Foi-se o tempo – felizmente – que as crianças francesas podiam tomar vinho na cantina escolar, prática abolida em 1956. Desde então, nenhum líder francês promoveu tanto essa bebida quanto o atual presidente Emmanuel Macron, que afirma tomar dois copos por dia e ressalta que uma refeição sem vinho “é um pouco triste.”
É verdade que esse símbolo da França, considerado um monumento da gastronomia, precisa atualmente de um bom empurrãozinho no país: o consumo vem caindo nos últimos anos, perdendo espaço para a cerveja, sobretudo entre o público mais jovem.
Em dezembro, o comitê nacional de interprofissões de vinhos com denominação de origem e indicação geográfica (Cniv, na sigla em francês) e a federação Vinho e Sociedade (que reúne a produção e as vendas e afirma representar meio milhão de pessoas que lidam com o setor) lançaram um alerta sobre o problema da redução do consumo de vinho na França.
Segundo eles, a redução ameaça não só uma cultura de dois mil anos, mas também a economia do país, com possíveis falências de vinhedos. Alguns produtores afirmam temer o fim da viticultura francesa.
Algo pouco provável, ainda mais considerando a força das exportações francesas de vinho, que atingiram em 2021 (último dado disponível), uma receita de 10,6 bilhões de euros, uma progressão de 27,5% em relação ao ano anterior.
A França é o segundo maior consumidor mundial de vinhos, atrás apenas dos Estados Unidos, segundo a agência FranceAgrimer, ligada ao ministério da Agricultura. Mas, em 60 anos, o consumo de vinho na França despencou 70%, passando de mais de 120 litros per capita por ano para cerca de 40 litros atualmente, de acordo com o Observatório Francês de Drogas e Toxicomanias (OFDT). Em 2021, houve uma queda de 11% em relação a 2019, segundo um estudo desse organismo publicado em dezembro.
O recuo do consumo na França é particularmente acentuado entre os jovens. Em 2014, o vinho representava 31% das compras de bebidas alcóolicas realizadas por pessoas com idade de 18 a 35 anos. Em 2021, esse número caiu para 23% nessa faixa etária, de acordo com dados da consultoria Kantar. “Um dos desafios do setor de vinhos é assegurar uma renovação geracional dos consumidores”, disse ao NeoFeed Claire Piat, consultora da Kantar especialista em bebidas.
Na pátria do vinho, a cerveja, principalmente a artesanal, vem cada vez mais ganhando espaço no mercado de bebidas em geral. É um fenômeno recente. Desde 2019, as vendas de cervejas vêm superando as de destilados, o que jamais havia ocorrido em quase 60 anos, afirma um relatório da OFDT.
Segundo Bernard Farges, presidente da Cniv, entre as pessoas com idade de 25 a 35 anos, a cerveja tem 32% de participação de mercado, enquanto a fatia do vinho é de 27%. Cada nova geração consome menos vinho do que a precedente. Mesmo entre os que consomem mais vinho, a geração entre 50 anos e 65 anos, o volume passou de 80 garrafas por ano em 2011 para 50 garrafas por ano em 2021.
O consumo de vinho tinto, que é o mais vendido na França, caiu 32% nesse período de dez anos, de acordo com um estudo da Kantar. Até as pessoas acima de 65 anos estão comprando mais cervejas: essa bebida passou de 9% do total das compras de bebidas alcóolicas para 12% nessa faixa etária entre 2014 e 2021, de acordo com a consultoria.
O mercado da cerveja na França também mudou bastante desde a época do ex-presidente Jacques Chirac (que governou a França entre 1995 e 2007), conhecido por ser um grande apreciador da marca mexicana Corona.
A França se alinhou à tendência, registrada em vários países, inclusive o Brasil, de cervejas artesanais, algo que se insere na busca do consumidor com um certo poder aquisitivo por produtos, em geral, de melhor qualidade e produzidos localmente. Dessa forma, passa a ser algo a ser degustado, como o vinho.
No final dos anos 2000, existiam cerca de 200 cervejarias artesanais no país, esse número pulou para cerca de 2,3 mil atualmente, segundo o sindicato nacional da cervejaria francesa. Basta circular por Paris para ver como até pequenos bares de bairro oferecem cervejas que escapam das marcas industriais conhecidas. Outro elemento novo é o fato de que o público feminino também passou a apreciar mais o produto.
Vários estabelecimentos especializados nesse tipo de bebida abriram na capital francesa. Entre eles, o Paname Brewing Company, no canal de l’Ourcq, e a Brasserie BapBap, que produz no local. A efervescência dos franceses pelas cervejas artesanais atraiu empresas de fora, como a cervejaria belga Brussels Beer Project, que abriu duas unidades na cidade, ou a escocesa Brewdog, no Marais.
Os supermercados não demoraram para acompanhar a tendência e também passaram a oferecer diversos tipos de cervejas artesanais. Os rótulos costumam ter nomes insólitos. La Parisienne, Princesse Inca ou Brie (como o queijo) são algumas das marcas.
Apesar do crescimento no consumo de cervejas artesanais na França, acompanhado pelo aumento da produção local (70% do volume vendido é produzido no país, de acordo com o sindicato do setor), a França, com 33 litros anuais da bebida por habitante, ainda é o penúltimo país consumidor de cerveja entre os demais da União Europeia. Existiriam cerca de 10 mil referências na França, incluindo todos os tipos, de acordo com a associação profissional.
A cerveja, sobretudo entre o público mais jovem, não é o único elemento que explica a queda nas vendas de vinho na França. Campanhas de prevenção para a redução no consumo de álcool vêm surtindo efeito.
“Em razão dessas campanhas, as pessoas compram cada vez menos bebidas alcóolicas na França, embora as pessoas com mais de 65 mantenham em geral seus hábitos”, afirma Claire Piat, da consultoria Kantar. Ela aponta essas medidas pedagógicas como o principal fator da diminuição do mercado de vinhos no país.
Nos últimos anos, a diminuição no volume dos vinhos vem sendo compensada por garrafas com preços mais elevados. De acordo com uma pesquisa da Sowine, realizada no ano passado, 56% dos franceses afirmam comprar regularmente vinhos que custam entre 11 e 20 euros (valor que na França já permite ter rótulos de qualidade). Em 2013, apenas 22% costumavam gastar essa quantia.
Agora, com a alta dos preços e preocupações constantes na França em relação ao poder aquisitivo, não se sabe até quando essa tendência poderá continuar. No fim do ano, muitos franceses apertaram o cinto e deixaram comprar produtos festivos tradicionais nessa época, como foie gras e champanhe. A bebida registrou queda de 13,6% em relação ao mesmo período do ano anterior. Vários franceses optaram por espumantes, mais baratos.