A coleção particular de Emanoel Araujo (1940-2022) – artista plástico, ex-diretor da Pinacoteca, idealizador, diretor e curador do Museu Afro Brasil – foi arrematada no sábado, 28 de outubro, em leilão de lote único, no valor R$ 30 milhões, pela Fundação Lia Maria Aguiar, que fica na cidade paulista de Campos do Jordão.

A instituição filantrópica privada pertence a Lia Maria Aguiar, herdeira do banqueiro Amador Aguiar, fundador do Bradesco.

Em comunicado enviado ao NeoFeed, Luiz Goshima, diretor da Fundação e membro de seu conselho, afirma que a instituição está desenvolvendo “um grande parque socioeducacional que englobará, além do ensino formal, um núcleo de conscientização ambiental e museus interativos que vão promover o aprendizado de história, arte e cultura”.

Para Goshima, a aquisição do acervo permitirá que a Fundação (que até o ano passado já havia investido mais de R$ 120 milhões em projetos socioeducacionais e na área de saúde) expanda os horizontes de sua atuação.

“Educação e consciência social passam pela compreensão e pelo aprendizado da nossa história e cultura. Então entendemos que o acervo traduz fisicamente essa narrativa a ser estabelecida”, diz o diretor da Fundação no comunicado.

O destino da coleção ainda é incerto. A Fundação está avaliando “as possibilidades no sentido da composição de um museu, uma exposição ou outra forma de aplicação que fortaleça a relevância social desta coleção”, conclui o texto.

As obras vão se juntar aos demais trabalhos presentes no acervo de Lia Maria Aguiar, um conjunto focado em arte brasileira.

Emanoel Araújo (1940-2022): diretor e curador do Museu Afro
Emanoel Araújo (1940-2022): diretor e curador do Museu Afro

Nascida em 1938, Lia Maria Aguiar é uma das três filhas adotivas de Amador Aguiar (1904-1991), ao lado da irmã gêmea Lina Maria Aguiar, já falecida, e de Maria Angela Aguiar Bellizia.

Segundo a revista Forbes, em 2018 sua fortuna era estimada em US$ 1,58 bilhão. A bilionária e filantropa também manteria ações do Bradesco e da Bradespar.

Lia tem ainda 25% do capital da Meraki Capital Asset Management, que faz a gestão do fundo patrimonial de sua Fundação – cerca de R$ 1 bilhão.

Outro sócio-fundador e CEO da asset é Luiz Goshima, que é justamente diretor executivo e conselheiro da instituição. Foi ele quem representou a Fundação no leilão que arrematou a coleção de Emanoel Araujo.

Seu pai, Luiz Harunari Goshima, morto em setembro deste ano, era um grande colecionador: em 2021, arrematou a tela “A caipirinha”, de Tarsila do Amaral, por R$ 57,5 milhões, também na Bolsa de Arte, um recorde em valor na época.

E o colecionismo não para por aí. No ano que vem, está prevista a abertura, em Campos do Jordão, de um Museu do Automóvel Antigo, com 500 carros doados por Lia e os Goshima, pai e filho.

Vaivém do leilão

Previsto originalmente para acontecer entre os dias 25 e 28 de setembro, o leilão, organizado pela Bolsa de Arte, em São Paulo, havia sido suspenso às vésperas de sua realização pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), autarquia responsável pela Política Nacional de Museus (PNM).

Em comunicado, o Ibram explicou à época que iria apresentar o catálogo com os itens da coleção aos integrantes do Sistema Brasileiro de Museus, “conforme a legislação vigente, para exercer seu direito de preferência na aquisição dos bens culturais”. O prazo para a manifestação desses museus terminou ainda na primeira quinzena de outubro.

Joias de crioula: pulseira com placa de ouro com camafeus
Joias de crioula: pulseira com placa de ouro com camafeus

Com isso, o marchand Jones Bergamin, da Bolsa de Arte, marcou novas datas para o pregão. No último sábado, segundo Bergamin, somente fundações, instituições culturais e museus puderam participar. O leilão estava vedado a colecionadores particulares.

O intuito de Bergamin era ver arrematada, em lote único, toda a coleção de Araujo. Caso isso não acontecesse, haveria pregões na segunda (30) e terça (31), em dois horários (16h e 20h).

Luiz Goshima, CEO da Meraki e conselheiro da fundação
Luiz Goshima, CEO da Meraki e conselheiro da fundação

Não somente Bergamin desejava que a integridade do acervo de Araujo fosse mantida, de preferência com vistas a futuras exibições públicas.

Na semana passada, a colecionadora Alayde Alves fez circular uma carta, com assinaturas de artistas, curadores, professores, galeristas e pesquisadores, entre outros, em que afirmava ser “motivo de grande consternação” o leilão da coleção particular de Emanoel Araujo.

No texto, Alayde ressaltava que os esforços deveriam “se concentrar em convencer o Estado [...], alguma empresa privada ou grande fortuna da importância de manter essa coleção, de criar exposições e incentivar a pesquisa em um material tão relevante”.

A coleção particular

Jones Bergamin afirmou ao NeoFeed que na coleção de Emanoel Araujo “há centenas de obras coisas raras, coisas atípicas, que só o olho dele enxergava em todas as feirinhas a que ele ia desde que ainda morava na Bahia”.

Morto em setembro do ano passado, aos 81, Araujo havia pedido ainda em vida que seu acervo viesse a ser leiloado para posterior divisão das receitas entre os irmãos e os antigos funcionários para quem deixou sua herança.

Os itens foram divididos em sete categorias: arte africana (bronzes, cerâmicas, marfins e têxteis); arte afro-brasileira (cerâmicas, esculturas, gravuras, Joias de Crioula); modernos (esculturas, gravuras, mobiliários, pinturas, porcelanas e tapeçarias; arte oriental (armaduras de cavalaria e espadas, marfins e porcelanas); arte europeia (gravuras, Imaginárias Católicas do século 16 ao 19 e pinturas); arte brasileira (esculturas, gravuras, mobiliários, peças brasonadas e pinturas).

Obra de Xavier das Conchas (1739-1814
Obra de Xavier das Conchas (1739-1814

Entre as preciosidades, destaque para criações de Mestre Valentim (1745-1813) e Xavier das Conchas (1739-1814), dois importantes nomes do barroco brasileiro.

E uma seleção de Joias de Crioula, ornamentos do século 19, usados por mulheres negras escravizadas, alforriadas ou libertas, sobretudo na Bahia.

Foram também leiloadas obras de arte contemporânea, de nomes como o pintor goiano Siron Franco. Ao custo de R$ 1 milhão, o item mais valioso de todo o conjunto era um óleo sobre tela do pintor renascentista italiano Niccolò Frangipane.

No lote único arrematado pela Fundação, destacam-se ainda peças vindas de Benin e da Nigéria, na África, uma rara Nana Negra, da artista franco-americana Niki de Saint Phalle, avaliada em R$ 180 mil, e orixás esculpidos em madeira, que fizeram parte da coleção do artista plástico argentino Carybé (1911-1997).

Bergamin salienta que o leilão encontrou um cenário propício: está em voga no mundo, disse ele, uma valorização da produção de artistas negros e indígenas. É um fenômeno mundial, que o acervo reflete, sendo que Araujo o “construiu fora dessa moda agora”, ao longo de mais de cinco décadas.

Tela do pintor italiano Niccolò Frangipane: R$ 1 milhão
Tela do pintor italiano Niccolò Frangipane: R$ 1 milhão

“A coleção dele nunca foi estanque. Ele era um colecionador compulsivo, que comprava, trocava e vendia peças. Chegou a possuir uma grande quantidade de criações do ceramista português Bordalo Pinheiro, mas vendeu há pouco mais de cinco anos para o Museu Berardo, de Lisboa”, conta o marchand.

Emanoel Alves de Araujo nasceu em 1940, em Santo Amaro da Purificação, Bahia. Escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo e pintor, Araujo teve sua primeira experiência institucional na primeira metade da década de 1980, quando recuperou e dirigiu o Museu de Arte da Bahia (MAB), em Salvador.

Entre 1992 e 2002, foi responsável pela revitalização da Pinacoteca, em São Paulo. Em 2004, fundou o Museu Afro Brasil, cujo acervo abriga até hoje obras doadas também de sua coleção particular.