Felipe Bronze é um chef estrelado. Seu restaurante carioca, o Oro, tem duas estrelas no guia Michelin e é referência em gastronomia contemporânea, e o paulistano Pipo, no Museu da Imagem e do Som, tinha, até fechar para o público em 17 de março, filas na porta.
Ele também faz sucesso com os programas de TV, como o Top Chef, reality show entre cozinheiros, transmitido pela Record, e o “Perto do Fogo”, na GNT.
Em quarentena há quase 50 dias e sem ter contraído o vírus (ele fez o teste no dia desta entrevista), Felipe Bronze está a mil com os novos projetos digitais. Sem saber quando seus restaurantes voltarão a abrir, Bronze vê esta parada como um período de oportunidade.
"O delivery permite uma experimentação, que me deixa animado, e deixa o setor mais verdadeiro, mostra quem faz comida boa de verdade", disse Bronze, em entrevista ao NeoFeed.
Tanto que no meio dessa pandemia, ele decidiu lançar três novas marcas. A primeira é o MarmiPIPO, a marmita com comida do Pipo, que começou há uma semana. A segunda é um delivery de sanduíches, que se chamará Migá.
E, por fim, ele lançara um kit para cozinhar em casa, com a comida pré-pronta. "A ideia é as pessoas finalizarem a comida em casa, seja pelo lado da diversão, mas também pela praticidade", afirma Bronze.
Nesta entrevista, ele também analisa como os hábitos de consumo vão mudar e de que forma o delivery vai ajudar a salvar os restaurantes.
"Antes mesmo dessa pandemia, eu já achava que ia ter uma revolução pelo digital, mas achava que seria daqui a uns cinco anos", afirma Bronze. Acompanhe:
Como foi fechar os restaurantes?
Fiz uma reunião no dia 15 de março, de dia com a equipe de São Paulo, e à noite, com a do Rio. Falei que achava que era uma suspensão de 90 a 120 dias e não de 15 dias, como se dizia na época. Demiti aqueles que estavam em experiência e coloquei as pessoas em suspensão de contrato, pelas regras do sindicato. A questão é que eles estão recebendo 25% do que recebiam, porque o salário não engloba a caixinha. É dramático isso. Liguei para os proprietários para diminuir o aluguel. Se você se endivida para manter seu negócio, você pode quebrar qualquer possibilidade de ficar em pé quando a quarentena passar. Estamos preparados para este tempo de chuva. Não posso dizer que não vou demitir. Talvez precise reduzir a minha equipe de 50 para 30, talvez o delivery vire um negócio enorme. Tanta coisa pode acontecer.
Você já pensa em reabrir os restaurantes?
Quando fechei os restaurantes, falei para todos os funcionários que teríamos um período duro pela frente. Hoje é um exercício de futurologia prever quando e como os restaurantes vão abrir. Só posso dizer que será uma época diferente para aqueles que conseguirem voltar.
O que é reabrir?
Não sei. Não estamos neste mundo ainda. Estamos sempre um passo atrás do que acontece lá fora. E não vi os restaurantes europeus reabrirem para saber como vai ser.
"Imagina um salão com pessoas com máscaras, paredes de acrílico entre as mesas. Será que é uma experiência que valerá a pena?"
Fala-se na proposta de abrir aos poucos, com 30% da capacidade.
Se for este decreto de 30% do Witzel (Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro), provavelmente eu não abro o Oro. Temos 35 lugares, seria fazer um restaurante para 10 pessoas, teria de multiplicar o preço por três e o restaurante não seria saudável financeiramente. Não temos margem para baixar e eu não vou trabalhar de graça. Seria operar no prejuízo. Mas acho que o mundo tem questões mais relevantes do que um ou outro restaurante de alta gastronomia. Precisamos discutir o setor. Somos os maiores empregadores da mão de obra jovem. Se não descobrirem uma vacina, o setor não vai funcionar de maneira otimista. Será um período sombrio. Imagino uma quebradeira absurda, que será muito maior na reabertura, do que agora, com as pessoas com menos dinheiro. Imagina um salão com pessoas com máscaras, paredes de acrílico entre as mesas. Será que é uma experiência que valerá a pena?
Quais são as saídas, na sua visão?
O hábito de consumo vai mudar muito. As pessoas vão se reunir mais em casa. Por exemplo, estou respeitando a quarentena, estou há 50 dias em casa. Não sei se tem problema eu marcar de encontrar amigos que também estão respeitando a quarentena. Talvez este seja um novo perfil de experiência, talvez não em um ambiente público, onde você encontra pessoas que não têm ideia como estão se comportando, mas na casa de amigos, onde você deixa o sapato do lado de fora e toma todos os cuidados.
Os caminhos passam pelo delivery?
Acredito no delivery e no digital. Estou lançando três novas marcas digitais. A primeira é o MarmiPIPO, a marmita com comida do Pipo, que começou há uma semana. É um delivery de restaurante, com receitas gostosas, que espero que seja perene, que atende das 11h30 às 16 horas, em São Paulo. A segunda é um delivery de sanduíches, que se chamará Migá. O nome é inspirado nas migalhinhas de pão. Deve ser lançado em 15 dias, no máximo 20 dias. Estava no plano ter um serviço de sanduíches, começando pelo digital e, dando certo, indo para o restaurante físico.
Qual o terceiro projeto?
Vou fazer um negócio que nunca trabalhei. É um kit para cozinhar em casa, com a minha comida pré-pronta. A ideia é as pessoas finalizarem a comida em casa, seja pelo lado da diversão, mas também pela praticidade. Será um pre-cooked, para as pessoas pedirem em casa e curtirem o momento. Vamos lançar em quantidade limitada para testar o mercado, no Dia dos Namorados.
"Antes da quarentena, o modelo de consumo já nos empurrava para o digital. Faz anos que o que mais cresce é o delivery, a taxas de dois dígitos por ano"
Antes da crise você já planejava um restaurante com pedidos online?
Acho que os restaurantes já estavam no caminho de mudar de paradigma. O comer fora estava subprecificado, talvez pela concorrência exagerada e o preço se nivela por baixo. As margens estavam muito achatadas. Nos restaurantes, você fatura muito, mas a margem é pequena. Se você sai do trilho por qualquer motivo, já vai para o vermelho. Antes da quarentena, o modelo de consumo já nos empurrava para o digital. Faz anos que o que mais cresce é o delivery, a taxas de dois dígitos por ano.
Ou seja, você já estava estudando o delivery?
Sim, o delivery permite uma experimentação, que me deixa animado, e deixa o setor mais verdadeiro, mostra quem faz comida boa de verdade. No Pipo, eu estava negociando uma cozinha com 600 metros quadrados voltada para o delivery. O Pipo vivia lotado, não conseguíamos entregar nem mais um misto quente. As pessoas olhavam o digital como um complemento de faturamento, mas eu já olhava como uma coisa diferente. Hoje, no delivery, entregamos 120 pedidos por dia no último fim de semana. Devo ter atingido umas 400 pessoas por dia. É o mesmo número do restaurante, mas sem ter de lavar um copo, um talher, sem ter de rodar mesa. No físico, eu tenho 58 pessoas trabalhando. No digital, são nove. E a gente pode crescer o número de atendimento. O delivery também nos permite experimentar e “pivotar” de uma maneira mais rápida.
Por exemplo?
Amanhã decido abrir um restaurante novo, de comida asiática. Preciso encontrar um ponto, negociar o aluguel, fazer um projeto lindo, investir na obra, no mobiliário, treinar equipe, recepção, cardápio, sistema de reservas. E só quando estiver funcionando é que saberei se deu certo ou errado. Se der errado, a mudança de direção é terrível. Mas já comprometi tanto dinheiro, que me sinto obrigado a persistir. Às vezes, são seis meses queimando dinheiro e depois vou precisar de quatro ou cinco anos para ter lucro. Se eu fechar o ponto e reabrir com outra proposta, tem um novo investimento. Não dá para aproveitar tudo do restaurante anterior, será outra obra, uma adaptação. No digital, se o restaurante asiático não deu certo, dá para transformar numa pizzaria no mesmo dia. Acho isso muito ágil. É excitante como business e nosso setor caminha para isso. As pessoas vão querer a experiência em casa, que é mais seguro.
É a morte dos restaurantes?
Não estou decretando a morte de jeito nenhum. Mas acho que é olhar como oportunidade. Vai ter um universo de restaurantes digitais. Antes mesmo dessa pandemia, eu já achava que ia ter uma revolução pelo digital, mas achava que seria daqui a uns cinco anos. Antecipou em 12 meses. O digital deveria ser o caminho mais interessante. Se eu abrisse cinco restaurantes diferentes, em espaços físicos, ia ter gente comentando que eu tinha negócios demais. No digital, é só abrir o negócio e pronto.
"Vai ter um universo de restaurantes digitais. Antes mesmo dessa pandemia, eu já achava que ia ter uma revolução pelo digital, mas achava que seria daqui a uns cinco anos"
É uma nova oportunidade?
Estou animado com isso. Digo que os chefs estão nus. Agora é todo mundo pelo que é de verdade. Se a comida é boa, se tem conteúdo de verdade. É isso que vai prevalecer. O bonito do digital é essa verdade inexorável. Se não gostar da comida, o cliente não pede mais. No restaurante, você pode até não gostar, mas tem o ambiente, a badalação e é tudo muito caro. No digital, o custo de aquisição do cliente é um Instagram.
O que muda para um chef quando ele pensa no delivery?
O digital é outra logística. Tem muita coisa do restaurante, como conhecemos hoje, que não se aplica no digital. Por exemplo, tem a cadência do pedido. O meu objetivo é entregar qualquer coisa em até 30 minutos. É isso que fez o sucesso do Domino’s Pizza. É muito chato esperar um delivery, passa a vontade de comer. No restaurante, é outro ritmo, tem o pedido, a entrada, é outra cadência. Outra coisa é que no digital não é feio dizer que acabou um item. Fiz 100 kits para o Dia das Mães, que esgotou na quinta-feira anterior. É como as coisas deveriam ser no restaurante físico. Se acaba algum prato, preciso reimprimir o cardápio, mudar o layout, tudo isso custa dinheiro. O digital traz uma simplificação do setor. E eu olho isso como uma energia positiva.
Qual o investimento no delivery?
Não configura um investimento. Eu repasso o custo da embalagem e diminuímos o preço do cardápio, de 10% a 15%. Se a pessoa está no restaurante, tem toda a matriz de despesa, do talher, do copo, do serviço. No plano anterior do delivery, chegamos a estudar embalagens, era um plano megalomaníaco, com embalagens que encaixavam uma na outra. Mas uma das lições da pandemia é a simplificação. Isso é necessário, é fundamental. Pode ser cool uma embalagem, mas vai custar mais dinheiro. Tem 700 formas de gastar dinheiro, a embalagem pode ser funcional, manter a temperatura do alimento ou ser um presente. Acho que a maioria vai caminhar para uma caixa de presente, que vai custar mais, não será funcional e vai gerar mais lixo. Acho que o presente é para ocasiões especiais, como o Dia dos Namorados, mas o dia a dia é a funcionalidade.
De onde vem a sua visão de negócios?
Antes de fazer gastronomia, estudei economia por dois anos e meio e direito por um ano e meio. E decidi fazer gastronomia fora, nos Estados Unidos. Aprendi com o olhar americano, de não perder dinheiro. Quando cheguei no Culinary Institute of America, 20 anos atrás, a gastronomia era uma profissão como todas as outras. Aqui no Brasil, eu me sentia uma pessoa especial. A gastronomia é um negócio de uma dinâmica mais simples, não é mercado financeiro. A gente tem de tomar conta dos custos. Hoje, para abrir uma hamburgueria tem de antes correr atrás, saber o custo da carne, do processamento, de quanto preciso vender para dar certo. Eu gosto de criar e gosto de administrar e tem uma terceira vertente, que é gente. Eu adoro gente, gosto de trabalhar com pessoas.
Mas é comum chefs não se preocuparem com os custos.
Às vezes, os grandes restaurantes prestam um desserviço. Eles habituaram a trabalhar em um ambiente ruim, ineficiente, que não cria negócio. Tem uma horta de 100 metros quadrados, equipes enormes e os estudantes de gastronomia sonham com isso. Sonham com a ineficiência, com o prejuízo. Por melhor que o restaurante seja, o negócio explode. Trabalhei no Le Bernardin (restaurante estrelado em Nova York), trabalhava pra caramba e era uma equipe de 12 pessoas. Na mesma época, o El Bulli (restaurante espanhol, fechado em 2011, do chef Ferran Adriá) tinha 60 pessoas. Eu acho que foi um lugar revolucionário, mágico, mas que não pode ser “modelo de negócio” para uma geração, porque cultuaria uma ineficiência. Esses modelos são para pouquíssimos e não visam ao resultado.
"Os grandes restaurantes prestam um desserviço. Eles habituaram a trabalhar em um ambiente ruim, ineficiente, que não cria negócio"
O restaurante Oro é lucrativo?
Lógico. Senão não tinha o restaurante.
Com o Oro fechado, como é pilotar de casa o trabalho de São Paulo?
Estou trabalhando remotamente, com Zoom o dia inteiro. A única coisa que eu sinto, e que é duro para mim, é não poder estar fisicamente com a equipe. É uma ironia fina. Eu adoraria estar trabalhando com a minha equipe. Sobre os projetos, estou focando em São Paulo agora, onde o mercado é mais intenso. E porque tenho uma equipe que consegue trabalhar com segurança, antes deste rodízio absurdo (desde o dia 11 de maio, o rodízio de veículos em São Paulo permite circular carros de final ímpar nos dias ímpares, e pares, nos dias pares). No Rio, eu não tenho segurança que o mercado vai acompanhar, se terei tanto cliente que justifique tirar os funcionários que estão em suspensão de contrato.
Quais os planos para os programas de TV?
Os programas estão suspensos. O Top Chef interrompeu no meio, mas a Record já sinalizou que quer retomar em breve. É um programa grandioso, com muitas cenas externas. Eu sugeri de ter uma equipe reduzida, com mais cenas em estúdio.
E os programas na GNT?
Devemos gravar a próxima temporada de Perto do Fogo em julho. Eu acredito que se respeitar o distanciamento, se testar todo mundo, dá para voltar a gravar. Claro que será uma entrega diferente, como novos contratos com as pessoas, menor contato físico.