Desde a semana passada, o mercado financeiro acompanha uma polêmica novela. E entre tantos atores envolvidos, dois protagonistas se destacam. A trama teve início em 15 de junho, quando o WhatsApp elegeu o Brasil para ser o palco da estreia global do seu serviço de pagamentos online.

Sua entrada nessa cena provocou a reação de outro personagem. Em 23 de junho, o Banco Central barrou o serviço, sob a alegação de “preservar um adequado ambiente competitivo”. Para isso, alterou a circular 3.682, de 2013, adicionando seu poder de veto a novas ofertas de pagamentos no País.

Para parte do mercado, a mudança repentina da regra atendeu à pressão dos grandes bancos privados. Outra interpretação, porém, circula nos bastidores: a de que o BC agiu, de fato, para proteger o PIX, sua plataforma de pagamentos instantâneos, que será lançada em novembro.

O fato é que o PIX seguiu no centro dessa discussão. De acordo com uma reportagem do jornal Valor Econômico, o BC estaria disposto agora a antecipar o pré-lançamento da plataforma para setembro. Procurado pelo NeoFeed, o BC não quis comentar o tema.

Na mesma data, um dia depois de ter se reunido com o órgão, Will Cathcart, diretor do WhatsApp, afirmou em nota que o aplicativo seguirá trabalhando com seus parceiros na empreitada, entre eles, Cielo, Mastercard, Visa e Nubank, para restaurar o serviço. Mas vai se integrar ao sistema do BC.

“O WhatsApp afirmou seu apoio a um modelo pró-competitivo e aberto para pagamentos e também seu compromisso em fornecer pagamentos via PIX tão logo o sistema esteja disponível”, observou Cathcart, em nota sobre o encontro no BC.

À parte desses novos capítulos, as atuações da dupla e de outros envolvidos também dividem opiniões. “Houve um pouco de ego e o BC se incomodou porque o WhatsApp roubou os holofotes”, diz uma fonte do setor. “Tanto que passou a investir numa comunicação ostensiva do PIX, como se quisesse dizer: vocês estão aplaudindo, mas eu tenho a mesma coisa, mais barata e com todos participando.”

Há, no entanto, quem critique a postura do WhatsApp. “O BC organizou a festa e convidou todo mundo. O WhatsApp quis pular o muro e o pior, antes da festa começar”, afirma outra fonte. “E com um modelo hermético, contrário ao formato aberto, que o BC prega desde o início com o PIX.”

O papel dos bancos e sua suposta influência na decisão do BC também é questionado. Especialmente pelo fato de que, no mercado, comenta-se que todos eles foram convidados a participar. E que não aderiram ao serviço alegando que suas equipes de TI estariam sobrecarregadas com a Covid-19.

A pressão dessas instituições não teria sido exercida, porém, pelo serviço em si, mas pela percepção do risco que esse primeiro passo traria para o setor.

Além de estar sob o guarda-chuva do poderio financeiro de um gigante como o Facebook, outros fatores reforçam essa ameaça. O WhatsApp tem 120 milhões de usuários no País, de todas as classes sociais e com alto grau de engajamento. Em média, eles gastam 1h30 por dia no aplicativo.

O WhatsApp tem 120 milhões de usuários no País, de todas as classes sociais e com alto grau de engajamento. Em média, eles gastam 1h30 por dia no aplicativo

“Os bancos perceberam que iriam perder o monopólio da última milha do pagamento”, diz um executivo, para quem, o Facebook não se importa, necessariamente, com a receita do serviço. E sim, com outra moeda, muito relevante para os bancos e qualquer empresa: os dados e hábitos dos usuários.

Em meio a tanto barulho, outra corrente entende que todos os elos tiveram seus erros nessa discussão. “O serviço já vinha sendo testado há bastante tempo, mas isso deveria ter sido melhor comunicado ao BC”, diz outra fonte.

Ao mesmo tempo, ele ressalta que houve uma resposta exagerada e desnecessária do BC e dos grandes bancos. “Quem faria todo o processo é o sistema de cartões e não o WhatsApp”, diz. “O que deveria ser debatido é o potencial de usar uma ferramenta como essa para iniciar e entregar uma transação.”

Max Gutierrez, head de produtos do C6, segue na mesma linha. “Todos estão discutindo mais o instrumento e não o movimento em si, que é o mais importante”, afirma. Para ele, a entrada do Facebook e de outras big techs no setor de pagamentos é inevitável. E bem-vinda.

Gutierrez usa o Kick, serviço do C6 que permite fazer transferências via SMS e WhatsApp, para justificar essa visão. “Eu escalo meu produto por meio do WhatsApp, assim como o pagamento deles só funciona com um cartão”, diz, ressaltando que as parcerias serão cada vez mais a tônica. “As big techs não vão construir seus próprios bancos. Assim como os bancos não vão construir suas empresas de tecnologia.”

Disrupção

Com um script ainda sendo escrito e que promete muitas reviravoltas, não é possível saber qual será o desfecho do imbróglio entre o BC e o WhatsApp. E, em um contexto mais amplo, se haverá, de fato, uma aproximação entre as big techs e os nomes mais tradicionais do mercado financeiro.

Mas, no centro dessa discórdia, é certo que o PIX carrega um grande potencial de disrupção. Por meio da marca, o BC irá fornecer uma infraestrutura para que o mercado desenvolva e ofereça modalidades de pagamentos instantâneos a consumidores e empresas, disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, por meio de diversos canais, em especial, os smartphones.

O leque inclui desde a possibilidade de transferências de dinheiro no modelo de Peer-2-peer, com a validação sendo feita por número do celular, CPF, CNPJ ou e-mail. Até, por exemplo, a compra de um produto no varejo físico ou no e-commerce, via leitura de QR Codes.

A ideia é que as transações sejam feitas em segundos, com a soma disponível em uma conta escolhida pelo usuário, dentro das carteiras de empresas integradas ao PIX. Na prática, o PIX surge como uma alternativa a formatos como TED, DOC, cartões, boletos e, principalmente, ao dinheiro em espécie.

Na prática, o PIX surge como uma alternativa a formatos como TED, DOC, cartões, boletos e, principalmente, ao dinheiro em espécie

Outro benefício embutido no modelo é a redução dos custos para todos os elos envolvidos nesse processo. A partir de uma estrutura padronizada, que permite eliminar intermediários e etapas na consolidação das transações. E que conecta todas as empresas em um único sistema – de bancos tradicionais e digitais a fintechs, varejistas e quem se habilitar a oferecer um serviço desse porte.

“Essa interoperabilidade entre as pontas do pagamento e a capacidade de inclusão financeira são as grandes revoluções do PIX”, diz Edson Santos, especialista em meios de pagamento. “Hoje, existem diversas carteiras digitais que já deram mais acesso às pessoas, mas elas não conversam uma com as outras.”

Santos ressalta ainda que, além de ampliar e tornar a competição mais justa entre todos os pares, o sistema abre caminho para o desenvolvimento de uma série de ofertas. “Uma fintech, por exemplo, vai poder oferecer um serviço nas mesmas condições que um grande banco”, afirma. “E com os custos semelhantes, o cliente vai ser captado pela melhor experiência.”

É justamente nessa frente que o Itaú Unibanco aposta para seguir relevante nesse novo cenário. “É uma ameaça, mas também uma oportunidade”, diz Carlos Eduardo Peyser, diretor de estratégias PME e Open Banking do banco. “Se, de um lado, vamos ter mais concorrentes, de outro, vamos poder gerar experiências que antes não conseguíamos. Fica igual para todo mundo.”

Ele diz não temer a perda de receitas com o novo modelo. “Eu não vivo de receita de TED”, afirma Peyser. “Nossa fonte é ter cliente dentro de casa, com máxima concentração e relacionamento com ele e vamos nos diferenciar pelo portfólio mais completo.”

Com esse modelo, o sistema também é visto como uma boa maneira de equilibrar as forças sob a perspectiva de entrada das big techs no jogo. E a comparação com outros mercados, como a China, onde o Alibaba, com o Alipay, e a Tencent, com o WeChat, dominam o setor, é usada como exemplo.

“Lá, o que existe, na prática, é um duopólio gigantesco, patrocinado pelo governo”, diz Bruno Diniz, consultor do mercado financeiro. “Aqui, o BC está permitindo um salto do cartão de plástico para o pagamento digital, mas com um mercado aberto, com a mesma oportunidade para todos.”

A princípio, a adesão ao PIX foi obrigatória para as instituições com mais de 500 mil contas ativas e aberta à participação das demais empresas de pagamento interessadas. Na primeira etapa, já concluída, 980 companhias se cadastraram.

“Nós já temos 50 empresas interessadas em construir soluções em cima nossa estrutura. De fintechs a varejistas, shoppings e adquirentes”, diz Davi Holanda, CEO da Acesso, que vai atuar no PIX por meio da plataforma white label Bankly.

“O PIX é como se, na Fórmula 1, todos usassem o mesmo motor e soubessem exatamente como é o circuito. O que vai diferenciar as equipes é a forma de uso, a abordagem e a experiência do cliente”, Davi Holanda, CEO da Acesso

“O PIX é como se, na Fórmula 1, todos usassem o mesmo motor e soubessem exatamente como é o circuito”, compara Holanda. “O que vai diferenciar as equipes é a forma de uso, a abordagem e a experiência do cliente.”

Quem também vai oferecer sua infraestrutura a terceiros é o Banco Original. Ao mesmo tempo, a instituição vai lançar sua própria oferta, que chegará ao mercado já no lançamento do PIX.

“O BC tem sido bastante cuidadoso pra que todos tenham voz na construção da plataforma”, diz Raul Moreira, diretor-executivo do Original. “Das grandes instituições e bancos digitais aos novos entrantes.”

Essa é a mesma percepção do C6, que está testando protótipos desde o início da fase de homologação, junto a consumidores e varejistas, como parte de uma evolução do Kick. “É uma construção em conjunto e temos contato diariamente com o BC”, diz Gutierrez.

Gueitiro Genso, CEO da PicPay, fintech que desde sua fundação, em 2012, investe no modelo dos pagamentos instantâneos, entende que ao permitir a conexão com outras empresas, o sistema só irá ampliar e acelerar o modelo da startup, que já conta com 20 milhões de usuários em seu ecossistema.

“Vejo o debate muito concentrado em quem vão ser os vencedores e os perdedores com o PIX”, diz Genso. “Mas no fim do dia, será um ganha-ganha. Todos vão se beneficiar. O mercado e, principalmente, o consumidor.”

Siga o NeoFeed nas redes sociais. Estamos no Facebook, no LinkedIn, no Twitter e no Instagram. Assista aos nossos vídeos no canal do YouTube e assine a nossa newsletter para receber notícias diariamente.