Era 1962. Enquanto os Estados Unidos e a Europa comemoravam os avanços da Revolução Verde, com seus fertilizantes e defensivos químicos, sementes geneticamente modificadas e monoculturas a perder de vista, a bióloga americana Rachel Carson desafiou o status quo. No livro Primavera Silenciosa, ela anteviu os riscos oferecidos pela exploração agressiva da terra e dos recursos naturais — para o planeta e a humanidade.

A cientista imaginou a época em que os pássaros desapareceriam e a primavera ficaria em silêncio. “A natureza introduziu grande variedade na paisagem, mas o homem demonstrou uma paixão por simplificá-la “, escreveu. “Assim, ele desfaz os freios e contrapesos pelos quais a natureza mantém as espécies dentro dos limites.”

Mas a Revolução Verde cumpriu seu papel. Alimentou boa parte do um terço da população global que, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a década de 1960, passava fome. Tanto que seu idealizador, o agrônomo americano Norman Ernest Borlaug, ganhou o prêmio Nobel da Paz, em 1970.

Agora, porém, a agricultura intensiva cobra seu preço. Se a monocultura permite a produção de alimentos em larga escala, ao ir contra a diversidade, também torna as plantações mais vulneráveis a pragas e doenças — que exige o uso massivos de insumos tóxicos — que contamina o solo, a água e leva à fragmentação dos ecossistemas — em um círculo vicioso de destruição e miséria.

Reflexo da paisagem simplificada pelo homem, a monotonia de nossos pratos é o atestado (inconteste) da falência dos modelos agroalimentares contemporâneos. Além dos danos ambientais (e por causa deles), a homogeneidade reforça o desperdício de alimentos, aprofunda as desigualdades, agrava a insegurança alimentar e nutricional e acelera a epidemia de obesidade.

A ciência tem catalogados 7.039 tipos de plantas comestíveis. Menos de 6% delas, exatas 417, estão na lista das passíveis de cultivo em escala.

Mesmo assim, 90% de todas as calorias consumidas hoje no mundo vêm de apenas 15 culturas.

E, metade da população global tem sua alimentação baseada apenas no cultivo de arroz, milho e trigo, como mostra o relatório State of World’s plants and funghi, do Royal Botanic Gardens, Kew, na Inglaterra — um levantamento minucioso, do qual participaram 210 pesquisadores, de 97 instituições, em 42 países.

Aqui, vale um parêntese. Cerca de 60% da oferta agrícola global estão, hoje, concentradas no Brasil, Argentina, Estados Unidos, China e Índia. Depender grande parte da segurança alimentar global de apenas cinco produtores traz um enorme risco geopolítico.

Mas, voltando. Do ponto de vista nutricional, a mesmice alimentar não só empobreceu a dieta, mas adicionou um sem-número de substâncias químicas para dar sabor, textura, aroma e cor aos alimentos industrializados, além de estender seus prazos de validade.

No front, O.K. Em casa, não

Desenvolvidos na Segunda Guerra Mundial, os ultraprocessados  foram úteis nos campos de batalha — fáceis de preparar e difíceis de estragar, forneciam as quantidades de calorias necessárias para manter os soldados nas linhas de combate.

O problema surgiu quando uma alimentação criada para o front passou a fazer parte do nosso cotidiano.

Hoje esses alimentos são uma espécie de praga na dieta contemporânea. Estão associados, por exemplo, à escalada da obesidade. Com 1 bilhão de vítimas, entre 1990 e 2022, a enfermidade mais do que dobrou entre os adultos e quadruplicou entre as crianças, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

E o excesso de peso é um principais fatores de risco para diabetes tipo 2. distúrbios cardiovasculares e algumas formas de câncer, entre outros. Chamada as doenças crônicas não transmissíveis, matam, globalmente, uma pessoa a cada dois segundos.

A promoção da monocultura está na origem da monotonia alimentar

Idealizador da Revolução Verde, o agrônomo americano Norman Ernest Borlaug ganhou o prêmio Nobel da Paz, em 1970 (Foto: Reprodução cimmyt.org)

O mapa mostra, por continente, a porcentagem de novas plantas comestíveis descobertas em 2019 (Imagem: Reprodução "State of World’s plants and funghi", do Royal Botanic Gardens, Kew)

Desde 2008, o Brasil é o país com o maior número de novas espécies para a alimentação. Entre as novidades, estão dois "parentes selvagens" da mandioca

Do momento em que a quinoa foi declarada um superalimento, apenas um pequeno grupo das 120 variedades do vegetal está sendo cultivado

Os ultraprocessados são também a comida mais abundante nos desertos alimentares, as periferias das grandes cidades onde vive a imensa maioria das pessoas em situação de fome e onde os alimentos de verdade, frescos e nutritivos, não costumam chegar.

Fácil entender por quê. A monocultura exige áreas extensas de plantação, afastando a produção do mercado consumidor — sobretudo, do mais vulnerável. Não à toa uma das principais estratégias contra a monotonia alimentar é o incentivo ao cultivo de produtos locais.

Além disso, a distância também aumenta a pegada de carbono da agropecuária, quando consideradas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) com o transporte da produção. Tem mais.

A viagem entre a fazenda e o varejo é um dos pontos da cadeia onde mais se perde alimentos, informam os analistas da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura. Boa parte da 1,3 bilhão de toneladas desperdiçadas, todos os anos, no mundo, fica aí, pelo caminho.

Em ultima instância, como em um circuito de feedback, a monotonia de nossos pratos é causa e consequência do desequilíbrio dos sistemas agroalimentares atuais. Responsáveis por 30% das emissões globais de CO², respondem por 70% da perda de biodiversidade em terra e 50% em água doce, nas contas da World Wide Fund For Nature (WWF). Paradoxalmente, estão entre mais suscetíveis às mudanças climáticas.

A exuberância brasileira

“Para tornar nossos sistemas alimentares mais robustos no futuro, devemos diversificar o espectro de espécies usadas, proteger a biodiversidade e salvaguardar os serviços ecossistêmicos essenciais que mantêm a boa qualidade do solo e da água”, escrevem os especialistas, na pesquisa State of World’s plants and funghi.

E, o Brasil, com toda a exuberância de seus ecossistemas, tem uma situação privilegiada — só precisamos aprender como aproveitá-la. Desde 2008, o país mantém a liderança entre as países com o maior número de novas plantas comestíveis descobertas pela ciência, informam os pesquisadores. Só em 2019, por exemplo, foram 216, o equivalente a cerca de 10% de tudo o que foi encontrado no mundo. Entre as novidades, dois “parentes selvagens” da mandioca; dois, do inhame, e um, da batata-doce.

Nos últimos anos, porém, muitas culturas, como os tubérculos brasileiros, têm sido negligenciadas por “pesquisadores agrícolas, melhoristas genéticos e formuladores de políticas”, como define Tiziana Ulian, do Royal Botanic Gardens, Kew.

Resgatar ou estabelecer o cultivo das “esquecidas”, no entanto, não é tarefa fácil.

A quinoa ilustra à perfeição o tamanho da dificuldade. No início dos anos 2010, a semente, originária dos Andes e cultivada pela sociedades pré-colombianas, ganhou fama internacional como um superalimento. Desde então, apenas um pequeno grupo das 120 variedades existentes é semeada.

Ou seja, a variedade genética da planta (e toda sua riqueza) é sufocada para atender às demandas do mercado internacional.

Como defende a pesquisadora Tiziana: “O foco deve ser usar espécies locais e diversificar a gama de plantas utilizadas não só para sustentar a agricultura e os meios de subsistência regionais como alcançar a segurança alimentar local e global”.