Pergunte a qualquer pessoa quais são os principais problemas das grandes cidades brasileiras e, muito provavelmente, ouvirá como resposta: violência, mobilidade, moradia, desemprego... raramente (para não dizer nunca) citarão a fome ou a má alimentação.
Mas, a imensa maioria da população em situação de insegurança alimentar vive em centros urbanos. E, de cada dez adultos moradores das capitais, oito não consomem a quantidade mínima diária de frutas, legumes e verduras, como preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Agora, pergunte onde essas pessoas estão concentradas e, certamente, todos responderão: nas periferias e nos bairros mais pobres. E é isso mesmo. Elas vivem nos chamados desertos alimentares, onde a oferta de comida fresca e saudável ou minimamente processada é escassa ou até inexistente.
A primeira explicação para o fenômeno é também a mais óbvia: falta de dinheiro para comprar produtos in natura e nutritivos. “Mas, além do fator financeiro, existe a questão do acesso físico aos alimentos de qualidade”, diz Jaqueline Ferreira, diretora de pesquisa do Instituto Escolhas, em conversa com o NeoFeed.
Da fazenda ao prato do consumidor, as cadeias agroalimentares são complexas e longas — se chegam às periferias, quando chegam, os produtos são caros demais para uma população empobrecida, frequentemente miserável. Sem contar os choques de abastecimento, cada vez mais comuns em um planeta à beira do colapso ambiental.
Nos desertos alimentares, a comida possível é a ultraprocessada — "a mais rápida e fácil de preparar e a que está mais ao alcance tanto no ponto de vista do preço quanto do acesso físico”, completa Jaqueline.
Rica em sal, açúcares, gorduras e aditivos sintéticos, seu consumo regular está associado ao aumento de uma série de doenças, como distúrbios cardiovasculares, diabetes, obesidade e alguns tipos de câncer.
E, para piorar, enquanto os preços dos alimentos mais saudáveis sobem, os dos mais nocivos à saúde caem. Entre 2006 e 2021, os refrigerantes ficaram 43% mais baratos, por exemplo, mostram os dados do Instituto Escolhas. No mesmo período, porém, a inflação das frutas foi 89% superior ao IPCA.
Os desertos alimentares são um desafio para cidades do mundo inteiro, não apenas do Brasil. E, a sua solução passa necessariamente pele agricultura urbana, defendem os especialistas em uníssono (veja algumas iniciativas nas fotos abaixo).
O exemplo de Curitiba
“Fortalecer e ampliar a produção de alimentos nas cidades e em seu entorno pode ser a chave para disponibilizar alimentos frescos, saudáveis, diversificados, em quantidades adequadas, produzidos de forma sustentável e financeiramente acessíveis, contribuindo, assim, para a promoção da saúde da população”, lê-se no relatório Policy brief — Promoção da saúde e a produção de alimentos nas cidades, de 2024, fruto da parceria entre o Instituto Escolhas e a Cátedra Josué de Castro, da Universidade de São Paulo (USP).
Organização socioambiental de estudo e análise de temas fundamentais para o desenvolvimento sustentável, o instituto mapeou as áreas potenciais para o desenvolvimento da agricultura urbana em cinco cidades — Belém, Curitiba, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Os resultados são surpreendentes.
Na capital paraense, os 344 hectares de espaços ociosos poderiam produzir 19,4 mil toneladas de verduras e legumes, o suficiente para alimentar toda a população da cidade (1,3 milhão de pessoas), ao longo de um ano inteiro. Em Recife, se áreas vazias fossem usadas para a agricultura, daria para fornecer alimentos frescos para cerca de 42% dos moradores em situação de extrema pobreza.
“Em Curitiba, se apenas 5% dos espaços mapeados [301 hectares] fossem ocupados, teríamos 4.849 toneladas, por ano, abastecendo 137 mil pessoas”, diz Jaqueline. É quase a totalidade de habitantes em situação de pobreza e de pobreza extrema.
A agricultura urbana já é praticada. E há muito tempo. Nos quintais das casa, em lotes abandonados, nos telhados de prédios comerciais, nas hortas institucionais, em postos de saúde e unidades de assistência social, exemplifica a pesquisadora: 'Tem de todos os tipos”.
A prática, no entanto, foi "invisibilizada”, diz ela. Historicamente, conforme a agricultura tradicional foi se afastando das cidades e se estabelecendo nas zonas rurais, o modelo saiu do radar do poder público.
Que a lei saia do papel
Sancionada no fim de julho, a lei da agricultura urbana promete trazê-la de volta à luz. A nova legislação prevê uma série de medidas, como o apoio aos municípios na definição de áreas aptas, a viabilização da aquisição dos produtos, a prestação de assistência técnica e o treinamento dos agricultores urbanos, entre outras iniciativas.
Para que a comida de qualidade chegue de fato aos desertos alimentares, as boas intenções devem sair do papel.
Algumas prefeituras já têm programas bem estruturados, como Curitiba. Lançada em 1986, a iniciativa conta hoje com quase 180 hortas comunitárias, com 19,8 hectares, no total, e uma produção anual de cerca de 1,65 mil toneladas de verduras e legumes. A maior parte da produção é para consumo próprio. O excedente pode ser comercializado, proporcionando renda extra para os agricultores.
Os moradores interessados em plantar em vazios urbanos, como linhões de energia e terrenos baldios, apresentam a solicitação à prefeitura. E, se a proposta for aceita, o governo oferece terra, adubo, mudas e sementes e até assistência técnica.
Um reconhecimento ao sucesso do projeto veio recentemente com a notícia de que Curitiba é finalista, ao lado da portuguesa Cascais e da alemã Munique, do World Green City Awards 2024, na categoria Viver Verde para Agricultura Urbana e Sistemas Alimentares.
Em nome também do bem-estar das cidades
Quando o alimento é produzido perto de quem vai consumi-lo, os custos de transporte reduzem, o que impacta o preço final, além de evitar perdas no trajeto entre o produtor e o varejista.
“Circuitos curtos de comercialização estimulam a venda direta dos alimentos produzidos pelos agricultores locais aos consumidores das cidades sem a necessidade de muitos intermediários ou deslocamentos”, informam os analistas do Instituo Escolhas, em relatório.
A agricultura urbana contribui para a o bem-estar das cidades, ao promover a expansão das áreas verdes, facilitando o sequestro de carbono e, consequentemente, melhorando a qualidade do ar e o conforto térmico. O cultivo regenerativo favorece ainda a infiltração de água no solo, o que reduz os riscos de enchentes.
Ou seja, se já não fosse muito levar comida saudável aos desertos alimentares, a agricultura urbana beneficia todos os moradores dos grandes centros urbanos brasileiros.