O dito popular nos ensina a não julgar um livro pela capa. Mas, um terço das frutas e legumes produzidos anualmente no mundo nem chega às gôndolas dos supermercados porque é considerado feio. Imperfeitos esteticamente (mas perfeitos para o consumo) têm o lixo como destino. Em um cenário de fome, insegurança alimentar global, escassez de recursos naturais e emergência climática, é preciso encontrar destinos mais nobres para esses alimentos.
Esse é o foco de várias startups do ecossistema de inovação agroalimentar. Uma delas, a americana The Ugly Company, transforma as frutas enjeitadas por sua aparência em snacks de frutas secas. Na embalagem dos produtos, uma provocação divertida: “Hello! I’m ugly” (Olá! Eu sou feio, em tradução livre).
No início de fevereiro, a foodtech recebeu US$ 9 milhões, em uma rodada de séria A, liderada pela Sun Valley Packing e Value Creation. Também participaram do aporte o cantor e ator Justin Timberlake e a Valley Ag Capital Holdings.
Com isso, o total investido chega a US$ 11,9 milhões, segundo a plataforma Crunchbase. Fundada em 2018, em Kingsburg, na Califórnia, por Ben Moore, a foodtech já salvou do lixo cerca de 2 mil toneladas de frutas.
Para produzir meio quilo de frutas secas, são necessários oito quilos de frescas. Dessa forma, cada pacotinho individual representa quase dois quilos de frutas resgatadas. É o sistema de upcycling, um dos fundamentos da economia circular, aplicado à cadeia alimentar, o que tem forte apelo entre os consumidores.
As cerejas, pêssegos, damascos, kiwis e nectarinas vêm de fazendas do San Joaquin Valley. Para os agricultores, é vantajoso. Eles não precisam mais pagar pela coleta e descarte de frutas ou pequenas ou tenham cor ou formato estranhos.
Os cheques de VC
O combate ao desperdício de alimento é, conforme analistas do mercado, condição sine qua non na busca por um futuro mais sustentável, inclusivo, produtivo e resiliente. Em um mundo onde 830 milhões de mulheres, homens e crianças passam fome, é um contrassenso despachar anualmente para os aterros sanitários 1,3 bilhão de toneladas de comida.
O montante equivale a um terço da produção global e a US$ 750 bilhões de prejuízo. Mantido o ritmo atual, em 2030, o desfalque deve bater a casa do US$ 1,5 trilhão, preveem os analistas da consultoria americana Boston Consulting Group (BCG), no relatório Closing the Food Waste Gap.
Em 2021, as startups dedicadas a combater o desperdício de alimentos levantaram US$ 1,9 bilhão em financiamentos – o dobro dos cheques do ano anterior. Com essa injeção de capital, os aportes chegaram a US$ 7 bilhões, desde 2011. De lá para cá, o valor médio dos negócios foi de US$ 2 milhões para US$ 17 milhões, informa a consultoria americana ReFED.
A mesma análise mostra que o investimento anual de US$ 14 bilhões no setor poderia reduzir as perdas anuais em cerca de 50%, ao longo de todo o sistema agroalimentar e levar a um receita líquida de US$ 73 bilhões, por ano.
No varejo
As perdas acontecem ao longo de toda a cadeia agroalimentar – da colheita às nossas mesas. Mas, o desperdício está concentrado no varejo, lares e restaurantes. São 931 milhões de toneladas postas fora todos os anos.
A França tem uma iniciativa inédita na tentativa de controlar a desperdício. Desde 2016, os supermercados estão proibidos por lei de jogar fora alimentos em condições de consumo. As loja doam os produtos para cerca de 5 mil instituições de caridade, por meio de um banco nacional de alimentos.
“Em nosso mundo, de eventos climáticos cada vez mais extremos, salvar as frutas “feias” não é apenas uma questão de ética, mas de preservação de valiosos recursos naturais”, lê-se no relatório Beauty (and taste!) are on the inside (em tradução livre: Beleza (e sabor!) estão no interior), elaborado por analistas da FAO, a agência para alimentação e agricultura, da Organização das Nações Unidas (ONU).
Recursos naturais
Quase 40% de todos os recursos energéticos usados pelo sistema agroalimentar global são consumidos na produção de alimentos que têm os aterros sanitários como destino. Para produzir uma única laranja, por exemplo, são necessários 50 litros de água, sem contar o uso do solo, a mão de obra dos agricultores e até o combustível usado no transporte do produto.
“Todos esses recursos são perdidos quando o fruto (trocadilho intencional) desse trabalho é desperdiçado”, informa a agência da ONU, no mesmo documento. Além de um entrave à segurança alimentar mundial, o desperdício contribui para o aquecimento global, com 11% do total das emissões dos gases de efeito estufa.
Só os Estados Unidos criam e abatem, anualmente, dois bilhões de galinhas, perus, vacas e porcos, 25 bilhões de peixes e 15 bilhões de moluscos para produzir alimentos que ninguém consumirá. No Brasil, três em cada cem peixes pescados na Amazônia são perdidos por causa das más condições de transporte.
Os especialistas são unânimes em defender que o combate ao desperdício de alimentos só têm chance de funcionar em escala global se todos os envolvidos na cadeia agroalimentar se unirem em torno desse propósito – agricultores, empresas, governos e consumidores. Um primeiro passo pode ser começarmos a aceitar as frutas e legumes feios. Beleza definitivamente não põe mesa.