No fim dos anos 1990, uma disputa entre duas grandes cervejarias movimentou o mundo dos negócios e os corredores do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Na época, a Kaiser recorreu ao órgão buscando impedir a união de Antactica e Brahma na criação da Ambev – o que acarretaria numa dominância de 70% de mercado.

As empresas se digladiaram na imprensa e nos tribunais. A disputa foi tão grande que, inclusive, chegou à antessala do Palácio do Planalto com o então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), dizendo que não iria se intrometer no negócio. No fim das contas, depois de uma guerra de liminares durante o julgamento, a aprovação veio com “remédios” leves e a fusão prosperou.

Agora, outra disputa tem movimentado o Cade e um dos mercados mais populares e onipresentes na vida dos brasileiros: os apps de food delivery que, aos poucos, têm se transformado em apps de tudo. De um lado está um grupo formado por dezenas de players liderados pelo colombiano Rappi. Do outro está o iFood. A reclamação? O iFood domina o mercado por meio de contratos exclusivos com restaurantes.

Em março de 2021, em um processo que ainda está sendo julgado pelo Cade, o órgão responsável pela livre concorrência no Brasil, definiu que o iFood não poderia firmar novos contratos de exclusividade. Mas, na segunda-feira, 22 de agosto, a temperatura esquentou e a panela de pressão envolvendo as duas empresas voltou a apitar.

O Rappi e as empresas entraram com uma nova representação no Cade, três dias depois de a Movile, maior acionista do iFood, celebrar a compra de 100% do app por meio de sua sócia Prosus (antiga Naspers). O negócio bilionário havia sido anunciado na sexta-feira, 19 de agosto, o que elevou o valuation do iFood para 5,4 bilhões de euros ou quase R$ 28 bilhões.

Desta vez, o Rappi e outras empresas acusam o iFood de não respeitar a decisão do Cade de não firmar contratos de exclusividade. E mais: pedem não apenas que o iFood pare de firmar contratos de exclusividade, como também o fim dessa prática no mercado brasileiro. De acordo com os concorrentes do iFood, baseados em um estudo da Abrasel (Associação de Bares e Restaurantes), o app da Movile é dono de 80% desse mercado.

“A intenção era parar as coisas onde estavam e não piorar mais, enquanto o Cade fazia a análise completa do caso. Esse era o intuito: parar, congelar e não piorar a situação. Porém, a situação piorou”, diz Tijana Jankovic, CEO do Rappi no Brasil, em entrevista ao NeoFeed.

No final das contas, diz ela, não importa se você tem no seu supermercado mil itens ou 10 itens. “Se você não tem arroz e feijão, ninguém entra no seu supermercado. É tão simples quanto isso”, afirma. A tese da executiva é que poucas redes, gigantes como um McDonald’s, hoje com o iFood, concentram a maioria dos pedidos e o cliente deixa de usar outras plataformas por conta da exclusividade.

Ela alega também que, informalmente, o iFood está gerando contratos de exclusividade. “Eles (os restaurantes) podem operar com os dois? Sim, podem. Mas, se eles desligam o Rappi, ganham os benefícios adicionais. Eles podem usar os dois? Sim. Mas se eles ficam bem com o iFood, eles participam de ações de marketing que movimenta todo o marketing para eles. Senão, eles ficam excluídos”, afirma Tijana.

Até agora, o iFood vinha permanecendo calado, se pronunciando por meio de notas oficiais, mas em entrevista ao NeoFeed, seus dois principais líderes se posicionaram de forma mais contundente. “Temos certeza de que o que a gente faz é legal. E quero lembrar que todas as empresas do Brasil e do mundo têm, todas sem exceção, restaurantes exclusivos que elas fazem algum tipo de investimento”, diz Fabricio Bloisi, CEO do iFood e fundador da Movile, ao NeoFeed.

O executivo afirma que, desde que houve a primeira reclamação no Cade, a porcentagem de restaurantes exclusivos caiu de 11% para 8% e que a companhia só renovou o que existia. “Os clientes continuam preferindo mais a gente, selecionando mais o iFood e pedindo mais para o iFood”, diz Bloisi.

Tijana, do Rappi, rebate a tese dizendo que “um estudo de uma agência independente de food service chegou a conclusão que 15% das marcas no setor de restaurante do Brasil concentram mais de 80% de vendas”. Diego Barreto, vice-presidente de estratégia e finanças do iFood, afirma ao NeoFeed que grandes cadeias como Pizza Hut e Domino’s, as maiores em pizza, por exemplo, estão nos dois apps.

“Bulguer, que mais vende hambúrguer em São Paulo, está também nos dois. Assim como Spoleto e muitas outras”, afirma. E defende. “O grande ponto é que, desde 2018, quando recebemos US$ 500 milhões em investimento, a gente vem se preparando, criando um sistema logístico e uma eficiência e qualidade operacional em um mercado complexo onde dependo do restaurante e do entregador.”

Barreto vai elencando os prêmios que a empresa tem conseguido. “Somos a melhor empresa do Reclame Aqui, com entregador e restaurantes sempre tivemos o melhor NPS. É só ver a diferença com as demais empresas.” Indagado sobre continuar firmando contratos de exclusividade de forma extraoficial, ele diz que "a empresa não seria irresponsável de fazer isso.”

Paulo Solmucci, presidente da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), entidade que assina a petição no Cade junto com o Rappi, diz que, “na pandemia, o delivery foi usado de maneira intensa, e o setor, que já tem margens apertadas, teve dificuldade de repassar os preços, enquanto as plataformas cobraram taxas elevadas lideradas pelo quase monopólio do iFood.”

O iFood, por sua vez, alega que antecipou R$ 10 bilhões para os restaurantes durante esse período para ajudar na travessia da pandemia. Solmucci continua. “Tem uma dificuldade grande das plataformas novas entrarem nesse mercado, por conta da questão da exclusividade do iFood. Em toda a cadeia, todos se ajustam a eles. Estamos subsidiando o Cade com informações.”

Barreto, do iFood, diz que essa fatia de 80% do iFood no mercado de food delivery não é verdadeira. “Temos participação no mercado de apps. No mercado de food delivery, 40% dos pedidos são feitos pelo WhatsApp e entregues pelo estabelecimento”, afirma. “A Abrasel representa 11 mil restaurantes em um universo de 1 milhão de restaurantes no Brasil.”

Bloisi, por sua vez, diz também estar municiando o Cade com informações. “Temos trabalhado semanalmente com o Cade, fornecendo dados para eles. Não podemos muito falar sobre um processo em andamento, não deveríamos falar. Evitamos, mas sempre tem um vazamento. ‘Acusado disso, o iFood não sei o quê’. Acho que, às vezes, as pessoas ficam buscando motivos para justificar a dificuldade de concorrer.”

Colaborou Moacir Drska