Vinho sem álcool não é suco de uva? Não, não é. Ainda que os enófilos mais puristas torçam o nariz, os tintos, brancos, rosés e espumantes com pouco ou nenhum poder etílico ganham cada vez mais espaço. E os produtores e apreciadores das novas bebidas garantem: elas não deixam nada a desejar às tradicionais, em termos de experiência sensorial — a não ser o inebriamento, claro.
Até 2028, os vinhos de baixo ou nenhum teor alcoólico estão previstos avançar a uma taxa de crescimento anual composta de 4%, conforme estudo da consultoria IWSR, realizado em dez mercados, incluindo o brasileiro. Mas são as bebidas totalmente desalcoolizadas que impulsionam o segmento. Ao longo do mesmo período, elas devem registrar um incremento de 7% ao ano, movimentando US$ 4 bilhões, ao final do período.
Globalmente, desde a década de 2010, um movimento de redução na ingestão de álcool começou a ganhar corpo entre os consumidores. A tendência foi consolidada no livro Sober Curious, da americana Ruby Warrington, lançado em 2019. Um “curioso da sobriedade” não é movido pelo ascetismo, pela religião ou por um histórico de abuso, tampouco prega a abstinência. Ele quer apenas beber com moderação.
Em defesa desse estilo de vida, digamos, menos alcoólico estão sobretudo os mais jovens, em especial, os representantes da geração Z. Eles têm demonstrado um interesse maior por bebidas leves, menos calóricas e de menor impacto no organismo. Entre os brasileiros de 18 a 24 anos, por exemplo, 46% garantem não beber nunca e 20% o fazem, no máximo, uma vez por mês.
Os nascidos entre meados dos anos 1990 e início dos 2010 respondem hoje por 40% dos gastos dos consumidores globais, o que representa algo em torno de US$ 140 bilhões em poder de compra, nos cálculos da consultoria McKinsey. Como ninguém quer perdê-los, é natural que produtores ao redor do mundo invistam no desenvolvimento de vinhos desalcoolizados.
Estados Unidos, Austrália, Brasil… e até a Europa, historicamente conhecida pela produção da bebida, estão se curvando aos novos tempos.
A Torres, uma das maiores e mais respeitadas vinícolas da Espanha, investiu cerca de €6 milhões na construção de uma planta dedicada única e exclusivamente aos vinhos com baixos teores alcoólicos. Localizada em Pacs del Penedès, na Catalunha, a unidade deve ficar pronta no próximo ano.
Com isso, a empresa pretende ampliar seu portfólio de zero álcool. A linha Natureo 00 já é composta por rosés, tintos, Chardonnay e até um espumante, o Natureo White, feito com uva Moscatel de Alejandría. A vinícola oferece rótulos de baixo teor alcoólico, como o Miguel Torres Natureo Syrah, com apenas 0,5% de álcool.
A Freixenet, outra renomada produtora espanhola, também aderiu à tendência e lançou espumantes branco e rosé, desalcoolizados.
Os sem álcool nacionais
Curiosamente, aqui no Brasil, as pequenas vinícolas é que estão investindo em vinhos e espumantes zero álcool. Esse é o caso da La Dorni, fundada no início dos anos 2000, em Bandeirantes, no Paraná, uma das pioneiras no segmento.
À época, o objetivo era atender a um público mais velho, que gostava de vinho, mas não podia beber por questões de saúde. Depois, a empresa notou a existência de outros interessados, pessoas de diferentes idades e que, por variadas razões abriam mão de desfrutar do prazer da bebida, sem seus efeitos alcoólicos.
“Foi quando percebemos que na cabeça do consumidor vinho e álcool eram coisas distintas”, diz o sommelier Jonathan Martins, diretor de marketing da empresa, ao NeoFeed. “Com isso, passamos a desenvolver esse tipo de bebida com apoio de especialistas e pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina e criamos um método próprio que é nosso segredo.” O investimento feito até agora foi de cerca de R$ 6 milhões.
Atualmente, além dos vinhos de mesa e varietais convencionais, a La Dorni tem 15 rótulos zero álcool. “Os desalcoolizados surgiram para incluir pessoas, não para substituir os tradicionais”, defende o executivo.
Em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, está a Vinoh, criada em 2020 por Vlademir Grech, sócio-diretor da vinícola. Ali são produzidos apenas oito vinhos com teor alcoólico de 0,5%, o máximo permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para entrar na categoria sem álcool. Entre as uvas utilizadas na produção estão as combinações de Merlot e Aok e Cabernet Sauvignon e Select.
O enólogo suíço Richard Pfister, autor do livro Les Parfums du Vin diz que hoje, graças aos avanços de métodos de desalcoolização é possível preservar grande parte da identidade do vinho, garantindo corpo e complexidade mesmo, sem a presença do álcool.
Pelos moldes tradicionais, o álcool surge da fermentação das uvas. Na produção dos produtos de baixo teor etílico, as leveduras, um tipo de fungo, também fazem a degradação dos açúcares da fruta — o que não acontece nos sucos.
Algumas técnicas interferem nessa etapa da produção, enquanto outras, permitem a retirada do álcool depois da bebida pronta, antes do engarrafamento. Com isso, mesmo sem álcool, os vinhos preservam sabor e aroma.
Nenhum "interessante"
Enquanto isso, as grandes vinícolas brasileiras, ao menos por enquanto, escolheram outro caminho para atender o consumidor zero álcool. Salton, Cooperativa Vinícola Garibaldi e Aurora, por exemplo, estão apostando em bebidas carbonatadas à base de uva. Recentemente, foram convidadas pela Wines of Brazil para promover esse tipo de produto durante a ProWein de Dusseldorf, realizada recentemente na Alemanha.
Ainda que as bebidas gaseificadas à base de uva estejam nas mesmas prateleiras dos vinhos e espumantes tradicionais e dos desalcoolizados, elas são outro tipo de produto.
“Na Salton, usamos uvas viníferas que passam por um processo de carbonatação para ganhar borbulhas. Os vinhos e espumantes passam pelo processo de fermentação”, conta Nicole Salton, customer experience e trade marketing da Salton, ao NeoFeed.
A Cooperativa Vinícola Garibaldi também possui bebidas carbonizadas no portfólio, o Garibaldi Moscato Zero Álcool e o Espumante Garibaldi Prosecco Zero Álcool.
“Elas são elaboradas a partir do mosto, que é o suco da uva, e não passam pela fermentação”, explica. “Ainda assim, nosso Moscato é muito semelhante ao nosso Moscatel. E o nosso Prosecco sem álcool é fidedigno ao Prosecco com álcool”, garante Maiquel Vignatti, gerente de marketing da companhia.
Apesar do entusiasmo em torno dos vinhos e espumantes desalcoolizados e das bebidas gaseificadas, eles estão longe de ser unanimidade.
“Não sou contra a tendência, mas nunca tomei um vinho ou espumante zero álcool interessante”, confessa Mario Lucas, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), ao NeoFeed. “Isso porque o álcool dá estrutura à bebida”.
Opiniões a favor ou contra sempre existirão. Mas a estranheza frente a uma taça de vinho álcool zero tende a passar. Foi assim, por exemplo, com a feijoada vegana, tempos atrás. A discussão esfriou e o prato já conquistou seu espaço na gastronomia. E, até alguns carnívoros, vez por outra, se deliciam com a iguaria em sua versão sem porco.