O mercado de criptoativos se caracteriza pela descentralização e pela ausência de uma entidade central responsável pela sua regulação, o que confere liberdade e flexibilidade às transações. Mas também impõe desafios na supervisão e na mitigação de riscos financeiros. Diante desse cenário, o Banco Central do Brasil (BC) busca estabelecer um novo marco regulatório para o setor, por meio de consultas públicas que se encerram na sexta-feira, 28 de fevereiro.
Em discussão, estão normas que regulamentam as prestadoras de serviços de ativos digitais, como corretoras e custodiantes, além do mercado de câmbio e de transferências internacionais de criptomoedas.
O NeoFeed conversou nos últimos dias com quase uma dezena de players que têm interesse nessas mudanças e conseguiu antecipar o que a indústria quer da nova regulamentação - as manifestações com os pedidos e as ideias só devem ser colocadas no documento de consulta pública no fim do dia. "Todos publicam faltando menos de 30 minutos para o encerramento", disse uma fonte.
São esperadas as manifestações de grupos associativos, como das Associações Brasileiras de Tokenização (ABToken), de Criptoeconomia (ABCripto) e Câmbio (Abracam), e de grandes players individuais, como Coinbase e Mercado Bitcoin.
Prevista na Lei nº 14.478/22, a regulamentação vem sendo discutida entre representantes do BC e da indústria cripto brasileira há mais de um ano. A percepção geral é de que a autoridade vem se esforçando para compreender a complexidade desse mercado antes de delimitar as regras.
“A própria consulta pública é exemplo disso. Então, estou bastante otimista com todo o processo”, afirma Cesar Bluz, advogado da Baptista Luz, que está assessorando a ABToken no caso. Embora o mercado reconheça os avanços nas propostas submetidas à consulta pública em novembro de 2024, ainda há uma série de divergências em pauta.
As principais preocupações são quanto às propostas da consulta pública 111, que versa sobre o mercado de câmbio e transferências de ativos digitais para o exterior. “O objetivo do BC com essa consulta pública foi reduzir o risco de lavagem de dinheiro, que também é uma preocupação nossa. Mas é preciso alternativas que não aleije o Brasil no mercado global de cripto”, diz Vanessa Butalla, vice-presidente de jurídico, compliance e regulação do Mercado Bitcoin.
Uma das principais ineficiências da proposta do BC, na avaliação da indústria, é a proibição do envio de ativos digitais de uma corretora para uma carteira autocustodiada no exterior. Um dos pontos é que a vedação abriria brecha para que o usuário transferisse seus ativos digitais para sua própria carteira autocustodiada (que pode ser um pen drive, por exemplo) e, então, enviar para uma carteira de um não-residente. Outro ponto é a dificuldade em garantir que a carteira para a qual os ativos forem enviados é de alguém que mora no Brasil ou não.
Pela regra proposta, as corretoras de ativos digitais só poderiam transferir ativos para o exterior caso o destinatário fosse uma prestadora de serviços de ativos virtuais devidamente regulamentada em sua jurisdição. No entanto, Ibiaçu Caetano, CFO do Bitybank, pontua que a dificuldade em realizar essa verificação e a pouca regulamentação desse mercado no exterior poderiam afetar as operações.
"Esse é o modelo vigente no mundo tradicional. Só que em cripto, como é que eu vou saber que essa carteira é sua, da sua prima ou de um bandido? É muito difícil. Hoje, não existe esse sistema de trocas de informação. A Europa já tentou algo parecido e não deu certo", afirma Caetano.
Em 2024, a compra e venda de criptoativos entre residentes e não-residentes movimentaram US$ 19,8 bilhões, segundo dados do Banco Central. “O envio de criptoativos não vai acabar. Mas, pelas regras propostas, é um dinheiro que ficará ainda mais difícil de rastrear. Seria um apagão de dados”
Uma das contrapropostas estudadas pelo Mercado Bitcoin é a possibilidade de se criar mecanismos controle mais rigorosos, sem proibir a transferência internacional. “Se o valor da transferência é superior, por exemplo, a US$ 50 mil, eu não vedaria, mas adotaria procedimentos adicionais de verificação em relação a esse cliente. Se não for apontado nenhum indício de lavagem de dinheiro ou de irregularidade, essa transferência poderia ser feita", comenta Butalla.
Também há inseguranças relacionadas à regulamentação de stablecoins proposta na consulta pública 109, que regulamenta os agentes do mercado de ativos digitais. Isso porque a norma apresentada pelo BC impossibilita que as corretoras ofertem em suas plataformas stablecoins cujos mecanismos de controle dos ativos de reserva sejam efetuados por algoritmos. “Todos os stablecoins que conheço são estabilizados com algum mecanismo algorítmico”, diz Bloz.
As propostas incluídas na consulta pública também impossibilitam a transferência de stablecoins para carteiras autocustodiadas. Uma das categorias que mais crescem em criptoativos, as stablecoins são tokens digitais projetados para manter um valor estável, lastreados em moedas fiduciárias. O mais conhecido é o USDC, atrelado ao dólar, com US$ 55 bilhões de valor de mercado e volume de negociação próximo de US$ 10 bilhões por dia.
Kelly Massaro, presidente da Abracam, afirma que a demanda por transferência envolvendo o dólar tokenizado tem crescido cada vez mais nas corretoras de câmbio e, na sua visão, elas também deveriam ser incluídas no universo cripto.
"Estamos pleiteando o acesso das instituições de câmbio na 109 e na 111, porque são instituições extremamente respeitadas pelo mercado, que conhecem toda a questão de PLD (Prevenção à Lavagem de Dinheiro) e CFTP (Combate ao Financiamento do Terrorismo e da Proliferação de Armas de Destruição em Massa)", afirma. ela
Algumas instituições de câmbio, segundo Massaro, estão declarando que, se ficarem fora desse mercado, deverão ter prejuízo e exclusão de empregos. "Nós entendemos que as corretoras de câmbio teriam plena capacidade de ser uma liquidante da operação, para trabalhar em parceria com as exchanges."
Para isso, no entanto, a presidente da Abracam avalia que a proposta da consulta 109, que regulamenta os agentes da indústria cripto, deveria contemplar também a figura do liquidante, não apenas do intermediário, custodiante e corretora.
"Se uma corretora de câmbio fosse liquidante, ela processaria o câmbio entre reais e a moeda usada para comprar criptoativos, como faz com dólar e euro. Seria apenas mais um produto no portfólio, como uma padaria adicionando uma nova marca de refrigerante, sem mudar sua especialidade."
Caetano, da Bitybank, defende que a figura do liquidante na 109 deve fomentar maior inovação e eficiência no mercado, por ter custo e exigências menores. "Ele poderia fazer menos coisas do que a intermediária, mas também ter um custo menor de observância. A consequência de você criar uma licença mais simples é exatamente o efeito que o mercado teve quando o BC criou instituições de pagamentos e sociedades de crédito direto. No momento que ele fez isso, surgiu o Nubank, Banco Neon, Inter."
Com as sugestões na mesa, o desafio das autoridades agora será garantir o controle de riscos sem tirar a principal característica desse mercado, que é a descentralização — uma missão nada trivial para um Banco Central.