Em um dos parágrafos de A Floresta Difícil, primeiro capítulo de Arrabalde – Em Busca da Amazônia, o autor do livro-reportagem, João Moreira Salles, tece um comentário com poder de síntese do processo de devastação que se impôs sobre o bioma desde o final dos anos 1960, quando a ocupação da Amazônia tornou-se obsessão da ditadura militar que então governava o País.
“As forças que avançaram sobre a floresta nunca tentaram compreender a real vocação da mata, aquilo de que ela é capaz. O processo de ocupação da Amazônia pode ser entendido como um grande fracasso epistêmico”, diz ele.
E é justamente a busca dessa compreensão e de exemplos de combate ao pensamento extrativista que transforma mata em deserto que motivou o documentarista a fazer uma imersão de seis meses na Amazônia paraense para a produção da série de seis reportagens originalmente publicadas, de novembro de 2020 até abril de 2021, na revista piauí, da qual é fundador e editor.
De forma ampliada, as reportagens – que reúnem dados históricos, recortes de pesquisas econômicas e de estudos ecológicos, em meio a depoimentos de mais de 70 personagens – estão agora reunidas no livro recém-lançado pela Companhia das Letras.
Em entrevista ao NeoFeed, Moreira Salles falou das motivações e desafios para a criação desse ensaio jornalístico que propõe reflexões sobre algumas das pautas mais urgentes da humanidade, como a emergência climática e os desafios para o desenvolvimento econômico sustentável.
Ele também é tributário das narrativas de viajantes que exploraram o território desde o século XVI até o século XX, como um dos pioneiros, que inspirou o nome do bioma, o frei dominicano espanhol Gaspar de Carvajal, que integrou a primeira expedição amazônica, em 1541 e grandes escritores brasileiros como Euclides da Cunha e Mario de Andrade.
Na conversa, o autor também explica a metodologia de construção das histórias reunidas no livro, segundo ele, assemelhada às práticas de sua atuação de documentarista na direção de filmes consagrados como Notícias de Uma Guerra Particular (longa de 1999 codirigido com Katia Lund), Entreatos (2004) e No Intenso Agora (2017).
E destaca o que deveria ser uma política de Estado. “Um projeto de país digno seria compreender essa riqueza e a partir dela transformar o Brasil naquilo que muito pouca gente pode ser que é uma potência ambiental dos trópicos”
O que o motivou a fazer a série de reportagens?
Decidi ir para lá no segundo semestre de 2019, porque já estava claro que a Amazônia estava virando uma terra de ninguém, como de fato virou. Eu sugeri ao André Petry, diretor de redação da piauí, fazer uma série de reportagens sobre a Amazônia, o que significava ir para lá e ficar por seis meses. Essa foi a razão profissional. Mas, do ponto de vista pessoal, estava incomodado com o fato de que conhecia muito pouco a Amazônia assim como a maioria de nós, brasileiros. Esse é um dos problemas da Amazônia, a maneira de como ela é desconhecida de boa parte dos brasileiros, e como ela não está investida de curiosidade, de afetos, de como ela não emprega nossa imaginação.
"Esse é um dos problemas da Amazônia, a maneira de como ela é desconhecida de boa parte dos brasileiros, e como ela não está investida de curiosidade, de afetos"
Por que você escolheu a Amazônia paraense para essa imersão?
A Amazônia é grande demais, maior do que a Europa Ocidental, então, em seis meses você não conhece a Amazônia inteira e é melhor circunscrever a Amazônia possível de se conhecer. E o Pará é um bom lugar para se dedicar à floresta, porque tudo que acontece na Amazônia, de certa maneira, está presente lá. O Pará tem unidades de conservação, terras indígenas, grandes obras de infraestrutura, grandes cidades, territórios quilombolas, tensão fundiária.
Como surgiram as histórias narradas no livro?
Aluguei um apartamento em Belém e ali era minha base, de onde eu saía para viagens e voltava. Nessas viagens eu queria conhecer todos esses aspectos da Amazônia que podem ser identificados no Pará. As viagens duravam de poucos dias até uma ou duas semanas. Os personagens eram encontrados nesses momentos das viagens. Poucos personagens eu sabia de antemão que iria encontrar. Algo que não é muito diferente de fazer um documentário. Você meio que acredita na sua sorte e produz a sua sorte. Em seis meses, evidentemente, a chance de você ter sorte é muito grande.
Um dos recortes impactantes do livro é o capítulo em que você fala do simbolismo da BR 163 para a compreensão da ocupação extrativista e predatória da Amazônia. Como se deu essa percepção?
Peguei a BR 163 de Santarém até Itaituba (cerca de sete a dez horas de viagem, a depender das condições da rodovia). É uma estrada em que, à direita, você vê uma floresta nacional exuberante, em seu esplendor máximo. Do lado esquerdo, saindo de Santarém, você vê alguma atividade econômica no início da viagem, vê alguma soja, mas depois entra num território mais ocidental onde chove mais, portanto a soja não é viável, e ali o que se vê é um deserto. A gente produziu um deserto humano. As pessoas têm a noção, em função da máquina de propaganda do agronegócio, de que ali esta sendo produzido uma espécie de Vale do Silício da agropecuária mundial. Isso não é verdade. Os índices de produtividade da Amazônia são piores do que medíocre. São poucos os lugares do mundo em que a pecuária é menos produtiva.
"A gente produziu um deserto humano. As pessoas têm a noção de que ali esta sendo produzido uma espécie de Vale do Silício da agropecuária mundial. Isso não é verdade"
Por que a agropecuária tem índices tão baixos naquele bioma?
O modo de ocupação não é a extensividade, você coloca lá uns bois magros e tristes e quando a terra se esgota e você é incapaz de se sustentar, você abandona e segue adiante, abandona e segue adiante... Evidentemente esse não é um modelo sustentável, e ele foi apoiado e incentivado por esse governo que agora vai embora. É um crime de lesa-pátria. É de fato entregar o maior ativo que o Brasil possui para a criminalidade. Como esse governo era muito ligado ao pensamento militar e os militares sempre foram obcecados pela ideia de soberania da Amazônia, a grande ironia é que exatamente nesse governo a gente perdeu essa soberania e a Amazônia foi entregue a esse tipo de ator social, ao grileiro, ao garimpeiro ilegal e à criminalidade. É isso que se vê na BR 163.
Em algum momento das viagens você se sentiu ameaçado?
Não. Mas estive com muitas pessoas que vivem em situação de risco, porque são defensores da floresta, ativistas, líderes indígenas e religiosos. Estive em Anapu (PA), nos 15 anos da morte da Irmã Dorothy, quando se celebrou uma missa em homenagem a ela, e naquele lugar tinha ao menos umas dez ou 12 pessoas juradas de morte. Dom Erwin Kräutler, arcebispo emérito do Xingu, anda pra cima e pra baixo com seguranças. Passei um período em Rondônia acompanhando uma jovem líder indígena e sobre ela, o pai e a mãe dela, têm ameaças, assim como vários amigos que conheci nos últimos anos. Como jornalista, em determinados lugares se você chega num dia, é melhor ir embora no outro.
De que maneira é possível constatar isso?
Você pressente que não deve ficar por mais de 48 horas. Começa a receber recados. Em cidades maiores existe uma rede de comunicação porque são cidades que, em geral, estão na fronteira do desmatamento e vivem da economia do crime, da madeira ilegal, do garimpo ilegal. Em Novo Progresso, entrei numa loja muito grande dedicada ao garimpo. Poucos são os garimpos legais naquela região, e quem compra ali está comprando equipamentos para uma atividade ilegal. Então é claro que a presença de pessoas que vão contar essas histórias incomoda. E tudo isso piorou muito nos últimos quatro anos porque houve uma espécie de salvo-conduto para que o crime pudesse se estabelecer.
Como é possível unir desenvolvimento econômico e sustentabilidade na Amazônia?
Não há uma contradição, e o Brasil já mostrou que é possível fazer isso de outras maneiras. Naquele período de Marina (a ex-ministra do Meio Ambiente entre 2003 e 2008, Marina Silva), tivemos uma grande redução do desmatamento e ao mesmo tempo um aumento expressivo da produção agroflorestal no bioma Amazônia. Enquanto o Estado não estiver presente, a pecuária extensiva de baixa produtividade será sempre economicamente mais interessante. Ela custa menos porque não requer nada. Você não precisa fertilizar o solo, não precisa cuidar da terra, não precisa enriquecê-la: simplesmente vai cortando árvore e avançando. Esse é um modelo que é insustentável. A taxa de alocação, ou seja, o número de bois por hectare na Amazônia é patética. Em torno de um boi por hectare (área equivalente a um campo de futebol). Alguns poucos produtores competentes na Amazônia têm mais de dez (bois).
"Enquanto o Estado não estiver presente, a pecuária extensiva de baixa produtividade será sempre economicamente mais interessante. Esse é um modelo que é insustentável"
A escalada do desmatamento também ficou escancarada para você?
Temos quase uma Bélgica, 35 milhões de hectares, de terras que foram desmatadas, só nesses últimos três anos – terras como essas que eu vi à beira da BR 163, onde não há nenhuma atividade econômica. O Estado brasileiro nunca parou pra pensar no que a floresta é capaz. Um projeto de país digno, de um país que tenha a ambição de ser relevante, seria compreender essa riqueza e a partir dela transformar o Brasil naquilo que muito pouca gente pode ser que é uma potencia ambiental dos trópicos. E isso, em 2022, com a emergência climática, não é pouca coisa.
Como é possível desenvolver esse potencial?
As soluções baseadas na natureza para o problema climático, neste momento, são as únicas que existem. As soluções tecnológicas talvez venham a dar certo em uma década. Então, por enquanto, não tem tecnologia melhor para capturar carbono do que uma árvore. O Brasil devia investir nisso, devia ser a fronteira do conhecimento para todas as soluções baseadas na natureza.
"Não tem tecnologia melhor para capturar carbono do que uma árvore. O Brasil devia investir nisso, devia ser a fronteira do conhecimento para todas as soluções baseadas na natureza"
Algo que está na contramão do que aconteceu recentemente, não é?
No governo Bolsonaro, o Brasil simplesmente militou contra os acordos internacionais de clima. Como diz um amigo meu, é como a Alemanha ir à Organização Mundial do Comércio e legislar contra a indústria automotiva. É a mesma coisa. A nossa competência deveria ser essa: um arco de iniciativas que precisa começar pela redução do desmatamento e pela interrupção da destruição da floresta, além de um investimento de médio e longo prazo em conhecimento do que os trópicos podem oferecer para o mundo em termos de soluções para salvar a natureza. É preciso entender que o Brasil pode ser uma potência tropical. Isso é utópico, mas é uma boa utopia. Em suma: o Brasil deveria ser um país que oferece aquilo que a gente convencionou chamar de biotecnologia, mas dos trópicos. A gente está longe disso, mas quem sabe o próximo governo entenda que essa é a maior tarefa do País nesse momento.
Serviço:
Arrabalde - Em busca da Amazônia
João Moreira Salles
Páginas: 424
Brochura: R$99,90
Lançamento: 12/12/2022
Companhia das Letras