CANNES - No início dos anos 1920, quatro irmãos jovens, filhos de imigrantes poloneses, desembarcaram em Los Angeles, de olho no emergente mercado de cinema. E pouco depois, o quarteto de “forasteiros”, como eram vistos Harry, Albert, Sam e Jack Warner, já tinham associado o sobrenome da família intrinsecamente à Hollywood, construindo o estúdio que ficou com a reputação de o “mais ousado” da indústria.
A trajetória dos irmãos é repassada na série documental “100 Anos de Warner Bros.”, que acabou de chegar à plataforma HBO Max no Brasil, depois de première mundial na Riviera Francesa. Os dois primeiros episódios (de quatro, no total) foram exibidos com toda a pompa na programação da mostra Cannes Classics, nesta 76ª edição do festival que termina hoje, sábado, dia 27.
Dedicada aos nomes que representam o patrimônio do cinema, a mostra destacou a produção concebida para celebrar os 100 anos de sua fundação da Warner, completados em 4 de abril. Com direção de Leslie Iwerks, a série relembra o percurso do estúdio
desde a sua inauguração, em Burbank, na Califórnia, até au empresa se tornar o conglomerado de entretenimento que é hoje. Desde o início, os irmãos estabeleceram uma marca própria.
“A Warner foi o estúdio da classe trabalhadora”, conta o cineasta Martin Scorsese, um dos cerca de 60 entrevistados (entre executivos, diretores e atores), que ajudam a contar a história do estúdio na série narrada por Morgan Freeman.
“Não digo que os outros estúdios procurassem necessariamente se distanciar dos temas da classe social mais baixa. Mas essa era a bandeira da Warner. Era a identidade deles”, completa Scorsese, lembrando que a MGM, por exemplo, tinha uma imagem mais classuda na época.
O primeiro episódio da série se concentra na história dos irmãos, mostrando como eles levantaram a empresa, sempre correndo riscos. O primeiro sucesso do estúdio foi com o cachorro Rin Tin Tin, em 1923, em “Onde o Norte Começa”. O filme consumiu US$ 100 mil e arrecadou US$ 352 mil nas bilheterias, ao transformar um pastor alemão em astro de cinema.
Pouco depois, eles apostaram alto, colocando todo o dinheiro do estúdio em “O Cantor de Jazz”, de 1927, filme de Alan Crosland que marcou uma época. Foi o primeiro longa-metragem falado da história do cinema, o que estabeleceu a Warner como inovadora também do ponto de vista tecnológico e transformou a indústria. A partir daí, os atores do cinema mudo que não tinham uma boa voz ficaram desempregados.
A atração do segundo episódio são os filmes ousados saídos do estúdio desde os anos 1970 até o início dos anos 1990, com destaque para os cineastas que eles ajudaram a projetar. Do estúdio, saíram filmes clássicos como “O Passado Condena” (1971), de Alan J. Pakula, “Amargo Pesadelo” (1972), de John Boorman, e “Caminhos Perigosos” (1973), de Martin Scorsese.
Suas produções seguiam pela contramão, se comparadas aos musicais que faziam sucesso na década de 70, como “Cabaret” (1972), da Allied Artists, “Grease, Nos Tempos da Brilhantina” (1978), da Paramount, “All That Jazz”, da Fox, em 1979. Os filmes da Warner eram os que lidavam com drogas, prostituição, estupro e violência, entre outros assuntos mais pesados que deixavam a plateia desconfortável.
A Warner também é responsável por Dirty Harry: o personagem Harry Callahan, eternizado nas telas por Clint Eastwood. Desde 1971, quando o longa “Perseguidor Implacável” estreou, o estúdio lançou mais cinco produções, subvertendo a noção do policial heroico, já que Dirty Harry fazia justiça com as próprias mãos.
“A Warner deu aos cineastas jovens daquela época, a sensação de que tudo poderia ser feito no cinema, incluindo os filmes mais violentos”, conta Oliver Stone, em depoimento. Seu primeiro título com a Warner foi o horror psicológico “A Mão”, em 1981, um cult sobre homem que perde a mão em acidente de trabalho, o que desencadeia uma série de assassinatos.
O terceiro episódio da série põe em foco as franquias do estúdio, como a iniciada com “Batman”, de Tim Burton, em 1989. Na quarta parte, a narrativa passa pelos avanços digitais os novos desdobramentos de filmes de super-heróis graças à associação com a DC Comics. Vale lembrar que o primeiro blockbuster do gênero foi “Superman: O Filme”, que obteve uma renda mundial de mais de US$ 300 milhões, em 1978.
Como tudo gira em torno dos riscos que a Warner correu ao longo dos anos, “Casablanca” (1942), também é mencionado na série. Entrevistas de arquivo são recuperadas aqui para relembrar a audácia do estúdio, principalmente no que diz respeito ao roteiro.
“Nem eu sabia quem a minha personagem deveria amar, já que o roteiro era escrito dia após dia durante a filmagem. E eles mesmo me diziam que não sabiam com quem Ilsa Lund ficaria. Por isso, nós acabamos rodando dois finais”, conta Ingrid Bergman (1915-1982), referindo-se ao triângulo amoroso com Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Victor Laszlo (Paul Henreid).
“Se ‘Casablanca’ tivesse terminado com Bergman e Bogarti juntos, em um final mais romântico, o filme não teria se tornado uma lenda em Hollywood”, reforça Howard Koch (1902-1995), um dos roteiristas do clássico, em depoimento de arquivo.