A busca do governo por alternativas para controlar a inflação tem provocado intensos embates entre associações setoriais nas últimas semanas. Depois de sugerir a venda de medicamentos isentos de prescrição (MIPs) em mercados como forma de baratear os alimentos, gerando atritos com redes de farmácia, a Abras (Associação Brasileira de Supermercados) propôs mudanças profundas no PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador), de 1976.

O programa atende 25 milhões de pessoas, que recebem benefícios de suas empresas para a compra de comida em restaurantes e supermercados – em troca, o empregador recebe 4% de desconto no imposto de renda. A Abras defende que a compra de alimentos por meio desses vouchers encarece os produtos devido às taxas cobradas pelas empresas de benefícios. A solução proposta pela associação de supermercados é centralizar o PAT na Caixa Econômica, que depositaria os valores diretamente na conta dos trabalhadores.

A proposta, assim como a da venda de MIPs em mercados, não é nova, mas tem sido reforçada diante das tentativas do governo de reduzir a inflação dos alimentos, que foi de 7,69% em 2024, acima da inflação de 4,83% do IPCA. Na semana passada, a Abras emitiu uma nova nota pressionando pela mudança e alegando que a distribuição dos benefícios pela Caixa geraria uma economia de R$ 10 bilhões.

A ABBT (Associação Brasileira de Empresas de Benefícios ao Trabalhador), no entanto, contesta essa estimativa. “Esses R$ 10 bilhões não são nada perto do faturamento de R$ 1 trilhão do setor. E a Caixa também não faria de graça. Isso não vai baixar o preço. A proposta da Abras é falaciosa e enviesada”, afirma Lucio Capelletto, presidente da ABBT, ao NeoFeed.

O setor de benefícios ao trabalhador conta com mais de 400 empresas, muitas delas regionais, embora poucas concentrem a maior parte dos valores movimentados. As maiores pertencem ao modelo de arranjo fechado, com bandeira própria. As de arranjo aberto utilizam bandeiras como Mastercard e Visa.

Alexandre Rappaport, CEO da Ticket Brasil, destaca que apenas 10% das vendas de restaurantes e supermercados são feitas por meio do programa de benefícios e que a taxa média das empresas de arranjo fechado gira em torno de 2%.

“Então, a cada R$ 100 que o supermercado vende, R$ 0,20 vão para as empresas de benefícios. Assumindo que o investimento será zero, a proposta de estatizar o setor reduziria a inflação em R$ 0,20. É uma soma de absurdos”, diz Rappaport. “Poderiam pensar também em um grande órgão estatal para vender alimentos. Não teria dono [de supermercado] andando de jatinho e nem diretor ganhando milhões de reais.”

Júlio Brito, CEO da Swile Brasil, também critica a proposta, classificando-a como “um tiro no pé” que dizimaria um setor inteiro. “O que farão com todas essas empresas e milhares de funcionários que trabalham nelas?”, questiona.

Outro ponto de preocupação é como seria feita a fiscalização desses recursos, já que o dinheiro entraria diretamente na conta do trabalhador. “Vai ter o mesmo risco do Bolsa Família, com o dinheiro sendo utilizado em apostas, compra de cigarro ou para outros bens que não sejam alimentação”, diz Capelletto, da ABBT.

O NeoFeed procurou a Abras, mas a associação optou por não se manifestar.

Portabilidade e interoperabilidade

Além da proposta da Abras, outras duas iniciativas já em estágios avançados estão em discussão: a portabilidade e a interoperabilidade dos benefícios. Apesar de terem sido aprovadas pela Lei 14.442 de 2022, ainda não foram regulamentadas, o que gera debate sobre suas regras.

A implementação da interoperabilidade conta com apoio praticamente unânime, pois permitiria o uso dos cartões de benefícios em todos os estabelecimentos credenciados ao PAT. A portabilidade, por outro lado, enfrenta resistência das empresas do setor, que temem uma concorrência desleal.

“Haveria empresas que trabalham diretamente com o consumidor e querem o trabalhador para oferecer empréstimos pessoais. Eles roubariam a receita de quem vendeu [o programa] para as empresas, que passariam a ter uma rentabilidade muito menor”, alerta Rappaport.

Um dos argumentos contrários à portabilidade é que sua regulamentação poderia provocar uma “guerra de cashbacks” e incentivos, prejudicando especialmente as pequenas empresas de benefícios. No entanto, um decreto de 2023 do presidente Luiz Inácio Lula da Silva proíbe a prática de cashback e outros incentivos indiretos, como “rebate disfarçado”.

Uma das principais defensoras da portabilidade é a Zetta, associação formada por empresas de tecnologia financeira, como Mercado Pago, Nubank, Wise, PicPay, iFood e Will Bank. Fernanda Garibaldi, diretora-executiva da Zetta, argumenta que a medida incentivaria a concorrência e a redução das taxas cobradas.

“O aumento da competição nesse mercado tem a possibilidade de reduzir custos para os estabelecimentos e gerar economia para o trabalhador”, afirma Garibaldi.

O atraso na regulamentação da portabilidade e interoperabilidade, segundo Garibaldi, decorre da falta de consenso sobre qual órgão deve definir as regras. Pelo decreto presidencial, a responsabilidade é do CMN (Conselho Monetário Nacional), composto pelos Ministérios da Fazenda e Planejamento e pelo Banco Central.

“Os detalhes técnicos precisaram ser desenhados e discutidos a partir do momento que definirem qual será o órgão regulador”, diz Garibaldi.

Fontes próximas ao assunto indicam que há um desalinhamento entre a Fazenda e o Banco Central sobre quem deveria regulamentar a portabilidade e interoperabilidade dos benefícios. “A Fazenda diz que é com o BC, e o BC diz que é com a Fazenda. Esse impasse depende do Executivo."

Um executivo de uma empresa do setor, que não quer se identificar, diz que "a regulamentação pode ser a saída mais viável, já que a proposta da Abras ainda carece de uma legislação. A portabilidade e interoperabilidade já estão na lei.”

E conclui: “O BC não quer fiscalizar por entender que não há um risco sistêmico, mas poderia editar a norma junto com a Fazenda e manter a fiscalização do PAT no Ministério do Trabalho."