Quando Antonio Luiz Seabra nasceu em São Paulo, em 1942, seu pai estava desempregado havia dois anos. Nesse mesmo dia ele conseguiu novo emprego. A mãe, costureira, antes do nascimento, tinha consultado uma vidente que lhe garantiu que ela esperava um menino que teria “a mão de ouro”.

Luiz cresceu com essa promessa: quando decolasse profissionalmente, enriqueceria. Começou a trabalhar aos 15 anos. Aos 19, já ocupava cargo gerencial em uma multinacional.

Aos 24 anos, foi administrar um pequeno laboratório onde apaixonou-se pela cosmética, visualizando uma nova linguagem e produtos com grande potencial para contribuir para a autoestima e bem-estar das pessoas, segundo acreditava.

Passou a testar esses conceitos e produtos aos 27 anos, atendendo suas clientes em consultas em uma pequena loja na rua Oscar Freire. Ali, nesse tempo, não havia nada, “a não ser um tintureiro, perto da Consolação, um esteticista, na esquina com Haddock Lobo, e uma padaria de um finlandês perto da rua Augusta,” como ele se lembra.

Pois aquela portinha se tornou o que hoje conhecemos como a gigante Natura, a maior marca de cosméticos da América Latina.

À frente do negócio há quase 60 anos, Seabra, aos 83, sabe que a vidente tinha razão. Mas garante que seu maior objetivo é ser fiel aos próprios valores e alerta para a importância do investimento em solidariedade numa época em que o avanço tecnológico altera até a percepção da velocidade do tempo.

Acompanhe, a seguir, a entrevista exclusiva publicada ao mesmo tempo no NeoFeed e na revista Velvet.

Luiz, vamos lá para o início: você poderia nos contar como começou a Natura?
Eu era gerente administrativo de um laboratório de cosméticos, cujo proprietário era um esteticista francês que atendia suas clientes na rua Haddock Lobo. Com ele aprendi muito sobre a fisiologia da pele, estética, visagismo e cosmética. Pesquisando, eu ficava escandalizado com o que a “indústria da beleza” praticava, porque as promessas eram mentirosas e manipuladoras. E foi dessa indignação que nasceu o fundamento moral para uma eventual empresa de cosméticos: um compromisso com a ética e com a verdade.

Qual a diferença para o que já existia no mercado?
Ao fundar a Natura, com poucos recursos, abrimos uma lojinha no endereço onde antes funcionava uma borracharia. Ali, atendendo nossas clientes, passei a viver uma experiência muito transformadora, por descobrir a importância das relações em nossas vidas, fundamental para o modelo comercial que, quatro anos depois, viabilizou e notabilizou a Natura: a cosmética terapêutica, com fórmulas climatizadas, princípios ativos naturais, personalizados através da venda direta. Algumas de nossas clientes se tornaram excelentes consultoras de beleza!

Mas você também tem um lado místico aflorado, não é? Poderia nos falar um pouco mais sobre isso?
O misticismo sempre me acompanhou, inicialmente por influência de minha mãe. Passei a infância e adolescência ouvindo que eu iria ter a mão de ouro. Era um símbolo muito forte e não deixava de ser um pouco angustiante, porque eu olhava para minha mão e não via ouro nenhum. Mas também me nutria de esperança, a crença de minha mãe me ensinava a ter fé na vida. No início da adolescência, minha mãe, preocupada com o fato de que eu sempre perdia os sentidos em igrejas, me levou para consultar um conselheiro espiritual, que disse que minha mediunidade precisava ser desenvolvida.

E como isso se desenvolveu?
Em um terreiro, fui colocado em uma roda de pessoas, onde me giraram, giraram, e, a partir dali, comecei a ser incorporado, me disseram, por um indígena. Em nome dele passei a dar mensagens que, confesso, me angustiavam um pouco: como eu tinha consciência do que se passava, eu não tinha certeza se uma entidade de fato me tomava ou se as palavras eram invenção minha, por acreditar ser essa a expectativa dos que me cercavam. Eu questionava intimamente a veracidade do que eu vivia.

Hoje você tem essa vertente espiritualizada?
Comecei a trabalhar cedo, aos 15 anos. Senti que para prosperar no trabalho eu deveria me dedicar muito, me afastando um pouco das sessões espirituais e daquelas crenças. Aos 19 anos, tive uma promoção importante na multinacional em que trabalhava: após ter começado como aprendiz do departamento pessoal, ganhei a chefia de uma empresa com mais de 1.000 funcionários. Decidi que religião para mim seria prestar serviços dentro de um espírito cristão, me dedicando ao que eu poderia fazer na relação com as pessoas. Continuei, por curiosidade, estudando astrologia e numerologia, por acreditar que isso ampliava meu repertório na vivência das relações e enriquecia minha capacidade de pensar simbolicamente. Mas, como empresário, procuro sempre não adotar essas curiosidades como normas para a gestão dos negócios.

“Antes mesmo de se tornar um negócio expressivo e fonte de minha realização concreta, a Natura sempre foi fonte de inspiração e autotransformação em minha vida”

Na Vivo, vendemos tecnologia e conexão. Ao mesmo tempo, estamos dizendo que as pessoas têm que estar mais desconectadas, administrar melhor o tempo. E você, há muitos anos na Natura, também fala do tempo do envelhecimento, aceitá-lo como dádiva ou algo positivo e deixar claro que não existe uma única beleza. Como foi criado esse propósito da Natura?
Antes mesmo de se tornar um negócio expressivo e fonte de minha realização concreta, a Natura sempre foi fonte de inspiração e autotransformação em minha vida. Desde o primeiro momento eu me sentia “em sintonia” com essa fonte, me fazendo questionar sobre os fundamentos da forma como a gente vive, na civilização da qual somos produto. A reflexão sobre o tempo e a melhor forma de o vivermos bem é inaugural na Natura e nos levou a algumas conclusões de ordem filosófica.

Quais?
Passei a considerar um crime cultural a forma como a indústria da beleza impunha o tempo e a percepção da beleza como algo essencialmente ligado à simetria de formas, a padrões estereotipados. Eu achava isso desumano e manipulador das consciências, principalmente das mulheres, que, ao longo dos milênios, têm sido punidas pela sociedade patriarcal, e isso diminui e asfixia a vida. A Natura, para mim, representou a oportunidade de ampliar e elevar minha consciência do que é a extraordinária experiência do viver.

Esse mergulho em uma área supostamente feminina, de cosméticos, teve influência materna?
Eu acho que veio desde o colo de minha mãe. Nasci vendo uma mulher trabalhar às vezes de uma forma que estressava a sua capacidade humana, até tarde da noite. À medida que avancei no tempo, eu queria entender o papel na sociedade, por sentir que o trabalho não atenuava um certo amargor na vida dela, mesmo sendo excelente no que fazia. A partir daí passei a considerar a emergência do feminino como uma força transformadora que pode ser fundamental para nossa transformação e evolução civilizatória. Para isso, acredito que as empresas e o mundo deveriam se ocupar mais.

A Natura baseou seu modelo de negócios na venda por relações das consultoras. Você achou que poderia adaptar o conceito da Avon para a Natura?
A Avon veio para o Brasil 10 anos antes da fundação da Natura. Minha irmã foi revendedora da marca nos anos 60. Quando comecei o negócio, era imperioso que encontrássemos um modelo que nos permitisse escala; não era sustentável vivermos da lojinha e das conferências que passei a dar pelo Brasil. Com nossos princípios baseados na personalização de tratamento, o mercado convencional não era uma opção. Não existiam franquias à época e precisaríamos de investidores para abrir mais lojas. A alternativa era multiplicar o número de “Luizes” (em referência a si mesmo), já que as consultas funcionavam bem e o negócio prosperava. Assim, passamos a formar consultoras que, com bom treinamento e catálogo, recomendavam os tratamentos e vendiam os produtos com lucro de 20% a 30%.

“Quando comecei o negócio, era imperioso que encontrássemos um modelo que nos permitisse escala; não era sustentável vivermos da lojinha e das conferências que passei a dar pelo Brasil”

Tudo aconteceu muito rápido. Poucos anos depois, vocês adotaram uma postura de vanguarda sobre a sustentabilidade. Como surgiu, por exemplo, o plano de entregar produtos em refil?
Nós introduzimos o refil em 1984, realmente bem antes do conhecimento amplo do termo “sustentabilidade”. Na década de 1970, Konrad Lorenz, um etologista, escreveu o livro “Civilização e Pecado: Os oito erros capitais do homem moderno.” Este autor, célebre pelo estudo dos animais, embora com uma visão pessimista sobre o futuro humano, foi, na minha opinião, um ecologista de primeira hora. Essa obra, além de alguns filósofos, me despertou para o pensamento sistêmico, fundamento da sustentabilidade. Perceber nosso planeta como um ser vivo, que é nossa casa, nos induziu desde então na busca de soluções coerentes com nosso compromisso com a vida.

Esse questionamento, para vocês, é respondido com inovação, com o olhar para a Amazônia, entre outras atitudes. Hoje, em escala industrial e com a digitalização, há um impacto no negócio que sempre foi pautado pelo contato humano?
Esta pergunta é muito inspiradora. Primeiro: a digitalização e o curso transformador que a tecnologia nos traz são absolutamente incontornáveis. Você tem que adotar, pois aí há oportunidades extraordinárias. É sem perigo? Não é. Mas o perigo é de ordem filosófica, de um afastamento ainda maior do humano consigo mesmo e com sua própria alma. É importante relaxar e acreditar, cultivar a esperança de que a gente pode estar nas vésperas de uma compreensão maior do que é o fenômeno humano, do que é a coisa extraordinária do milagre da vida. A digitalização está sendo importante para que nós avancemos ainda mais para os negócios concretamente. É uma grande oportunidade, mas precisamos desesperadamente do contraponto da espiritualidade.

E na situação de urgência ambiental que a gente vive hoje, qual a expectativa para a COP, que vai aproximar ainda mais a discussão climática da Amazônia? Acha que o fato de esse evento acontecer no Brasil poderia trazer algum resultado mais positivo?
Acredito que sim. Vivemos um momento de emergência climática que impõe consciência coletiva e busca de novos modelos de desenvolvimento sustentável. A COP em Belém está atraindo para a região amazônica as atenções de todo o mundo e permitirá uma melhor percepção do Brasil como potência na economia verde. Criará novas parcerias para fortalecer e estruturar cadeias produtivas da sociobiodiversidade, instalar bioindústrias, ampliar o cultivo regenerativo e desenvolver marcos financeiros e regulatórios que impulsionem a bioeconomia amazônica como estratégia global para o clima. A Natura está participando ativamente da COP30!

“A digitalização e o curso transformador que a tecnologia nos traz são absolutamente incontornáveis. Você tem que adotar, pois aí há oportunidades extraordinárias. É sem perigo? Não é”

Sêneca diz que a vida é longa se você sabe o que fazer com ela. Como você vê essa afirmação neste momento de vida? O que você faz com a vida hoje?
Procuro manter coerência com as coisas em que acredito, manter contato com a natureza, com a família e minhas leituras. Usufruo bem de tudo o que é essencial. Aos 83 anos, mesmo ainda muito ocupado com a gestão dos negócios, procuro viver com consciência e prazer o dom de cada dia de vida.

Tem uma frase da qual você gosta que diz “torna-te quem tu és”. Você se tornou?
Eu acredito que sim. E nessa frase de Nietzsche, inspirado pelo poeta grego Píndaro, cabe um eterno gerúndio. Procuro continuar “me tornando”. Fé na vida!

*Christian Gebara é presidente da Vivo e diretor artístico da revista Velvet