai lá e faz a biografia dele”. Uma semana depois, estava sentado na frente de Storm vendendo para ele a ideia de uma biografia.

Que argumentos você usou?
Falei que não estava nem aí para o fato de ele ser um “master hiper super über hacker”. Isso era o óbvio. O que que me interessava era ele ter sido pioneiro no combate à pedofilia online no Brasil e de esse trabalho ter mudado, em 2003, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tornando crime possuir e divulgar imagens e vídeos de crianças e adolescentes na internet (sim, antes disso não era crime).

"O que que me interessava era ele ter sido pioneiro no combate à pedofilia online no Brasil"

Qual foi a primeira reação dele?
Ele apenas olhou para mim e disse: “não vou me opor e não quero ler o que você vai escrever. Só quero que seja uma boa editora”. Mandei a proposta do livro para três editoras. Recentemente, com o livro já publicado, ele me disse que pensou consigo mesmo: “Esse sujeito é maluco. Nunca vai dar certo”. Uma das editoras, a Companhia das Letras, topou e o livro saiu por um selo deles Objetiva. Curiosamente, após os editores lerem o livro, acharam melhor que eu enviasse para Storm ler – por conta de algumas histórias que estão lá. Ele protestou, mas leu. E, para minha surpresa, não fez nenhum pedido de mudança. Aproveitei e perguntei se não se incomodava com os trechos em que eu descrevia traços difíceis da personalidade dele. A resposta: “eu sou assim”.

Mesmo com tantos investimentos por grandes empresas e bancos, nenhum sistema parece ser impenetrável?
Há vários fatores. O maior deles é o humano. Boa parte dos golpes cibernéticos ainda é fruto de as pessoas clicarem em um link malicioso (link falso), serem direcionadas para páginas fake e entregarem dados sensíveis. Outro é vingança. Uma pessoa que conhece um sistema por dentro fica com raiva e resolve entregar uma senha ou uma fragilidade. Um terceiro é falha na programação. No final, acabamos caindo sempre no mesmo lugar: sistemas são feitos por seres humanos e somos intrinsecamente falhos. Erramos, nos enganamos, deixamos de perceber uma porta aberta. Essa é a condição humana e, portanto, na minha visão, nunca teremos sistemas 100% seguros.

Serviço:
Storm
Alessandro Greco
176 páginas
Livro brochura: R$ 74,90
ebook: R$ 39,90
Objetiva