No momento em que o Banco Central (BC) começa a costurar a regulamentação para o setor de criptoativos, uma vitória para um segmento que buscava por anos reconhecimento e regularização, e o bitcoin valoriza-se quase 50% em 2024 (um sinal de que o inverno cripto ficou para trás), o Mercado Bitcoin (MB) está provocando um racha no setor no Brasil

A empresa, avaliada em US$ 2,1 bilhões e um dos investimentos do Softbank no Brasil, está deixando a Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABcripto), entidade que representa o setor e que ajudou a fundar, em 2018. E está saindo "atirando".

Um dos principais players do mercado brasileiro, com cerca de 4 milhões de clientes e mais de R$ 50 bilhões em volume negociado na plataforma desde 2013, o MB acusa a principal entidade representativa do setor de estar pouco interessada em defender a aprovação de medidas para proteger o mercado local e seu desenvolvimento.

Em entrevista ao NeoFeed, Reinaldo Rabelo, CEO do MB, afirma que a ABcripto passou a promover pautas e empresas cujo modelo de negócios colocam em risco a segurança do mercado local, não priorizando temas que fortaleçam o controle, tendo como consequência criar um ambiente que pode resultar em fraudes e lavagem de dinheiro.

“A associação passou a pensar em interesses muito amplos, muitas vezes interesses de pessoas que não operam, na nossa visão, de forma correta no Brasil”, diz Rabelo. “Esses atores não defendem o desenvolvimento do ecossistema, que foi para isso que a gente fundou a ABcripto.”

Conhecido por não se esconder do confronto e de expor suas opiniões quando se trata dos rumos dos criptoativos, Rabelo afirma que a ABcripto acabou capturada por atores, muitos deles estrangeiros, cujas pautas “não coincidem com as nossas”, voltadas ao desenvolvimento do ecossistema local.

Um mapeamento feito pela própria ABcripto aponta que 29% das empresas são controladas por holding no Brasil e 25% no exterior. Esse foi um dos pontos que gerou incômodo no MB por conta da associação não defender a exigência de que as companhias estrangeiras que prestem serviço no Brasil tenham um CNPJ e uma representação local, para que possam ser responsabilizadas em casos de ilegalidade.

Segundo Rabelo, o que acontece atualmente é que muitas empresas, algumas localizadas em paraísos fiscais, não têm CNPJ, nem representação local, operando através de prestadores de serviços, que muitas vezes não possuem capacidade patrimonial de suportar eventual medida judicial de recuperação de prejuízos causados.

Para ele, é preciso deixar claro que quem está prestando serviços de exchange, mesmo que permaneçam no exterior e atuem via parceiros, tem de ter uma representação local e um CNPJ para responder por eventuais problemas. Mas a ABcripto, de acordo com ele, avalia que essa é uma exigência desnecessária, entendendo que ela está coberta por outras regras.

“Isso [representação local] foi o que protegeu o investidor americano das fraudes cometidas pela Binance, e não protegeu o investidor brasileiro”, diz ele. “Exigir um CNPJ, um representante no Brasil, parece natural e óbvio, mas a ABcripto entende que não é importante, porque nenhuma dessas empresas estrangeiras quer colocar seus sócios com responsabilidade no Brasil, se der algum problema, paciência, o Brasil que fique com o prejuízo.”

Reinaldo Rabelo, CEO do MB

Segundo Rabelo, a mudança da pauta e propósito da ABcripto vem ocorrendo paulatinamente, mas ganhou força quando a associação decidiu atrair novos nomes, em especial grandes instituições, como Mastercard, Visa e Deloitte, em 2022.

O movimento de abrir e trazer representantes institucionais não foi um problema. Mas sua consequência, sim. A chegada desses grandes nomes, que ajudaram a ampliar o espectro do universo cripto, acabou sendo utilizado para “trazer todo mundo”, inclusive companhias não interessadas em fortalecer o mercado local, segundo o MB.

Atualmente, a ABCripto conta com 47 associados, de acordo com seu site. Entre eles estão nomes conhecidos do setor como mexicana Bitso, também avaliada em US$ 2,2 bilhões, 99Pay, Foxbit, Parfin, Transfero e muitos outros.

Na visão de Rabelo, um agravante dessa entrada em massa é que, no começo da associação, os fundadores contavam com uma espécie de “voto de Minerva”. Esse diferencial foi abolido para conseguir atrair as grandes instituições. E a falta de veto acabou deturpando as pautas, diz Rabelo.

O CEO do MB afirma que dentro do conselho da ABcripto existem atualmente escritórios de advocacia participando que defendem o interesse de alguns clientes “que não sabemos necessariamente quem são” e que “estão mais preocupados em explorar o mercado local, do que desenvolvê-lo”, sem internalizar as operações.

Um estudo da consultoria LCA Consultores, que consta no site da ABcripto, aponta que, a partir de 2021, as exchanges estrangeiras passaram a constituir a maior parte do mercado brasileiro de bitcoin.

De acordo com o estudo, a proporção de exchanges estrangeiras atingiu 49% ao final de setembro de 2022, enquanto as nacionais representavam 25%. O valor total transacionado de criptoativos foi estimado em R$ 317 bilhões.

Em função de um suposto “conflito de agendas”, Rabelo diz que o MB não conseguiu trazer “a pauta para onde entendemos ser o melhor caminho”. “Apesar de ter ainda algumas empresas cripto lá, nós acabamos ficando em minoria quando discutimos algum tema que pode prejudicar a maioria, formada por interesse dessas plataformas estrangeiras”, diz.

“E isso nos deixou incomodados, porque achamos que o próximo passo da ABcripto será filiar a Binance, porque já filiou empresas do mesmo perfil. E não queremos estar lá quando a Binance estiver associada, porque estamos no espectro totalmente oposto do que é a Binance, cujo fundador está preso por financiar terrorismo, lavagem de dinheiro”, complementa.

Changpeng Zhao, fundador da principal corretora de criptomoedas do mundo, foi condenado quatro meses de prisão, em abril de 2024, depois de se declarar culpado de acusações de lavagem de dinheiro. A Binance concordou também em pagar mais de US$ 4 bilhões em multas após acordo com o governo dos EUA.

De saída da ABcripto, o MB avalia que a pauta cripto, aquela que entende ser a correta, está melhor atendida por outras entidades as quais é filiada, como a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), por ter licença de instituição de pagamento, e a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), por contar com uma gestora.

“Entendemos que esse é o momento de dedicar mais esforços e tempo a essas associações maduras”, diz. “Estamos abandonando o projeto da ABcripto com dor no coração, porque ajudamos a fundar, mas associações representam interesses de momento e esses interesses não são coincidentes com os interesses do MB.”

A ABCripto ajudou na autorregulação do setor e atuou para a aprovação da Lei da Criptomoeda no Brasil. Por conta disso, o mercado de criptoativos cresceu de forma acelerada no País.

Um exemplo é que o número de investidores em ativos digitais quase triplicou no Brasil, passando de 1,5 milhão, em 2022, para ao menos 4,1 milhões, segundo dados da Receita Federal. É o recorde desde 2019, quando a informação passou a ser contabilizada.

Outro estudo, realizado pelo PagSeguro estima que o Brasil é o maior mercado da América Latina, tendo movimentado US$ 26 bilhões criptoativos em 2023. E a projeção é crescer  para US$ 33 bilhões em 2026.

Procurada pelo NeoFeed, a ABCripto informa, em nota, que “até o momento, não recebeu nenhum pedido de desfiliação por parte do associado [MB]” e que está dedicada ao desenvolvimento e organização do setor.

“Como associação, nosso propósito é promover um ambiente seguro do ponto de vista jurídico e de negócios, sempre atuando em conjunto com os órgãos reguladores e com o mercado”, diz um trecho da nota. “Em 2020, por exemplo, a associação foi pioneira ao lançar a autorregulação do setor, que traz um conjunto de regras para organizar e padronizar práticas de conduta e prevenção à lavagem de dinheiro entre as empresas do mercado.”

Procurada, a Binance não enviou posicionamento até o fechamento desta reportagem.