Desde o momento em que o homem dominou a produção de alimentos, cerca de 10 mil anos antes de Cristo, nunca como agora, o papel dos consumidores foi tão marcante e decisivo. Ultraconectados, mais bem informados e exigentes, eles ajudam a escrever o futuro da alimentação — de coadjuvantes passivos a também protagonistas de uma revolução sem data para acabar.
Essa é uma das principais conclusões do estudo “Future of Food”, realizado pela Backslash, central de inteligência da agência global TBWA. Divulgado com exclusividade pelo NeoFeed, o trabalho faz parte de uma série de relatórios de macrotendências em diversas áreas, como finanças, varejo e turismo.
Mais do que o mero retrato de novos comportamentos, os estudos procuram “destravar as avenidas de crescimento e as oportunidades” para as marcas, em cada um dos setores sobre o qual seus analistas se debruçam, explica Marco Sinatura, chief of strategy & innovation officer na iD\TBWA, ao NeoFeed. E, na indústria agroalimentar, as possibilidades são enormes ¬— tão grandes quanto os desafios que impõem aos negócios já postos e aos que estão por vir.
“Os alimentos estão enfrentando riscos mais altos do que nunca”, lê-se no documento da TBWA. “Embora sabor, técnica e apresentação possam ter sido os marcadores de uma boa refeição no passado, questões sociais e ambientais urgentes agora exigem que julguemos os alimentos de maneira diferente — vendo-os não como um setor separado, mas como um ingrediente essencial para um futuro mais justo e sustentável.”
É aqui que todos nós, como consumidores, fazemos a diferença. Na lista do supermercado, sustentabilidade, transparência e inclusão agora entram como itens indispensáveis. Quase metade dos consumidores globais ajustou sua dieta de modo a combiná-la com um estilo de vida mais sustentável, revela pesquisa da Archer Daniels Midland (ADM), uma das maiores tradings agrícolas do mundo. Um terço já boicotou uma marca ou um produto por causa de suas credenciais éticas. E, de cada dez, quatro priorizam empresas que valorizam os agricultores e produtores.
Outro levantamento, este da NilsenIQ, em parceria com a Food Industry Association, dos Estados Unidos, revela: dois em cada três compradores não titubeiam em mudar para marcas que divulgam mais do que apenas os ingredientes e informações nutricionais. Seja nas compras online, seja nas lojas físicas, eles querem conhecer a história das comidas e bebidas servidas à mesa.
Agathe Guerrier, diretora global de estratégia da TBWA/Worldwide, diz que “a conversa está se ampliando para incluir tudo o que acontece antes que a comida se torne comida (...) O ‘como’ dos alimentos está se tornando tão importante quanto o seu ‘o quê”.
Na mudança, até o conceito de moderação está sendo revisto, indica a agência. Sempre associado a sacrifícios, como cortar calorias ou pular a sobremesa, o termo agora está se distanciando da cultura da dieta e encontrando um papel mais positivo na luta contra as mudanças climáticas. “Na nova abordagem à moderação, estamos reduzindo o desperdício de comida e eliminando os alimentos que são prejudiciais ao nosso planeta”, informa o relatório.
Moderar é bacana — “não em termos de quanta comida estamos consumindo como indivíduos, mas de quanta comida estamos desperdiçando como sociedade”, pontuam os analistas da Backslash. Moderar é evitar as perdas ao longo de toda a cadeia; da semeadura das plantações às nossas cozinhas.
Todos os anos, o mundo põe fora um terço dos alimentos produzidos; o equivalente a 1,3 bilhão de toneladas e US$ 750 bilhões em prejuízos financeiros. Enquanto isso, 735 milhões de pessoas não têm o que comer. Tão claro quanto óbvio; do jeito que está é impossível continuar.
Em um mundo de emergência climática e insegurança alimentar, os rótulos ganham uma importância jamais vista. Deixam de ser uma simples obrigação sanitária para se transformar em uma espécie de enciclopédia condensada, com informações sobre procedência, impactos sociais e ambientais, um guia para indicar aos compradores onde gastar seu dinheiro de acordo com seus valores.
Conforme artigo na revista científica “Ecological Economics”, assinado por pesquisadores da Chalmers University of Technology, na Suécia, os consumidores estão dispostos a pagar 20% a mais por produtos com informações de carbono na embalagem. Ainda discreto, o movimento pela transparência da pegada ecológica já está em curso.
Há dois anos, a sueca Oatly, fabricante de alternativas vegetais a produtos lácteos, foi uma das pioneiras a lançar produtos com dados sobre as emissões de CO², impressos na embalagem. Em janeiro passado, depois da experiência na Europa, quatro iogurtes da linha Oatgurts chegaram ao mercado americano. A Dinamarca, segundo a TBWA, já discute uma política nacional para a rotulagem de carbono.
Como lembram os analistas da Backslash, o foco atual está no carbono, mas as iniciativas não estão (nem devem estar) restritas às emissões do gás de efeito estufa. O movimento ainda é discreto, mas grandes players do setor perceberam isso há mais de uma década e têm avançado nesse tema. É o caso, por exemplo, da JBS.
“Compreendemos as exigências dos consumidores e, por isso, todos os nossos processos seguem os critérios de transparência sobre a cadeia produtiva”, diz Renato Costa, presidente da Friboi, pertencente à JBS, ao NeoFeed.
“Há quase 15 anos, o sistema de monitoramento socioambiental faz o cruzamento de informações com listas e dados públicos para assegurar que os fornecedores da Friboi não atuem em áreas de desmatamento ilegal, terras indígenas, unidades de conservação ambiental ou territórios quilombolas; não utilizem mão de obra análoga à escravidão, possuam embargos ambientais, nem estejam envolvidos em acusação de crimes hediondos”, afirma Costa.
Por meio dos chamados “escritórios verdes”, a Friboi conecta os produtores a consultores e especialistas que realizam um diagnóstico da propriedade e, se necessário, indicam os caminhos mais adequados a cada caso. A equipe dá suporte gratuito sobre todas as etapas do processo de regularização da propriedade e sobre como atender a “política de compra responsável” da empresa.
Nesse trabalho, a tecnologia é imprescindível. “A Friboi monitora 100% dos fornecedores diretos por meio de imagens de satélite e dados georreferenciados das fazendas. Dessa forma, a empresa verifica se eles estão ou não de acordo com a legislação ambiental”, afirma Costa. “Para aprimorar ainda mais os critérios de transparência sobre a cadeia produtiva, em 2021, lançamos a Plataforma Pecuária Transparente, que usa a tecnologia blockchain com objetivo estender aos fornecedores de nossos fornecedores o monitoramento de toda a cadeia bovina.”
Graças a essa conexão, em muitos casos, eventuais problemas podem ser resolvidos na hora, com a ajuda dos “escritórios verdes”. “A partir de 1º de janeiro de 2026, o produtor rural que não fizer parte da plataforma não mais poderá comercializar com a Friboi”, completa o executivo.
Durante muito tempo, os sistemas agroalimentares se concentraram no produto acabado, no alimento em si. “Os modelos foram construídos em cima de uma proposta de valor baseada na conveniência, na acessibilidade, em uma escala cada vez maior”, diz Sinatura, da TBWA. “Essa relação mais holística com o alimento, de entender a relação dele com o mundo, traz um desafio muito grande.” Um desafio ao qual toda a sociedade deve estar disposta a enfrentar — consumidores, empresas e governos.
Afinal, como diz a escritora Alicia Kennedy, especializada em cultura alimentar, no prefácio de “Future of Food”: “Quando comemos, estamos fazendo escolhas sobre o tipo de mundo em que queremos viver e o tipo de pessoa que esperamos ser”. Que venha o futuro.