Com o sinal de alerta ligado entre Rússia e Ucrânia, a Europa já está pagando a conta de luz, mas o "curto-circuito" na rede deve também afetar o Brasil. Quem explica essa complexa conexão é Shon Hiatt, professor da USC Marshall School of Business.
"Para não deixar os europeus no escuro será preciso voltar para fontes de energia à base de petróleo, o que vai pressionar ainda mais a demanda e encarecer os barris."
A Europa se apressou a tentar adotar a ideia de um mercado livre de petróleo e ativos baseados em carbono, levando a região a ter até 30% de sua energia proveniente de vento e sol.
No último outono e inverno, contudo, com a redução destas fontes voláteis, tiveram que recorrer mais ao gás, o que elevou os preços, sobretudo porque os europeus fecharam todas as suas usinas de carvão.
"Eles estavam, realmente, à mercê do gás natural liquefeito importado dos EUA, ou do gás da Rússia, que há quatro meses vem subindo o valor", diz ele.
Como os preços estão altos, os países vão, aos poucos, voltar a investir nas perfurações de petróleo. "A própria Petrobras, por exemplo, aumentou sua produção nos dois últimos anos, e eu espero que isso continue nos campos de pré-sal", diz ele.
Hiatt é uma das mais importantes vozes no setor e traz consigo a experiência de pesquisas em empreendedorismo, estratégia ESG e inovação sustentável em energia em contextos nacionais e internacionais. Entre suas frentes de estudo, já se dedicou a invetigar o uso de biomassa no Brasil, na região do cerrado.
Na próxima terça, 22 de fevereiro, ele conduz a masterclass online e gratuita "Qual o futuro da energia global?”, dentro do programa de MBA IBEAR, da USC.
Antes, ele falou com exclusividade ao NeoFeed -numa conversa em português, idioma que aprendeu depois de ter morado em Portugal - sobre as expectativas para a questão da energia na Europa, Petrobras, a necessidade de independência energética e o papel China nisso tudo.
A entrevista completa você acompanha a seguir:
Com a tensão entre Rússia e Ucrânia, o debate em torno da energia ganhou outra dimensão?
A energia está mesmo desempenhando um papel mais importante neste momento. A Europa se apressou a tentar adotar a ideia de um mercado livre de petróleo e ativos baseados em carbono. O problema é que o tiro saiu pela culatra, porque seus investimentos levaram a região a ter até 30% de sua energia proveniente do vento ou do sol, ambas fontes voláteis. Quer dizer, se o vento parar de soprar ou se as nuvens encobrirem o sol, não há energia. Foi isso, aliás, que aconteceu durante o último outono e inverno, o que fez com que aumentasse o preço do gás, sobretudo porque os europeus fecharam todas as suas usinas de carvão, então não tinham para onde correr. Eles estavam, realmente, à mercê do gás natural liquefeito importado dos EUA, ou do gás da Rússia, que há quatro meses vem subindo o valor do gás.
"Acho que, mesmo sem a crise na Ucrânia, bateremos US$ 100 o barril"
Os Estados Unidos se beneficiaram disso?
O mercado de gás natural liquefeito ficou mais competitivo. Aliás, no último mês, os Estados Unidos ofereceram mais gás à Europa do que eles compraram da Rússia.
Mas administração de Joe Biden não pretende colocar sanções na indústria de energia da Rússia, não é?
Gás e petróleo continuam à disposição do mercado, mas a grande questão aqui é: se as demais sanções estudadas pelo Ocidente forem colocadas em prática, poderia a Rússia usar o gás que manda à Europa como retaliação para quebrar esse tipo de, digamos, aliança? E se isso acontecer, e a Rússia fechar a torneira mais e mais, qual seria o próximo passo? Porque não há gás natural liquefeito suficiente em navios para serem enviados à Europa e garantir abastecimento.
Será preciso recorrer a mais derivados de petróleo?
Sim, tudo que vem do petróleo, o que vai automaticamente aumentar a demanda mundial pelo produto – e só para garantir que as luzes continuem acesa na Europa. É por isso que vemos o preço do petróleo avançando, não porque a cadeia de fornecimento será impactada, mas porque a demanda vai escalar. Devido a um potencial corte de gás, a Europa precisará de mais "subprodutos'' do petróleo para manter sua energia funcionando.
Essa demanda sem precedentes pode dar uma vantagem a certos países?
O que vai acontecer é, agora que os preços estão altos, os países vão, aos poucos, voltar a investir nas perfurações (de petróleo), sobretudo em países pró-petróleo. A própria Petrobras, por exemplo, aumentou sua produção nos dois últimos anos, e eu espero que isso continue nos campos de pré-sal. À medida que eles (Petrobras) continuam a todo vapor, o Brasil vai se beneficiando. Temos também a Guiana, no norte do continente sul-americano, com uma parceria com a Exxon Mobil, que encontrou mais de 10 bilhões de barris de petróleo que são muito mais baratos de explorar que o pré-sal, que ficam nas profundezas. A expectativa é que tudo esteja alinhado até o final do ano, e a extração chegue a 100 mil barris por dia.
Mas será suficiente?
A demanda atual é estimada em 101 milhões de barris por dia – é o quanto o mundo consome hoje. Segundo um levantamento recente, a oferta é de 98,5 milhões de barris por dia, o que significa que estamos vivendo um déficit.
Até onde os preços podem subir?
A demanda ultrapassou a oferta durante todo o período de 2021, consumindo boa parte do inventário. Agora que não temos "gordura" no estoque, porque já estamos falando de 30% ou 40% da reserva na maioria dos países, veremos os valores do petróleo baterem novos recordes. Acho que, mesmo sem a crise na Ucrânia, bateremos US$ 100 o barril. Quer dizer, isso era previsível. No ano passado mesmo eu já tinha cravado essa marca, e a bagunça política nem entrava na conta. Isso significa que, se o conflito continuar, os preços podem chegar a US$ 105, US$110 o barril. E é claro que isso reflete nos produtos refinados, que colocamos em nossos carros.
O presidente Joe Biden tentar encontrar uma forma de manter a energia ativa na Europa, mas os Estados Unidos conseguem fazer isso sozinhos?
Os Estados Unidos vão aumentar a sua produção de petróleo, mas só farão isso em áreas privadas, porque, desde que o Biden chegou à Casa Branca, nenhum novo arrendamento foi feito em áreas públicas. O presidente colocou uma moratória nesses novos arrendamentos, e chama atenção que a maior parte da produção no Novo México é em terras federais. Todo o Golfo do México são águas federais. Isso sem falar em Wyoming e Utah. Os EUA vão aumentar a sua produção, mas o ritmo de crescimento vai ser muito mais lento, porque desde janeiro de 2021, não houve nenhum novo lease. Os relatórios ambientais são muito negativos a respeito do petróleo, o que deixa os investidores hesitantes, porque a qualquer momento tudo pode mudar.
O fracking (fraturamento hidráulico) é inevitável? Ambientalistas se opõe a isso, mas dada a alta procura pela energia, será necessário abrir exceções?
Conheço bem os argumentos dos dois lados dessa discussão. O argumento mais forte contra o fracking começou lá na Pensilvânia, onde o tubo de proteção usado para extrair o metano tinha algumas rachaduras, e o gás vazou, contaminando a água local. Dito isso, sim, o primeiro fracking teve essa falha na infraestrutura, e não percebeu as rachaduras nos tubos de proteção que envolviam os canos. Isso impactou demais na reputação do fracking, mas são agora 15 anos de aprendizado.
Mas há resistência a alternativa de energia que envolva o carbono.
Não estamos numa posição de ignorar por completo essas possibilidades, né? É por isso que a Europa está no processo de considerar o gás natural e a energia nuclear como fontes limpas, porque é preciso ter uma fonte constante para recorrer quando o vento e o sol nos deixam na mão.
Você estudou projetos de biomassa no Brasil. Poderia ser uma resposta?
O Brasil é líder na biomassa, e até se tornou energeticamente independente nos anos 80 por conta do etanol. Quer dizer, era esse o objetivo, né? Vocês queriam a independência energética. Para muitos países, a biomassa funcionou super bem, mas não acho que seja a resposta para a sede imediata de 100 milhões de barris de petróleo por dia.
Que outras alternativas poderiam ser relevantes?
Sou bastante otimista quanto às hidrelétricas, e o Brasil trabalhou duro pelas suas. Isso funcionou maravilhosamente bem até que as secas chegaram. A energia geotermal também é outra possibilidade. A Islândia, aliás, é 100% abastecida pelas plantas geotermais, ou seja, 100% energia renovável. O problema é que é uma energia muito cara. Uma planta pode custar entre US$ 80 milhões e US$ 100 milhões, e esse valor é alto por conta da perfuração. Custa US$ 15 milhões cada tentativa de perfuração. Uma das vantagens é que elas operam 24 horas por dia. Também olho com bons olhos para os pequenos reatores nucleares modulares limitados a 30 megawatts. Um desses módulos caberia num container convencional. Aí basta alinhar 7 ou 8 desses e você poderia garantir a energia para metade de um estado. O Idaho está fazendo um teste parecido.
A vantagem desses pequenos reatores modulares é o risco menor?
No lugar de um reator enorme, de gigawatts, que poderia gerar uma verdadeira catástrofe ambiental em caso de defeito, esses pequenos reatores praticamente não oferecem riscos. Basicamente, a ideia é dividir o risco entre os módulos. E podemos colocá-los em qualquer lugar, porque as pessoas não querem estar perto deles.
O segredo é diversificar as fontes de energia?
É a chave, a melhor solução. Você pode ter uma parte da sua rede abastecida pela energia eólica e solar, mas também pode recorrer a fontes mais confiáveis, num mix de hidrelétrica, nuclear, geotermal ou gás natural. Alguns lugares da África, porém, não terão essa sorte, porque não há investimentos; não há capital para injetar em plantas de energia renováveis, que são muito mais caras do que as minas de carvão.
O que você pensa dos bitcoins e criptomoedas que consomem tanta energia na mineração?
Eu estive há pouco tempo em contato com uma empresa americana de minério de bitcoin, porque essa companhia está revendo suas estratégias e quer ter uma fonte de energia totalmente renovável para abastecer sua operação. Uma de suas fazendas de bitcoin está, tipo, sugando energia do Niagara Falls, enquanto a outra é abastecida pelas fazendas eólicas do Texas. Agora eles estão procurando alternativas, mas é preciso 50 megawatts de energia, no mínimo. Isso é energia pra caramba, é o equivalente a 9,5 mil casas americanas por dia.
Parece ser uma questão que ninguém está prestando muita atenção.
O ponto de equilíbrio para esses mineradores de bitcoin é muito baixo. É muito difícil para eles obterem energia barata. Quero dizer, eles estão buscando algo por volta de três centavos de dólar, três centavos e meio de dólar por quilowatt-hora. E só para dar uma ideia, aqui em Los Angeles, nós pagamos, em média, 20 centavos por quilowatt-hora. Então, para eles conseguirem três centavos e meio, eles têm que encontrar uma antiga usina hidrelétrica ou parques eólicos que têm grandes subsídios. Então, em outras palavras, esses parques eólicos estão basicamente funcionando com sem custo, porque o governo federal está pagando para eles operarem e estão produzindo elétrons que ninguém quer comprar. Então é essencialmente assim que eles podem entrar em um jogo.
Qual é o papel da China nesse contexto energético?
Eles estão construindo uma usina de carvão a cada 10 dias, em média, e não vejo eles mudando isso. Aliás, o secretário-geral, Xi Jinping, disse que o objetivo é continuar construindo usinas de carvão até 2030. Eles também estão construindo usinas nucleares e outras plantas energéticas. O que eu estou mais preocupado, porém, não é com a questão da mudança climática e as emissões de carbono, mas com o fato de eles controlarem 80% de todo o material necessário para essa economia de baixo carbono. Todo o processamento de materiais necessários para baterias e carros elétricos, para os geradores das fazendas eólicas, para os painéis solares… 90% de todo processamento é feito na China. E eles ainda têm o controle de 60% de todos os metais raros da Terra. Então, ainda que o Chile seja um grande produtor de lítio, o metal é minerado no Chile, mas é enviado à China para ser processado.
O mesmo acontece no Brasil, não?
Sim, com o grafeno e o níquel. O grafeno é muito requisitado nesta nova economia. Ele é obtido no Brasil e mandado para a China, para ser processado. A China tem um monopólio neste quesito.
Essa discussão a respeito da Rússia e da Ucrânia, então, é uma distração?
Não, acho que é um chacoalhão para as pessoas voltarem às suas raízes. Lembre-se do embargo ao petróleo árabe, em 1973, que afetou o mundo todo. Foi depois disso que o Brasil decidiu se tornar independente, energeticamente falando. Ao mesmo tempo, os EUA decidiram que eles precisariam fazer algo drasticamente diferente também, e aí começou o investimento em carros menores e mais eficientes. Então a independência energética passou a se tornar um ponto focal a partir daí, mas acho que em algum momento nos esquecemos da importância da geopolítica, né? O problema é que o vírus aconteceu e o trem descarrilou, e as pessoas entenderam o que aconteceu com a Europa, que tirou seu foco da independência de energia nessa cruzada para ser uma economia verde. Acho que esse é o problema e, espero, que o que passamos tenha sido um chacoalhão mesmo para a Europa ser, de novo, independente.
"Tinha a expectativa que o Bolsonaro fosse reverter a decisão do Lula da expropriação do pré-sal, abrindo as portas para a perfuração internacional, porque poderia ser vantajoso"
Como você avalia o desempenho brasileiro na questão energética?
Eu tinha a expectativa que o Bolsonaro fosse reverter a decisão do Lula da expropriação do pré-sal, abrindo as portas para a perfuração internacional, porque poderia ser vantajoso. A vantagem de ter companhias internacionais fazendo esse trabalho é que elas trazem o seu próprio capital, certo? É um FDI (Foreign Direct Investment, ou "Investimento Estrangeiro Direto", em português). Isso significa que mais dinheiro vai para o desenvolvimento, enquanto o governo fica com uma parte, por conta dos royalties de toda a energia proveniente daquele solo. Talvez as coisas mudem no Brasil. A Petrobras tem uma péssima reputação com assuntos ligados à corrupção, e eu não vi nenhuma evolução no que diz respeito à governança da companhia.
A questão da independência não ficaria comprometida se os recursos para exploração forem estrangeiros?
Acho que a questão aqui é: a Petrobras tem o capital para continuar desenvolvendo e explorando? Se a resposta for não, então você precisa trazer empresas estrangeiras, cujos acionistas estejam dispostos a colocar mais dinheiro, a fim de explorar os recursos do solo. Essa é basicamente a ideia da desestatização, né? Queremos privatizar, porque acreditamos que, ao trazer novo capital, os contribuintes não ficarão mais presos a isso. E esperamos que, com base numa economia de mercado, as companhias privadas prestem um serviço melhor e mais eficiente.
Com a tensão entre Rússia e Ucrânia, a energia passa a ser um ponto central de discussão em tratados comerciais?
Estamos num ponto de virada, onde a energia não era um ponto central, mas agora é. Este é o cisma que estamos vendo agora com a Alemanha. Os alemães estão tão dependentes do gás russo e os russos sabem disso. Tanto que eles podem usar a Alemanha para romper a aliança de qualquer tipo de sanções importantes. Eles podem fazer o que quiserem, porque, se eles estão com a Alemanha na mão por conta do gás.
E isso dá a outras nações um certo poder, como no caso dos Emirados, por exemplo.
Não há nenhum incentivo para os valores praticados pela OPEP cair. O ponto de equilíbrio para a Arábia Saudita é U$ 85 o barril – é o que eles precisam, atualmente, para movimentar a máquina do governo. Ou seja, os preços precisam ser altos. Mas, olha, em termos de produção de petróleo latino-americana, vou apenas dizer que o Brasil é o único país positivo, junto à Guiana. Todos os demais países reduziram a sua produção nos últimos três ou quatro anos.
Por quê?
Falta de dinheiro. São todas empresas estatais, e elas não têm grana para reinvestir no negócio, né? Se você pega todo o lucro da companhia e coloca isso em programas do governo, então você não vai ter verba para novas perfurações e novos poços.