O que a aversão à inteligência artificial tem a ver com o veganismo? Acredite, muita coisa. À medida em que a tecnologia generativa avança, é crescente o número de acadêmicos dedicados a investigar os motivos pelos quais algumas pessoas evitam o seu uso.

Nesse movimento, ganha força a tese de que a curva de adoção da IA não segue o padrão comum a todas as outras ferramentas emergentes. Determinadas características do processo de incorporação (ou não) dos algoritmos ao cotidiano são exclusivas da inteligência artificial — e, em vários pontos, elas encontram paralelo com o estilo de vida 100% livre de animais. Bem-vindo ao universo dos “veganos de IA”.

“Novas tecnologias geralmente seguem o ciclo de vida de adoção tecnológica. Inovadores e pioneiros se apressam em adotar novas tecnologias, enquanto retardatários e céticos se lançam muito mais tarde”, escreve David Joyner, reitor associado e pesquisador sênior da Faculdade de Computação do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos, em artigo para a plataforma The Conversation.

E ele compara: “Ao contrário de muitas outras tecnologias, é importante não presumir que céticos e retardatários acabarão adotando novas tecnologias. Muitos dos que se recusam a adotar a IA, na verdade, se enquadram no arquétipo tradicional do adotante precoce (...) que frequentemente estão entre os primeiros grupos demográficos a adotar novas tecnologias”

Um dos trabalhos mais recentes sobre o tema, conduzido por pesquisadores das universidades americanas da Geórgia e Brigham Young e apresentado na última Conferência Internacional de Ciências de Sistemas, fala sobre esse comportamento. Eles entrevistaram cerca de 550 mulheres e homens, todos com experiência em IA generativa.

Entre os principais motivos citados pelos voluntários para o abandono da tecnologia estão as preocupações com a qualidade do conteúdo produzido pelos algoritmos, com a ética, com a segurança e com o impacto (negativo) da ferramenta nas conexões humanas e no meio ambiente.

Os resultados são semelhantes aos obtidos em outros estudos. E eles dão pistas de onde os anti-IA se aproximam dos veganos.

Ética, preservação ambiental e saúde

Em relação à ética, por exemplo. O veganismo prega a abolição de todas as formas de exploração animal — seja na alimentação, no vestuário ou no entretenimento. As pesquisas indicam que um dos motivos para o abandono da IA é o desconforto de alguns usuários com o uso frequente de conteúdos sem a autorização de seus criadores.

A degradação ambiental é outro ponto em comum entre os dois grupos. De um lado, está a preocupação com os estragos provocados pela pecuária intensiva. Do outro, a demanda cada vez maior por energia e água pelos sistemas computacionais mais avançados.

Uma terceira razão para justificar porque algumas pessoas optam por banir os animais e os algoritmos de seu dia a dia está na preservação de seu bem-estar físico e mental.

Ao não consumir alimentos de origem animal, os veganos esperam evitar uma série de complicações de saúde. E, para assustar os “veganos de IA”, não faltam estudos sobre os malefícios da tecnologia para a sanidade psíquica de seus usuários.

"Geralmente, os motivos pelos quais as pessoas escolhem o veganismo não desaparecem automaticamente com o tempo (...) não se trata de se sentir mais confortável comendo ou usando alimentos e produtos de origem animal. É por isso que a analogia no caso da IA é atraente", diz Joyner.

Frente uma ferramenta tão poderosa quanto a GenAI, que avança em ritmo acelerado, é natural que, no início, ela cause alguns receios. Um levantamento da consultoria KPMG, realizado com com 48 mil pessoas em 47 países, mostra: 54% delas ainda não se sentem confortáveis em confiar na tecnologia.

Como reforçam os estudiosos, uma parcela dos anti-IA continuará anti-IA — diferente do que normalmente acontece em relação à maioria das inovações.

Para o vegano tradicional, é cada vez mais fácil se manter fiel a seus preceitos. Graças aos avanços das ciências, há uma série de alternativas animal free na indústria da alimentação, moda e beleza, entre tantas outras. Mas dá para os "veganos de IA" levar uma vida 100% livre da tecnologia?

“A IA e o conteúdo gerado por inteligência artificial já são onipresentes. Qualquer pessoa que já tenha usado mídias sociais ou navegado na internet já teve contato com imagens, vídeos e textos gerados por IA”, diz o americano Benjamin Richardson, doutorando na Universidade da Geórgia e coautor do estudo apresentado recentemente, em entrevista ao NeoFeed.

“Apesar de alguma resistência, a IA mudará a forma como as pessoas vivem e trabalham. É importante que indivíduos e organizações aprendam a utilizá-la de maneira adequada e eficaz”, complementa.

Gisele Truzzi, advogada especialista em direito digital e segurança da informação, compartilha da mesma visão. “Como toda tecnologia e ferramenta, não acredito que seja possível demonizar ou santificar a IA, já que quem vai definir a sua função é o próprio usuário”, afirma ao NeoFeed. “A tecnologia é incrível e veio para nos ajudar, mas é preciso ter parâmetros e não usá-la de olhos fechados.”

Não se tem ao certo quem cunhou o termo "vegano de IA". O que se sabe é que ele começou a pipocar em seminários de tecnologia no fim do ano passado. Ou seja, o conceito é recentíssimo.

E aqui?

Por enquanto, o Brasil segue entre os maiores usuários da inteligência artificial no mundo. Segundo um levantamento da OpenAI, dona do ChatGPT, o País é o terceiro maior consumidor da plataforma. Por aqui, são enviadas cerca de 140 milhões de mensagens diárias para o chatbot, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e Índia.

O estudo da KPMG mostra dados semelhantes, que destacam a diferença entre os hemisférios Sul e Norte quando o assunto é adoção da IA.

“Há diferenças notáveis entre países com economias avançadas e emergentes: pessoas em economias emergentes relatam maior confiança, aceitação e adoção da IA, níveis mais altos de letramento e mais benefícios concretos obtidos com a IA”, lê-se na pesquisa da consultoria. “Isso pode ser explicado, em parte, pelo papel cada vez mais importante que as tecnologias emergentes e transformadoras desempenham no desenvolvimento econômico desses países”.

Para Ricardo Santana, sócio-líder de análise de dados, automação e inteligência artificial da KPMG no Brasil, isso também se torna um problema, a partir do momento que as pessoas perdem o senso crítico sobre o que pode ou não ser compartilhado com as plataformas de IA.

“O brasileiro tem enxergado a IA como meio de produtividade e eficiência, não o contrário, o que evita a criação de comunidades anti-tecnologia. Além disso, nós não vivemos grandes demissões ocasionadas pela IA, o que facilita essa visão positiva”, explica Santana, ao NeoFeed.

Porém, essa situação pode mudar na próxima década: “Quando vier a IA física, com robôs e máquinas automatizadas, talvez a gente sinta mais esse impacto e exista um movimento anti-IA”.