Com mais de 30 milhões de usuários em nove países da América Latina, o aplicativo colombiano Rappi é o rival mais óbvio do iFood. Desde a sua chegada ao País, em 2017, o aplicativo tentou – e vem tentando – derrubar a concorrência. Mas a tarefa tem sido inglória.

Tanto o Rappi e outros players, como o Uber Eats, que deixou o País no início desse ano, têm penado para destronar o iFood, que, segundo a Abrasel, domina 80% desse mercado de food delivery no Brasil.

Segundo a companhia e outros 40 players, o motivo são as práticas anticompetitivas adotadas pelo iFood, como firmar contratos de exclusividade com restaurantes. Não à toa, a companhia entrou com uma segunda representação no Cade, na segunda-feira, 22 de agosto.

Trata-se de uma briga de gente grande. Enquanto o Rappi é avaliado em US$ 5,2 bilhões, o iFood tem valor de mercado de € 5,4 bilhões. E quem assumiu a missão de avançar sobre o concorrente foi a executiva Tijana Jankovic, CEO do Rappi no Brasil.

Tijana, mais conhecida como TJ (em inglês), botou fervura no caldeirão ao acusar o iFood de descumprir as regras estipuladas pelo Cade, em março do ano passado, e enviou provas ao órgão responsável por zelar pela livre concorrência de mercado.

Ela afirma que o iFood continua firmando contratos de exclusividade, esmagando concorrentes e que é necessário dar um basta nisso antes que outros players morram ou saiam do País.

“Estamos pleiteando que, dada a consolidação que já teve, não existe motivos para manter a prática de exclusividade como um todo”, diz ela ao NeoFeed. Na seguinte entrevista, ela diz por que comprou essa briga e o que pretende com isso. Acompanhe os principais trechos:

Vocês fizeram uma nova representação no Cade. Por que tomaram essa decisão?
A gente teve aquela medida preventiva em março de 2021. Com certeza, na boa direção. E foi uma medida temporária, enquanto a investigação acontecia. A intenção era parar as coisas onde estavam e não piorar mais, enquanto o Cade fazia a análise completa do caso. Esse era o intuito: parar, congelar e não piorar a situação. Porém, a situação piorou. O ponto é que, por mais que a medida esteja em uma direção correta, ela veio em um momento de concentração do mercado já muito forte. Ela veio um pouco tarde. A coisa já desandou.

De que forma?
Levou a um fechamento e a saída do País de vários outros players. Por mais que eles tivessem fatias pequenas, em uma situação como essa que a gente teve no mercado, eles foram engolidos pelo player dominante.

O iFood assumiu o espaço do Uber Eats e quais mais saíram?
Teve outros players locais menores que saíram do mercado, como o Delivery Center, e vários outros que atuavam em algumas regiões e já não atuam mais. A ideia (da medida preventiva) era congelar e não congelou. Piorou. E outra coisa é que, mesmo essa medida, que foi trazida pelo Cade, a gente viu na prática que ela não foi respeitada pelo iFood. Só quero que fique claro que não é só essa parte de não respeitar a decisão que a gente está reclamando. Mesmo que eles respeitassem, a gente não acharia suficiente. A parte de não respeitar é mais o nosso chamado da urgência para atuar.

Quem está com o Rappi nesse pleito?
É a gente e mais 40 assinantes desta petição. Muito importante: é muita personalização em uma guerra de Rappi versus iFood. São 40 assinantes desta petição versus iFood.

É que o Rappi está liderando o movimento, natural que falem do Rappi...
Mas não somos os únicos que compartilham dessa posição. A Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) está junto. E de 12 a 15 players regionais de aplicativos. A própria Uber Eats, que saiu do País, continua como assinante da petição. Então, é praticamente o setor inteiro do lado de aplicativos e do lado de restaurantes.

"A intenção era parar as coisas onde estavam e não piorar mais, enquanto o Cade fazia a análise completa do caso. Esse era o intuito: parar, congelar e não piorar a situação. Porém, a situação piorou"

O que vocês estão pleiteando?
Estamos pleiteando que, dada a consolidação que já teve, não existe motivos para manter a prática de exclusividade como um todo. Isso é o que a gente está pleiteando como decisão final do Cade. A gente sabe que vai demorar um pouco mais e tudo bem. Enquanto isso, precisamos garantir uma sobrevivência do setor com a limitação de contratos de exclusividade com os players grandes. Essa é a tese de arroz e feijão que eu venho repetindo.

Que tese?
No final das contas, não importa se você tem no seu supermercado mil itens ou 10 itens. Se você não tem arroz e feijão, ninguém entra no seu supermercado. É tão simples quanto isso. O que estamos argumentando é que o essencial para que todo mundo tenha o mínimo para sobreviver no mercado é impedir contratos de exclusividade ou renovações de contratos de exclusividade com os players de uma certa concentração de vendas.

Quais players estão neste formato?
Se você olha qualquer lista de maiores redes e de maiores franquias do Brasil, seriam esses players. Um estudo de uma agência independente de food service chegou a conclusão que 15% das marcas no setor de restaurante do Brasil concentram mais de 80% de vendas. Então, você libera esses 15%. Estamos dando informações para o Cade fazer o seu estudo e a sua decisão. Mas é a linha de raciocínio que estamos seguindo. Se a gente conseguir pelo menos a ter operacionalização de mercado aberto com as maiores redes, nós temos um caminho até o Cade fazer o seu diagnóstico, sua análise e sua decisão completa.

Você falou que o Uber Eats e outros players saíram e acabou que o iFood absorveu os clientes e o market share deles. Nesse ponto, eles não foram mais eficientes, se eles não poderiam ter exclusividade?
Há um grande fato que não está sendo 100% claro nessa discussão, que é como funciona um marketplace. O marketplace ganha sim eficiência exponencialmente com o tamanho. Essa é a tese de qualquer marketplace: de ride sharing, de comida, de e-commerce, do que você quiser. E isso chega em um ponto onde o seu tamanho, em comparação com tamanho dos demais players competindo com você, impede que os demais players, independentemente da força que eles tenham em proposta de valor, possam chegar pela pura diferença de tamanho em várias coisas.

Por exemplo?
Por exemplo, o custo de aquisição de usuário na plataforma do Google e do Facebook. E, principalmente, na parte comercial do negócio. Quanto mais poder você tem em cima dos parceiros individuais que, como indivíduos não têm força para negociar com você, mas quando blinda eles como uma totalidade, você impede qualquer outro player de competir. Essa é a dinâmica que está acontecendo. Eles foram mais eficientes porque eles estão na posição de poder engolir literalmente tudo que se abre do mercado.

Mas o iFood ganhou o share do Uber Eats e não fez acordo de exclusividade com os restaurantes que eram deles...
É diferente. E isso é parte do nosso argumento. Alguns foram através dessas mecânicas que a gente vai descrevendo. Outros, mesmo que não foram formalmente via contrato, foram condicionados a irem comercialmente, por esse desbalanço de poder de barganha que existe. Você tem apenas um player grande e um player pequeno, onde o player grande praticamente te condiciona a operar como ele quiser. Eles podem operar com os dois? Sim, podem. Mas, se eles desligam o Rappi, eles ganham os benefícios adicionais. Eles podem usar os dois? Sim. Mas se eles ficam bem com o iFood, eles participam de ações de marketing que movimentam todo o marketing para eles. Senão, eles ficam excluídos. Então, é uma dinâmica um pouco mais complexa. É uma bola de neve. Uma vez que a coisa fica grande demais, ela fica destruindo tudo o que vem na frente dela. E ela não pode mais ser desafiada por pequenas, que não conseguem ganhar força, porque ela pega toda neve que vem na frente.

Você tem provas disso que falou, como se “você sair do Rappi, eu te dou benefícios”?
Eu não quero entrar muito nesse mérito, porque justamente não é o nosso desejo de que a história continue assim: ‘a gente fala que sim, eles falam que não’. Acho que temos o órgão responsável para a análise do caso. Esse órgão responsável está recebendo provas protocoladas por nós. E a gente confia que o órgão que é responsável vai fazer a análise correta e determinar se as provas são de fato materiais. As provas foram protocoladas. Entregamos para quem é responsável para analisar.

Mas vocês têm provas?
Temos.

"Eles foram mais eficientes porque eles estão na posição de poder engolir literalmente tudo que se abre do mercado"

O iFood alega que eles só estão renovando o que já tinham lá atrás e pararam de fazer novos contratos. E que é só 8% da base...
Essa estatística é engraçada. É só 8%, mas se você calcula todos os barzinhos da rua, eles provavelmente contribuem com esse número. Mas a minha provocação seria percentual de faturamento, não de loja. E também seria o percentual do que a gente chamaria de marcas relevantes ou marcas que influenciam a decisão de compra, porque sabemos quais são. E, se você olha essa lista de marcas relevantes no Brasil, o percentual vai ser bem diferente.

O iFood alega também que as outras plataformas têm contratos de exclusividade. Vocês têm contratos de exclusividade com restaurantes e redes?
Deixa esclarecer esse ponto. A medida preventiva, justamente pelo desbalanço enorme do tamanho das operações, impediu o iFood de fechar outras exclusividades. Então, a gente não tem nenhuma limitação pelo Cade de fechar novas exclusividades. Mas nós, voluntariamente, paramos de fazer qualquer contrato de exclusividade com restaurantes desde dezembro de 2021. Se os outros players pequenos estão fazendo, eu realmente não sei, mas duvido muito. Primeiro, não há impedimento. Mas existe um acordo entre todos os players, junto com as organizações de restaurantes, que estamos juntos para um mercado mais justo. E, portanto, estamos fazendo um acordo de parceria, de negócios, que não vamos fazer mais exclusividade, mesmo que não tenhamos impedimentos legais para isso.

Se você chegasse hoje no mercado brasileiro e pudesse fazer o que o iFood fez, de conquistar o mercado do jeito que eles conquistaram, você faria?
Eu acho que foi demais. Eu acho que passou do ponto.

Qualquer empresa gostaria de ter dominância do mercado, não?
Acho que qualquer empresa gostaria de ter dominância do mercado. Principalmente, se você é o primeiro player do mercado. Se você olhar a nossa indústria, não tem essa concentração de mercado em nenhum outro mercado. Tem muito esse argumento de que é por próprio mérito. Mas queremos dizer que nenhuma empresa nos Estados Unidos e na Ásia não chegou por próprio mérito. Tem também uma parte de estratégia.

Me explica?
Até que ponto você vai garantir o que nós estamos aqui para fazer, que é estimular o desenvolvimento econômico do ecossistema e trazer oportunidades de serviço e de otimização do tempo para os nossos usuários. Acho que existe um ponto de concentração, onde se deixa de fazer isso. Porque você deixa de ter uma competição que te estimula, de fato, a trazer valor para seus participantes, de competir em condições comerciais com seus parceiros em preço, sortimento e proposta de valor para seus usuários. No mercado de ride sharing, você vê que o Uber era o primeiro player e por muito tempo andou sozinho e teve, não sei, 95% do mercado. Porém, quando teve outro player entrando, com investimento da Didi na 99, se estabeleceu uma relação mais saudável.

Mas não foi o Cade que fez esse balanço...
Exatamente. Não precisou ser o Cade. Acho que as empresas souberam se posicionar de uma forma que garantiu um mercado saudável.

Foi o Uber que se posicionou assim ou foi a Didi que botou muito dinheiro na 99 e conseguiu competir em pé de igualdade?
Eu não posso comentar sobre o meu ex-empregador na época em que eu estava lá. Não posso dar essa resposta por conflito de interesse. Mas o que quero dizer é que existem forças econômicas que balanceiam o mercado até um certo ponto.

Hoje, você não vê isso no mercado de food delivery?
Essa diferença é importante a gente definir. Não é que a Rappi não tem dinheiro para investir. E olhe para outras empresas que estão tentando entrar nesse mercado: Americanas, Magalu. O próprio Uber fez tudo o que fez no mercado de ride sharing e depois teve de desistir do mercado de food delivery. Não bate a coisa. Tem usuário, tem a logística, tem uma marca extremamente forte no Brasil. Como não conseguiu se é uma questão só de qualidade de serviço e força operacional? Algo não andou. E o Uber deixou isso claro na carta aberta falando: ‘não dá para competir nesse mercado, porque o conteúdo é bloqueado’. Normalmente, toda empresa chega e quer conquistar o mercado. É o que toda empresa quer fazer. Entram outras empresas desde que tenham funding suficiente, desde que tenham força suficiente para competir. E se estabelece um equilíbrio que, ao longo do tempo, vai mudando. Chega um ponto onde isso não é mais possível. Não é falta de dinheiro, nem falta de capacitação tecnológica.

Os executivos do iFood dizem que o produto deles é melhor em diversos aspectos. Por isso, a concorrência reclama...
Quero que fique muito claro que existem várias empresas que queriam competir neste mercado. Várias delas têm várias forças, propostas de valor, fraquezas, como em qualquer mercado. Dentro desse volume de empresas que já tentou ou está tentando competir nesse mercado não pode se argumentar nenhuma das seguintes coisas: que nenhuma delas não tem tecnologia boa; que nenhuma delas não tem operação boa; e que nenhuma delas não tem marca suficiente forte no Brasil. Por isso, fique muito atento nessa personificação do Rappi. Ela leva a uma comparação um a um. Mas não é disso que estamos falando. Estamos falando do mercado. Olhe para o conjunto das empresas tentando e não conseguindo. Entre nós todos, acho que temos boa tecnologia, boa operação e boas marcas. Cada uma com suas forças e fraquezas.

Se o Rappi atingisse um volume de 80% do mercado, você acha que pararia e diria: agora vou dividir porque o mercado precisa se equilibrar?
Ninguém tem a expectativa, nem do player do dominante, que alguém pegue e entregue o market share para outras empresas. Não sei o que isso seria: socialismo ou algo pior do que isso. Ninguém está impedindo as empresas de crescerem, nem de terem o market share que merecem por suas virtudes. Não estamos pedindo para o Cade bloquear o crescimento do iFood. Ao contrário: no final das contas, nós todos competimos, mas estamos numa fase principiante do mercado de delivery, no mundo e Brasil. No final, precisa crescer o mercado como um todo. Não acho que o fato de que o Rappi comece a crescer mais, ou o Uber Eats volte e a Americanas entre nesse mercado, quer dizer que o iFood deve parar de crescer.

"Ninguém está impedindo as empresas de crescerem, nem de terem o market share que merecem por suas virtudes. Não estamos pedindo para o Cade bloquear o crescimento do iFood"

O que você acha, então?
Acho que o iFood pode e deve continuar a crescer, assim como as outras empresas do ecossistema precisam ter a sua fatia desse crescimento, competindo com as mesmas regras. Se o iFood hoje diz que a questão da exclusividade não tem nada a ver, que a tecnologia, os serviços, a inovação e todas as outras coisas fazem a diferença, eu digo perfeito. Então, vamos abandonar as exclusividades e vamos todos competir por tecnologias, serviços, proposta de valor, marketing. Enfim, tudo o que seria uma competição justa. O que nós estamos pedindo é “right to play”, não “right to win”. Eu não preciso que Cade ou qualquer órgão nos beneficie. Não preciso que redirecione os usuários para mim, ou que force os restaurantes e os entregadores a trabalharem para mim. O que eu preciso é garantir que o mercado consiga competir.

As mesmas condições para todo mundo...
Exato.