O pintor e ilustrador carioca Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) voltou recentemente aos holofotes depois dos ataques golpistas de 8 de janeiro, em Brasília, quando um dos vândalos depredou o quadro "As mulatas", que estava exposto no Salão Nobre do Palácio do Planalto. A obra é avaliada em R$ 8 milhões, mas especialistas acreditam que em leilão chegaria a R$ 40 milhões.

Para quem está longe do mundo milionário das artes, Di Cavalcanti foi um caso raro em seu meio que pôde usufruir da glória e da riqueza – depois de uma vida de pobreza e privações de décadas – enquanto estava vivo. Viu seus quadros hipervalorizarem no mercado e tirou proveito disso para o bem e para o mal.

No segundo caso, acomodou-se e se repetiu à exaustão para atender às demandas do mercado, como observa o jornalista e escritor Marcelo Bortoloti, que lança a primeira e – certamente – a definitiva biografia do artista.

Em mais de 500 páginas de uma leitura fluida e prazerosa, "Di Cavalcanti – Modernista Popular" (Companhia das Letras), o autor conta a vida do pintor em detalhes, mas traz uma passagem reveladora sobre o contexto em que o artista brasileiro se beneficiou dessa valorização de seus quadros e gravuras.

Isso teria ocorrido na virada para a década de 1970, quando a economia brasileira vivia a era do “milagre econômico”, em que o dinheiro circulava com facilidade, graças à entrada de empréstimos estrangeiros que davam sustentação à ditadura e tentava conter a inflação.

E os efeitos atingiram o mercado de arte, que passou a ser visto como uma alternativa segura de investimento. “Pela primeira vez no Brasil, pinturas, esculturas e desenhos foram considerados ativos financeiros de fato, podendo oferecer lucro rápido e garantido”, escreve o autor.

A transferência do capital especulativo para obras de arte obedecia, segundo o autor, uma tendência já evidente na Europa e nos Estados Unidos, onde os grandes bancos comerciais tinham coleções de quadros como uma espécie de reserva financeira.

Entre 1951 e 1970, por exemplo, continua ele, o valor das pinturas impressionistas europeias subiu em média 1.700%, provando ser este um dos melhores negócios para se ganhar dinheiro.

A obra "Carnaval' apresentada na exposição do Farol Santander, em São Paulo
A obra "Carnaval' apresentada na exposição do Farol Santander, em São Paulo

“Em 1967, a casa inglesa de leilões Sotheby’s chegou a criar uma espécie de guia para investidores sem repertório cultural, com histórico de valorização de determinados artistas para indicar qual o investimento mais aconselhável.”

Para Bortoloti, além das galerias que atuavam no Rio e em São Paulo, duas casas de leilão começaram a disputar espaço nesse concorrido mercado da especulação cultural. Uma delas era a Bolsa de Arte, criada pelo empresário José de Carvalho, ex-sócio da Petite Galerie, que pretendia fazer um paralelo com a Bolsa de Valores.

A outra se chamava Collectio, do italiano Paolo Businco, que usava nome falso para se passar por brasileiro. E foi responsável por um salto exponencial das cotações na época. “Ele comprava coleções inteiras com dinheiro emprestado dos bancos, e vendia as obras em concorridos leilões, dando grande publicidade aos recordes de preço que cada uma atingia”.

Essa nova lógica que colocou o mercado no centro das atenções foi vantajosa para alguns artistas, mas inconveniente a muitos. “Na prática, criou o fetiche sobre o valor monetário da obra de arte, já verificado no ambiente cultural norte-americano. A grandeza artística de um quadro ou de um pintor poderia ser medida pelos preços com que era negociado”.

E como nem todos poderiam atingir as melhores cifras, um seleto grupo teve sua obra potencializada diante de investidores e da opinião pública, Di Cavalcanti entre esses, assim como Tarsila do Amaral, Portinari, Guignard, Ismael Nery, Lasar Segall e José Pancetti. Artistas ligados à Semana de Arte Moderna ou um pouco posteriores a ela.

O intruso carioca em meio a elite paulistana

Além desse tema, Bortoloti presta um serviço histórico e cultural para a melhor compreensão e acessibilidade a pelo menos um episódio complexo e polêmico da vida cultural brasileira: a Semana de Arte Moderna de 1922. Ao seguir os passos de seu personagem, o autor permite tudo ficar mais fácil de ser compreendido. E faz justiça ao pintor que, no primeiro momento, foi um intruso carioca em meio à elite artística paulistana, que pegou para si o lado revolucionário daquele evento.

Todas suas facetas e contradições aparecem na narrativa. Do artista prodigioso ao homem apaixonado e contestador, dono de uma personalidade forte, traços que fizeram dele um nome incontornável para se compreender a história cultural do Brasil no século XX.

A biografia mostra que Di Cavalcanti estava no lugar certo e na hora certa, quando saiu do Rio para fazer uma despretensiosa exposição individual de gravuras na Livraria O Livro, na região central de São Paulo.

A mostra foi visitada pelo celebrado escritor Graça Aranha, que convidou o autor a participar das rodas de discussões de escritores, pintores e músicos que pregavam uma renovação na cultura nacional.

Di Cavalcanti se tornou um dos articulares da exposição de 1922 e alcançou bem mais, segundo Bortoloti. “Ele fez a programação visual do evento e foi um importante incentivador de primeira hora”, disse em entrevista ao NeoFeed.

A história do artista como vanguardista da pintura estava apenas começando. Desde adolescente e até a década de 1940, para sobreviver, Di Cavalcanti trabalhou em importantes jornais cariocas, como o Correio da Manhã, nas funções de ilustrador e cronista, influenciado por escolas artísticas da virada do século como simbolismo, art nouveau e tendências das artes gráficas francesas em desenhos, ilustrações e caricaturas.

Em 1923, com recursos próprios, Di Cavalcanti convenceu o jornal a torná-lo correspondente em Paris, onde o que havia de mais interessante em pintura acontecia, com movimentos artísticos de vanguarda. Sua intenção era tomar pé desse mundo revolucionário do cubismo e do surrealismo, que tanto o influenciaria. Mas quase tudo deu errado.

Di, em Paris, na década de 20: recursos próprios como correspondente da revolução nas artes
Di, em Paris, na década de 20: recursos próprios como correspondente da revolução nas artes

O artista perdeu o emprego, passou fome, ganhou uns trocados pintando cartazes de rua e virou operário. Teria pedido ajuda financeira a Oswald de Andrade, que vivia em Paris e formava casal com Tarsila do Amaral.

Se voltou com a mala vazia de roupas, objetos e dinheiro, o mesmo não se podia dizer da cabeça, que fervilhava de ideias. Em paralelo às redações de jornais, de onde tirava seu sustento, Di Cavalcanti construiu uma sólida carreira de pintor. “Nessa volta ele desenvolveu a arte modernista dele, com a valorização do negro e do ‘mestiço’ do Brasil.”

Seu livro começa com um dos episódios mais lendários e emblemáticos da vida – e da morte – do artista. Em 1976, durante seu velório, a casa foi invadida pelo cineasta e diretor Glauber Rocha, que ignorou aquele momento de dor familiar para filmar seu ídolo no caixão de um tanto invasivo e perturbador.

O curta-metragem que resultou dessa experiência foi premiado no Festival de Cannes, mas proibido no Brasil – até hoje – graças a uma ação da família na justiça.

Proibido, mas disponível na internet (veja abaixo). “A família se ressente muito, pela delicadeza e dor do momento, estava sofrendo com sua perda e Glauber entrou com aquela fúria típica dele”, afirma o biógrafo, que vê uma série de valores no curta tanto tempo depois.

“Glauber atualiza Di Cavalcanti, mostra várias facetas suas, conectadas com a contemporaneidade do conjunto de sua obra”. Era exatamente isso que queria o maior expoente do Cinema Novo.

Quando isso aconteceu, embora famoso e rico pela venda de seus quadros, o pintor parecia ter caído no ostracismo, transformando-se em uma peça de museu. Para Bortoloti, era mais lembrado como pertencente ao grupo do já distante movimento de 1922.

“Ele foi ficando meio envelhecido, sempre citado como a figura do pioneiro, uma figura histórica distante. E Glauber queria colocá-lo na perspectiva da arte contemporânea, seu filme é uma celebração de uma figura boemia e libertária”.

No processo de escrita, chamou atenção do biógrafo que o pintor esteve vinculado a todos os mais importantes acontecimentos políticos e culturais do século passado, direta ou indiretamente: era sobrinho de José do Patrocínio e toda sua família era abolicionista; participou da modernização da imprensa no Brasil; foi fundamental na Semana de 1922; destacou-se na revolução comunista de 1935 – ligado ao Partido Comunista do Brasil, foi preso três vezes. E não parou ai.

A ficha de Di: preso três vezes nos anos 30
A ficha de Di: preso três vezes nos anos 30

Na Segunda Guerra Mundial, Di Cavalcanti estava em Paris quando os alemães invadiram a cidade. De volta ao Brasil, viveu em meio à discussão entre arte abstrata e concreta que marcou a criação da Bienal de São Paulo e a invenção do mercado de arte no Brasil, com extrema valorização – da qual se beneficiou bastante. “Coisas importante que foram acontecendo no Brasil e no mundo em que ele estava no meio. Mais que um artista, revelou-se um agente cultural”.

O lançamento da biografia do artista coincide com a abertura da exposição inédita "Di Cavalcanti – 125 anos", no centro de cultura Farol Santander São Paulo. A mostra reúne obras raras e extraordinárias de coleções particulares de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Fortaleza.

Um dos destaques é a tela “Carnaval” (1929/30), adquirida na década de 1930 por um colecionador em Paris, onde permanecendo até o ano passado, quando retornou ao Brasil. A curadoria é de Denise Mattar e fica em cartaz até 7 de janeiro de 2024.

Di Cavalcante livro Marcelo Bortoloti

Serviço:
Di Cavalcanti: modernista popular
Marcelo Bortoloti
Companhia das Letras
536 Páginas
R$ 134,90