Após a morte de David Bowie, em 2016, aos 69 anos, os administradores do seu espólio deram ao cineasta Brett Morgen acesso irrestrito aos seus arquivos. A única exigência foi que ele se inspirasse nesse legado criativo, com mais de cinco milhões de ativos de mídia, para realizar não um documentário. Mas uma “experiência imersiva” à altura da arte e da visão de mundo dessa lenda da cultura pop.

Batizado de “Moonage Daydream” (Devaneio Lunar), o mesmo título da canção escrita por Bowie em 1971, o longa-metragem teve première mundial na recém-encerrada 75ª edição do Festival de Cannes, fora de competição. Morgen correspondeu ao que era esperado, proporcionando uma janela pouco convencional para a mente do artista que tanto inovou e quebrou paradigmas.

Nada de cinebiografia presa ao factual e à cronologia. Ou de documentário determinado em examinar quem foi o biografado, usando depoimentos do próprio e de contemporâneos ou especialistas para explicar a sua importância. O que “Moonage Daydream” faz é evocar um estado de espírito, o que é suficiente para entender a singularidade de Bowie.

A obra traz muitos arquivos inéditos, costurados apenas pela temática, como a criatividade, a bissexualidade ou a espiritualidade de Bowie. Podem ser trechos de entrevistas ou de videoclipes ou ainda cenas de performances ou de fãs enlouquecidos, sempre amarrados pela voz ou pelo canto do próprio. Há ainda imagens aleatórias feitas especialmente para o filme (algumas de caleidoscópio, de labirintos ou do espaço), o que ajuda o espectador a se conectar com o universo de Bowie.

O artista soube se reinventar como ninguém, colecionando personas como Major Tom, Ziggy Stardust, Aladdin Sane, Halloween Jack e Thin White Duke, entre outras. “Como nunca quis me expor para o público, criei uma série de personagens. Só à vezes, quando eu perdia o controle, as pessoas conseguiam ver o verdadeiro Bowie”, conta o cantor, em uma das entrevistas selecionadas para o filme, ainda sem data de lançamento no Brasil.

Como ele mesmo explica, em outro momento, sua “abundante curiosidade sobre a vida” era refletida em um “pudding de ideias”. E a declaração acaba contribuindo para reforçar a abordagem de Morgen, que expõe fragmentos, como se quisesse apresentar um mosaico sensorial e musical – sem a preocupação em nomear cada uma das diversas fases da carreira de Bowie.

Morgen segue uma linha parecida com a de “Kurt Cobain: Montage of Heck”, que ele assinou em 2015. Aqui ele pintou um retrato íntimo do fundador do Nirvana a partir de seus cadernos de anotações, gravações de áudio, fotografias, desenhos, pinturas e vídeos caseiros. E, no final, o espectador fica com a impressão de que Cobain sempre deu sinais de suas tendências suicidas, o que se comprovou em 1994, quando ele morreu, aos 27 anos.

No caso de Bowie, Morgen constrói uma narrativa toda calcada na genialidade do artista em fazer o estranho parecer normal. A começar pela sua androginia, que marcou a sua carreira no início dos anos 70. Ele se apresentava e dava entrevistas usando vestidos, roupas coloridas e sapatos de salto plataforma. “Visto o que considero estimulante, buscando despertar a reação nas pessoas”, conta o artista, que sempre valorizou o que era diferente ou ambíguo.


Ser bissexual também nunca foi um segredo. “Houve um tempo em que o homem, como o da geração de meu pai, só pensava em ter um emprego para sustentar a família. Mas agora o que todos querem é ter um papel na sociedade. Ter uma posição e se assumir como indivíduo. E para isso vale todo o tipo de busca. Não precisamos pensar em feminino e masculino como algo absoluto”, afirma Bowie.

Há pouco de sua vida pessoal – exceção feita à relação problemática com a mãe, à influência do irmão (que sofria de esquizofrenia) e ao segundo casamento, com a modelo Iman. Na maior parte do tempo, Bowie fala de sua vida solitária: “Quem vive isolado, em vez de sentir o mundo todo como a sua casa, cria um microcosmo dentro de si mesmo. E é isso o que mais me fascina”.

Há ainda espaço no filme para as várias facetas do artista, incluindo trabalhos em videoarte, pintura, cinema, teatro e dança. “Sempre fiz tudo o que queria fazer. Desde os meus seis anos, eu já estava determinado em fazer da minha vida uma grande aventura. Foi importante expandir os meus horizontes”, conta Bowie.

Trechos de suas canções e de suas entrevistas também resgatam um pouco da sua filosofia de vida e de sua espiritualidade. “Nunca caí na armadilha de ficar só pensando em um futuro no qual tudo seria melhor. Só apreciando o processo é que você cria e vive os seus sonhos”, diz o artista, acrescentando que sempre acreditou em uma forma de energia. Não necessariamente em Deus.

“Minha busca por algo maior sempre foi forte, apesar de eu preferir uma base espiritual própria. Eu podia ser budista na terça, mas só queria saber de Nietzsche na sexta”, conta ele, rindo.