O conceito de carro popular acabou. Considerando os preços dos automóveis mais “baratos” do Brasil, o Renault Kwid (R$ 48.790) e Fiat Mobi (R$ 48.890), não há por que contestar essa afirmação.
E ela foi feita, recentemente, por ninguém menos do que o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Luiz Carlos Moraes. “Não existe mais essa figura do carro popular, que não tem nada [de tecnologia]. Nós temos que ter, por lei, todos os sistemas e nós achamos que está correto. Esquece [o carro popular], isso é passado, não tem mais sentido isso.”
Outro fato que comprova a morte do carro popular é o ranking de vendas. Dos 10 carros mais vendidos no Brasil em 2021, apenas três não têm preços na casa dos R$ 100 mil: o próprio Mobi (que chega a R$ 61 mil), o Fiat Argo (R$ 67 mil a R$ 79 mil) e o Volkswagen Gol (R$ 68 mil a R$ 75 mil).
Entre os mais vendidos de alto valor, o Jeep Compass, um SUV médio que já atingiu 60 mil unidades vendidas este ano, custa no mínimo R$ 152 mil e chega a R$ 233 mil.
Mas olhar só para os preços não explica o fenômeno. O conceito de carro popular acabou porque as demandas da sociedade sacudiram a indústria automobilística e ela corre desesperadamente atrás de um novo mundo que exige um cenário de despoluição.
E, por mais que o Brasil insista em ficar à parte deste novo mundo, as montadoras de automóveis são empresas multinacionais que não fazem mais “jabuticabas”, ou seja, carros que atendem exclusivamente ao mercado brasileiro.
Campeão nacional de vendas por 27 anos consecutivos (1987 a 2013), o Volkswagen Gol teve sua morte decretada para o fim de 2023 pelo CEO da VW América Latina, Pablo Di Si. Ainda não se sabe se a Volkswagen vai manter o nome Gol em um novo veículo.
O que é certo é que o atual modelo vai sair de linha para dar lugar a um pequeno SUV urbano conectado, eficiente, seguro e mais barato de ser produzido, pois compartilha uma plataforma modular com outros veículos, reduzindo os custos de desenvolvimento e fabricação.
Um país continental como o Brasil, entretanto, precisa do transporte individual para movimentar sua economia. E esse tipo de transporte não atende só à elite econômica, mas também a milhões de trabalhadores, microempreendedores e jovens que compram o primeiro carro. Por isso, o “carro popular” dessa camada da sociedade é o carro usado, ou seminovo, com até três anos de uso.
Mesmo para as montadoras que fabricam modelos mais populares no Brasil, não vale mais a pena produzir as versões mais baratas. Em um cenário de pouca oferta de semicondutores para a fabricação de microchips, é mais vantajoso usar os sistemas eletrônicos em versões mais caras, que deixam maior margem de lucro.
Mesmo para as montadoras que fabricam modelos mais populares no Brasil, não vale mais a pena produzir as versões mais baratas
Antes do Gol, a Volkswagen aposentou também o pequeno Up e o compacto Fox. A Fiat, por sua vez, já disse que o tradicional modelo Uno está na marca do pênalti. Dificilmente ele vai emplacar mais duas temporadas. Entre seus dois modelos populares, a Fiat apostou no Mobi.
O que explica isso? Ao longo do tempo, os consumidores brasileiros foram ficando mais exigentes. Sistemas que antes só estavam disponíveis em modelos mais caros, como os sedãs grandes, passaram a ser obrigatórios em sedãs e hatches médios, em toda a gama de SUVs e até nos hatches compactos.
Os equipamentos mais comuns que passaram a ser “exigidos” pelo mercado vão desde câmbio automático até espelhamento do smartphone, passando por ar-condicionado, sensor de estacionamento, câmera de ré e tela multimídia com pelo menos 7” e sensível ao toque.
Para além disso, testes de impacto do Latin NCAP acabaram tornando “obrigatórios” itens como airbags laterais, airbags de cortina e controles eletrônicos de tração e estabilidade para que os carros ganhem quatro ou cinco estrelas no instituto que afere a segurança dos veículos fabricados na América Latina.
Um terceiro motivo praticamente obriga as montadoras a investirem em sistemas eletrônicos que melhorem a eficiência energética: a lei. O salto maior em tecnologia veio com o programa Inovar-Auto, durante o governo Dilma Rousseff, que levou a motores com menos cilindros e com cilindrada menor, porém mais potentes e mais econômicos.
Assim, carros com motor 1.0 turbo passaram a competir em desempenho com modelos que antes usavam motores 1.8 ou 2.0. As tecnologias dos novos motores, entretanto, também encareceram os automóveis.
Assim como aconteceu com o Inovar-Auto, o atual programa Rota 2030 prevê multas para os fabricantes que não atingirem metas de eficiência energética. Por isso, a onda atual das montadoras é aposentar motores aspirados - especialmente 1.6, 1.8 e 2.0 - e substituí-los por veículos híbridos elétricos, que podem rodar na cidade com propulsão elétrica e na estrada com o motor a combustão interna.
Totalmente focada em acompanhar o ritmo de desenvolvimento das novas tecnologias de despoluição, as montadoras tiveram que optar por um caminho.
Se não bastasse esse movimento mundial, a situação econômica no Brasil se deteriorou a ponto de a classe média não mais poder sonhar em comprar um carro - ainda que seja “popular”. Por isso, os poucos modelos que resistem na faixa de R$ 60 mil a R$ 80 mil contam com boa conectividade, trazendo no mínimo um rádio com Bluetooth.
Segundo a Anfavea, a crise na entrega de semicondutores vai durar no mínimo até o fim de 2022. Porém, mesmo sem essa crise, o conceito de carro popular já estava descartado pela indústria nacional.
Ele foi criado no governo Itamar Franco (1992-1995), como forma de incentivar a venda de carros de entrada com motor 1.0, como o Fiat Uno Mille, o Chevrolet Chevette, o Ford Escort, o Volkswagen Gol e até o VW Fusca (que voltou a ser fabricado, embora contasse com motor 1.6). Na época, esses carros custavam o equivalente a US$ 7 mil.
Com o tempo, a própria disputa de mercado melhorou a potência e o consumo dos motores 1.0. Hoje, a cilindrada do motor não é mais importante, pois, como dissemos, motores 1.0 turbo são mais potentes e mais econômicos do que os antigos 1.6, 1.8 e até 2.0. O mundo mudou e não tem volta.
A indústria automobilística não quer dar marcha à ré porque, com o tempo, a disputa insana pelo consumidor de carros populares resultou em altos volumes e baixas margens. O paradigma do século 21 é outro: baixos volumes e altas margens.