Lançada em agosto de 2023, a B4 - primeira bolsa de ação climática do Brasil – nasceu com a proposta de impulsionar o mercado voluntário existente de crédito de carbono e de olho na aprovação do mercado regulado, em tramitação no Congresso Nacional, além de mirar outros ativos, como créditos de biodiversidade e de energia renovável.
Passado quase um ano de trabalho, das 180 aplicações recebidas pela B4 de empresas interessadas em fazer compensação ambiental, pouco mais de 50% foram descartadas. A bolsa de ação climática se propôs a analisar 86 projetos. Desses, 37 ainda estão sob uma avaliação mais minuciosa da curadoria interna. Na semana passada, foi aprovado o primeiro projeto – e não surpreende que não seja para emissão de crédito de carbono, e sim de biodiversidade.
“Estamos dando mais valor em aprovar créditos de biodiversidade e de energia renovável do que créditos de carbono, por causa das fraudes de títulos de terra da área a ser compensada e do custo elevado de gerar esses créditos, que exigem extensa rechecagem de dados”, afirma Odair Rodrigues, fundador e CEO da B4, ao NeoFeed.
A cautela da B4 resume a suspeita dos investidores com o mercado de crédito de carbono, bem como a desconfiança que cerca a regulamentação do mercado de carbono no Congresso Nacional. Passo importante para controlar as emissões de gases de efeito-estufa das atividades econômicas do País, o Projeto de Lei 182/2024, que cria e regulamenta o mercado, chega a uma etapa decisiva de discussões no Senado sob um véu de incerteza.
O temor é que a regulamentação em discussão, sem regras rígidas para evitar fraudes, coloque em risco o potencial de movimentar US$ 120 bilhões (cerca de R$ 580 bilhões) no País até 2030, de acordo com estimativa da Câmara de Comércio Internacional (ICC Brasil) – cálculo que leva em conta os cerca de 60% do território nacional preservado que podem ser usados para gerar créditos.
No início do mês de junho, a Operação Greenwashing, ofensiva da Polícia Federal (PF) em cinco estados - Rondônia, Amazonas, Mato Grosso, Paraná, Ceará e São Paulo –, expôs como o crime organizado está se aproveitando do interesse de grandes empresas em abater suas emissões por meio de compra de créditos de carbono no mercado voluntário (sem intermediação do Estado), para oferecer compensação ambiental sem nenhum lastro.
Realizada em 5 de junho, no Dia do Meio Ambiente, a operação da PF desarticulou uma organização criminosa suspeita de vender ilegalmente R$ 180 milhões em créditos de carbono provenientes de duas áreas públicas griladas.
As duas áreas somam 500 mil hectares no Amazonas que pertenciam à União e foram incorporados pela Stoppe Ltda, num esquema que subornou agentes públicos e funcionários de cartórios para falsificar comprovações de titularidade – o modelo de fraude mais comum em créditos de carbono, que vem se multiplicando nos últimos anos e já teve como alvo multinacionais e grandes empresas brasileiras, como Nestlé, Gol, Toshiba e Boeing
"O crédito de carbono existe, a floresta não desapareceu. Mas uma quadrilha de 40 anos usou uma área do governo para cometer uma fraude de posse. Então, o governo vai avaliar e ver se a área total corresponde ao crédito de carbono e se a mesma área foi negociada mais de uma vez", afirma uma fonte a par do caso.
Outro gestor que investiu no mercado de crédito de carbono contou ao NeoFeed, em condição de anonimato, que a insegurança jurídica vai atrapalhar o caminho de desenvolvimento desses títulos. "Os documentos não eram falsificados. Eram timbrados, oficial de um órgão público do Brasil. Mas como ter segurança para investir?", questiona.
Impacto na Faria Lima
A fraude acabou arrastando o mercado financeiro para a crise. Os Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) AZ Quest Sole e AZ Quest Luna, da gestora AZ Quest, incorporaram cerca de R$ 50 milhões de um CRA (Certificados de Recebíveis do Agronegócio) emitido pela Stoppe Ltda.
O lastro do CRA é uma dívida da Stoppe e as garantias da operação eram os créditos de carbono que seriam gerados em atividades que mantêm a floresta preservadas, iniciativa conhecida pela sigla em inglês REDD+ (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal).
Por conta dessa fraude, o fundo da AZ Quest Sole (AAZQ11), que é negociado na bolsa de valores, caiu 14,6% no dia da Operação da PF. Neste momento, o escritório Lefosse Advogados está cuidando do interesse dos 41.479 cotistas dos dois Fiagros da AZ Quest.
Ao NeoFeed, a AZ Quest, que detém R$ 27,6 bilhões sob gestão, encaminhou os comunicados que informam que "está junto ao escritório de advocacia, avaliando medidas a serem tomadas na proteção dos interesses dos titulares indiretos dos CRAs tanto na esfera cível como na esfera criminal e na revisão dos procedimentos adotados na constituição do crédito e na securitização".
O comunicado acrescenta que o retorno da avaliação preliminar realizada indica que "a documentação seguiu padrões adequados para o tipo de operação e foram adequadamente registrados e foram adotados procedimentos de due diligence compatíveis com as melhores práticas de mercado para a operação".
A AZ Quest prossegue em seu comunicado informando que "a avaliação preliminar da documentação da operação permite afirmar que se trata de uma operação costumeira de mercado e na qual houve o cumprimento da legislação em vigor à época para a colocação dessa operação. Adicionalmente a operação contou com a participação de prestadores de serviço de primeira linha, nesse sentido, apesar da compreensível frustração nesse investimento, preliminarmente não há indícios de falta de diligência ou de erro na estrutura".
No rastro dos fraudadores
Enquanto isso, a Polícia Federal quer fechar o cerco aos fraudadores. Na terça-feira, 18 de junho, o órgão realizou em Brasília um seminário para debater o uso de imagens de satélites adquiridas pela constelação PlanetScope, uma parceria entre a PF e a Santiago & Cintra Consultoria – SCCON, também na mensuração também da emissão do crédito de carbono solo acima.
A ideia é obter uma nova tecnologia que possa colher imagens diariamente, gerar relatórios e dar veracidade às emissões desses créditos. Algo semelhante ao que já é feito por 180 satélites, que hoje cobrem 8,5 milhões de km² diariamente, e ajudam a identificar desmatamentos, foco de queimadas, construções de pistas clandestinas de pouso etc.
Segundo uma fonte da PF, "o aumento do número de fraudes com créditos de carbono levou a PF a criar um núcleo de três investigadores para se dedicar exclusivamente ao tema”.
Para Bruno Ferraz de Camargo, sócio do escritório XiCa - Ximenes, Camargo Advogados - especializado em negócios regenerativos, governança e bioeconomia -, as fraudes cresceram com a decisão do governo anterior de alterar a emissão do Cadastro Ambiental Rural (CAR), registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, passando para a forma autodeclaratória.
Segundo dados do IPAM (Instituo de Pesquisa Ambiental da Amazônia), dois terços do desmatamento em terras públicas da Amazônia são em áreas com o cadastro rural fraudado. “Isso gerou problemas porque até as certificadoras de créditos de carbono mais conhecidas e respeitadas acabaram caindo nesse golpe, baseadas nesses CARs, e não em títulos de propriedade”, diz Cardoso, lembrando que muitos títulos registrados em cartórios também são fraudados.
Esse problema ameaça um dos atrativos previstos na regulamentação: justamente a criação de produtos financeiros sob supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Camargo vê a tokenização dos créditos prevista pelo PL - mesma ferramenta adotada pela B4 para assegurar um pouco mais de segurança e rastreabilidade dos créditos de carbono – como uma iniciativa válida.
“Em vez de vender o crédito de carbono como título em papel, é possível criar uma moeda baseada em blockchain, gerando um ativo seguro, rastreável e interessante”, diz Cardoso.
Segundo ele, o mercado global deve ser o alvo, pois há grande procura para empresas multinacionais compensarem suas emissões. Só em 2020, foram € 229 bilhões negociados nesse mercado, cinco vezes mais que o volume movimentado em 2017, segundo a Refinitiv Financial Solutions. Os preços da tonelada de carbono variam entre US$ 1 e US$ 137, mas, em média, a maioria das transações ocorrem na faixa de US$ 10.
Camargo, porém, critica o fato de o agronegócio ter ficado de fora das exigências de compensação previstas pelo PL. “A pecuária é grande emissor de carbono por causa do desmatamento que provoca e dos gases de efeito-estufa lançados na atmosfera pelo gado”, diz, lembrando que a exclusão do setor é uma concessão à bancada ruralista para facilitar a aprovação do PL. “É melhor começar de alguma forma do que não começar.”
Modelo regulatório
A aprovação do Projeto de Lei 182/2024, que cria e regulamenta o mercado de carbono, se arrasta há anos. No mercado regulado em outros países, as emissões de grandes empresas ou indústrias podem ser taxadas (carbon tax) ou ficarem sujeitas a um limite previamente determinado (cap and trade) – esse último foi o modelo regulatório proposto no Brasil pelo PL em tramitação.
A vantagem de se ter um mercado de carbono regulado sob o cap and trade em vez de mecanismos de taxação é que ele estimula a negociação, a inovação e a competitividade e não provoca o aumento da carga tributária.
A proposta prevista no PL estabelece alguns limites. A empresa ou indústria que emitir mais de 10 mil toneladas de dióxido de carbono por ano estará incluída no sistema e precisará dar transparência às emissões.
Por outro lado, as que ultrapassarem o teto legal de 25 mil toneladas terão a obrigação de compensar as suas atividades com aquisições de créditos de títulos. As empresas que reduzirem suas emissões também poderão vender os créditos que acumularem para aquelas que não cumprirem as cotas e acabarem poluindo mais.
Apesar das fraudes em série, várias multinacionais não estão esperando a aprovação do PL para adquirir créditos de carbono. A Microsoft, por exemplo, comprou 3 milhões de toneladas de créditos de remoção ao longo de 15 anos da re.green, uma startup de reflorestamento fundada há dois anos e que tem acionistas como a família Moreira Salles, Armínio Fraga e Guilherme Leal.
Com sede no Rio de Janeiro, a re.green já tem 16 mil hectares de terras disponíveis para cumprir o acordo de fornecimento com a Microsoft nos estados do Maranhão e da Bahia. Seus créditos são gerados pelo plantio de espécies nativas em terras que já fizeram parte da Amazônia e da Mata Atlântica.
A tendência é de que grandes empresas selecionem de forma rígida onde pretendem comprar créditos, para evitar fraudes como as detectadas pela Operação Greenwashing. “Nosso primeiro projeto aprovado de crédito de biodiversidade foi para a ONG SOS Vida Silvestre reconhecida pela seriedade, com inventário ambiental atraente para uma empresa associar sua marca”, diz Rodrigues, da B4.
Por enquanto, o mercado de crédito de carbono está "cheio de fumaça" no Brasil.