Se você prestar a atenção em como Vladimir Putin fala sobre a Ucrânia deve ter notado que há um padrão: o presidente russo costuma usar palavras para expressar exatamente o oposto do que elas normalmente significam.

Ele rotula os atos de guerra como “deveres de manutenção da paz”. Ele diz que está engajado na “desnazificação” da Ucrânia, ao mesmo tempo em que tenta derrubar ou até mesmo matar o presidente do país, judeu e neto de um sobrevivente do Holocausto. Ele afirma que a Ucrânia planeja construir armas nucleares, mas a maior ameaça de guerra nuclear hoje parece ser o próprio Putin.

A manipulação descarada da linguagem utilizada por Putin chama a atenção. Em uma entrevista recente à CNN, Kira Rudik, integrante do parlamento ucraniano, disse sobre Putin: “Quando ele diz ‘quero paz’, significa ‘estou reunindo minhas tropas para matá-lo’. Se ele diz ‘ok, estou recuando’, significa “estou reunindo mais tropas para matá-lo’.”

Como professor de Filosofia que estuda o autor britânico George Orwell, os comentários de Rudik sobre Putin me lembram de outros lemas: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. Estas são as palavras inscritas na lateral do prédio do Ministério da Verdade, a agência governamental de “1984”, o romance distópico de Orwell publicado em 1949.

No livro, Orwell usa justamente essa característica para chamar a atenção para a distorção perversa da linguagem com o objetivo de ganhar e manter o poder político em regimes totalitários – como o estado fictício de Oceânia em “1984”.

Essa compreensão aguçada de Orwell sobre esse fenômeno deve-se ao fato de ele mesmo ter testemunhado isso. Mentiras são mais assustadoras do que bombas

Ao lidar com mentiras e distorções de Putin, é útil revisitar o que pensadores e escritores escreveram e disseram sobre a relação entre linguagem e poder político.

Um inglês que nasceu em 1903 e morreu em 1950, Orwell testemunhou a guerra, o imperialismo e a pobreza durante a primeira metade de sua vida. Essas experiências o levaram a se identificar como socialista e a pertencer à esquerda política britânica.

Por isso, pode parecer inevitável que Orwell tenha visto positivamente o comunismo soviético –que na época exerceu forte influência na esquerda política europeia. Mas as coisas não foram bem assim.

Em vez disso, Orwell acreditava que o comunismo soviético compartilhava os mesmos defeitos da Alemanha nazista. Ambos eram estados totalitários nos quais o desejo de poder e controle total excluía qualquer espaço para a verdade, individualidade ou liberdade. Orwell não acreditava que o comunismo soviético fosse verdadeiramente socialista, mas sim que tinha somente uma fachada socialista.

Aos 33 anos, Orwell serviu como soldado voluntário na Guerra Civil Espanhola. Ele lutou com um pequeno grupo de combatentes que integrava uma coalizão maior de esquerda e que buscava impedir uma insurreição da direita nacionalista da Espanha. Essa coalizão de esquerda recebia apoio militar da União Soviética.

Mas o grupo ao qual Orwell pertencia acabou se tornando alvo de propagandistas soviéticos que acusaram esses combatentes de espiões que estariam a serviço do outro lado. Isso foi uma consequência das tentativas da URSS de utilizar seu envolvimento na guerra civil espanhola para ganhar poder político.

Orwell constatou como o grupo com o qual lutou foi difamado na imprensa europeia, devido a essa campanha propagandística soviética. Ele explicou em seu livro “Homenagem à Catalunha”, que essa campanha de difamação incluída contar mentiras constatáveis sobre fatos concretos. Isso o incomodou profundamente.

O autor refletiu mais tarde sobre essa experiência e escreveu que estava assustado com a “sensação de que o próprio conceito de verdade objetiva está desaparecendo do mundo”. Essa perspectiva – observou Orwell – o assustou “muito mais do que bombas”.

A linguagem molda a política – e vice-versa

Esses temores influenciaram muitos dos escritos mais importantes de George Orwell, como o próprio “1984” e seu ensaio “A Política e a Língua Inglesa”. Nesse ensaio, Orwell refletiu sobre a relação entre língua, pensamento e política. Para ele, a linguagem influencia o pensamento que, por sua vez, influencia a política. Mas a política também influencia o pensamento e este, a linguagem.

Assim, Orwell – como Putin – constatou como a linguagem molda a política e vice-versa.
No ensaio, Orwell argumenta que se alguém escreve bem “pode pensar com mais clareza” e que “pensar com mais clareza é o primeiro passo necessário para a regeneração política”. Eu acredito que isso significava para ele que uma ordem política poderia se livrar de influências políticas destrutivas como o totalitarismo. Isso torna a boa escrita em uma tarefa política

O desejo de Orwell de evitar a escrita ruim não é o desejo de defender regras gramaticais rígidas. Em vez disso, para Orwell, os usuários da linguagem deveriam “deixar o significado escolher a palavra, e não o contrário”. A comunicação clara e precisa requer pensamento consciente. Isso dá trabalho.

Mas assim como a linguagem pode iluminar o pensamento e regenerar a política, a linguagem também pode ser utilizada para obscurecer o pensamento e degenerar a política. Putin percebe essa relação claramente e procura usar isso em seu favor.

‘Duplipensar,’ ‘duplifalar’

Orwell alertou contra o tipo de linguagem hoje utilizada por Putin. Segundo ele, “se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento”. Em seu romance distópico, Orwell examinou como era a corrupção mútua da linguagem e da política em um regime totalitário.

Orwell alertou contra o tipo de linguagem hoje utilizada por Putin. Segundo ele, “se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento”

No mundo de “1984”, o único crime é o “crime de pensamento”. A classe dominante procura extinguir a possibilidade de crime de pensamento eliminando a linguagem que levaria aos pensamentos criminalizados. Isso incluía qualquer pensamento que minasse o controle totalitário do partido. A teoria diz: limite a linguagem que você limita o pensamento.

Assim, o parlamento russo aprovou e Putin assinou uma lei que pode resultar criminalizar o uso da palavra “guerra” para descrever a guerra na Ucrânia.

Orwell também usou “1984” para examinar o que acontece quando a comunicação está a serviço do poder político no lugar dos fatos comprovados.

O resultado é o “duplipensar”, que ocorre quando uma mente fraturada aceita simultaneamente duas crenças contraditórias como verdade. Os lemas “guerra é paz”, “liberdade é escravidão” e “ignorância é força” são exemplos paradigmáticos. Essa ideia orwelliana deu origem ao conceito de "duplifalar", que ocorre quando se usa a linguagem para obscurecer o significado com o intuito de manipular os outros.

O “duplifalar” é um instrumento no arsenal da tirania. É uma das armas escolhidas por Putin, como é para muitos autoritários e pretensos autoritários em todo o mundo. Como Orwell advertiu: “O poder está em despedaçar as mentes humanas e juntá-las novamente em novos formatos de sua própria escolha”.

Mark Satta é professor-assistente de Filosofia da Wayne State University (EUA)

Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation