Ela não tem sangue francês, nem se formou em uma escola de renome ou tem negócios sustentados por grandes grupos financeiros.
Ainda assim, a carioca Alessandra Montagne, nascida no morro do Vidigal, abandonada pela mãe ainda bebê e criada até os 11 anos pelos avós em Poté, no interior de Minas Gerais, acaba de ser anunciada como um dos seis profissionais escolhidos a dedo pelo chef multiestrelado Alain Ducasse para comandar um restaurante dentro do Museu do Louvre, na capital francesa.
Divulgado no início de dezembro pelo Museum Paris, o negócio liderado por Ducasse dedicado a operar restaurantes em parceria com o grupo inglês de catering WSH prevê a operação de todos os restaurantes do principal museu da França pelos próximos dez anos.
Detalhes ainda não foram revelados, mas se sabe que a inauguração do empreendimento está prevista para o fim de 2024, “depois das Olimpíadas”. Mas uma equipe de 70 pessoas já está “pronta para atacar”. No time autointitulado “Geração Ducasse” estão nomes festejados no universo da alta gastronomia mundial.
Jessica Prealpato, a melhor chef pâtissière do mundo em 2017, hoje à frente do hotel San Régis, é uma das eleitas. Bem como Florent Ladeyn, do Auberge du Vermont, uma estrela Michelin; os padeiros criativos Pascal Rigo e Arnaud Chevalier; e Vivien Durand, do Le Prince Noir, uma estrela Michelin
Alessandra se dedicará ao novo projeto um dia por semana, não comprometendo assim seus outros negócios. Especialmente o restaurante gastronômico Nosso, no qual o jantar oferece apenas o menu degustação (de 80 ou 100 euros), e o Tempero, que até 2020 ocupou um imóvel de apenas 40 m² e renasceu no fim de 2022 com 180 m², com direito a cave e empório.
“É uma honra ser selecionada para criar a nova experiência gastronômica do Louvre. É o resultado de muitos anos de trabalho e dedicação”, comemora a brasileira Montagne, em conversa com o NeoFeed. “Só tenho a agradecer ao chef Alain Ducasse, por essa oportunidade maravilhosa.”
Ela se refere ao chef como “padrinho” e “mentor”, pois Ducasse vem apoiando a carreira da cozinheira “desde que comeu no Tempero, muito antes da pandemia”, conta Alessandra. “Ele está sempre falando de mim para outras pessoas, me chamando para cozinhar em eventos importantes, como no Festival de Cannes e banquetes presidenciais.”
Em 2025, a chef pretende dar início ao processo de internacionalização. Já tem contrato assinado para abrir um restaurante em um hotel boutique de Valência, na Espanha. “É um projeto lindo, em um antigo orfanato de meninas, que tem uma energia muito boa.”
Os clientes que hoje pedem para tirar foto com a carioca em seus restaurantes no 13eme arrondissement de Paris não imaginam que sua história poderia facilmente virar roteiro para uma daquelas séries de superação por meio da cozinha.
A comida como linguagem universal
Em Paris há 24 anos, até a adolescência Alessandra levou uma vida simples “de roça”. Matava galinha, colhia plantas no quintal e cozinhava em fogão à lenha. Nessa época, sua mãe reapareceu. Estava casada com um suíço. Era a chance de a jovem sair do Brasil.
O que não se realizou sem antes ter um filho aos 16 anos, passar por uma relação abusiva e sofrer diversos tipos de violência que a fez se fechar para o Brasil por muitos anos.
“Eram lembranças muito difíceis”, diz ela, que só voltou a tocar em várias feridas recentemente, para escrever o livro Ma Cuisine de Coeur: De Rio à Paris. Lançada em 2022, a obra acaba de ganhar o prêmio La Mazille, no Salão do Livro de Gastronomia do Périgord.
Aos 22 anos, sem falar francês, Alessandra começou a cozinhar para os amigos “porque era a única linguagem que tinha para me comunicar”. Esforçada e talentosa, fez curso de cozinha e confeitaria, e trabalhou com Ducasse, antes de abrir seu primeiro restaurante, o Tempero, em 2013.
O sucesso foi imediato. Ela servia pratos da cozinha francesa com “a sua cara”: afetiva, orgânica, local e acessível, com “porquinho” pururuca. “Foi como se eu tivesse renascido. Antes do restaurante, nunca tinha sentido um olhar de orgulho, de reconhecimento”, lembra. Ela estranhava. “Fui conhecer isso já velha.”
O sentimento veio ainda mais forte em 2022, na terceira visita que fez ao Brasil, em mais de 20 anos, ao descobrir que seu trabalho era acompanhado com orgulho por chefs de peso daqui como Roberta Sudbrack, Tassia Magalhães, Morena Leite e Ana Luiza Trajano (de quem hoje compra ingredientes pela marca Madame Brèsil).
“Quando voltei ao país para fazer o livro, foi um maremoto de amor e carinho de gente que não conhecia”, afirma Alessandra, “Fiquei em choque. Descobri que tinha fechado as portas para o Brasil, mas o Brasil não tinha fechado as portas para mim.”
Não é preciso mais dinheiro
Ser embaixadora brasileira na França, entretanto, está longe dos planos de Alessandra. Ainda que, aos poucos, vá ampliando seus domínios com ingredientes e alma brasileira para uma clientela majoritariamente francesa.
Farinha de milho, tapioca, café, cacau e abóbora estão sempre na sua lista de compras, mas acompanhados de forte sotaque francês. Que o diga a mucilagem de cacau que acompanha a lagosta azul da Bretanha, o caviar servido com pão de queijo, ou o molho de abóbora com cravo (uma lembrança salgada do doce) que já fez marmanjo chorar de saudade de casa em suas mesas.
“Não consigo me reduzir às minhas origens”, diz. “Só quero fazer uma comida legal, com pessoas felizes, para fazer os clientes felizes”, define, mostrando o quanto internalizou o “savoir-vivre” francês.
A filosofia fica clara em outros aspectos de sua vida. Durante a Olimpíada de 2024, seu plano é fechar as casas e tirar férias no Brasil. “Será uma bagunça. Paris não tem estrutura para receber tanta gente”, explica a chef. Afinal, como "boa francesa", ela garante que ganhar mais dinheiro não é um objetivo.
“Tenho o suficiente e está bom. A vida é muito curta para ficar se matando de trabalhar.” A preocupação com o futuro do planeta e o bem-estar de sua equipe também faz parte de suas pautas há muitos anos.
As políticas de valorização dos fornecedores, pagamento justo e desperdício zero dos ingredientes locais e orgânicos usados nas casas são tratadas com muita seriedade. “A partir de 2024, todos os restaurantes na França terão de ter sua própria compostagem para resíduos orgânicos. Eu já tenho há seis anos”, orgulha-se.
E desde que investiu 1,2 milhão de euros na ampliação das casas – “sem sócios, porque quero liberdade para abrir e fechar quando quiser” – distribuiu 20% do negócio ao funcionários-chave como forma de incentivo.
Alessandra se pauta pela filosofia de que o trabalho tem de ser ético, da produção do ingrediente a quem lava a louça: “Na França, o sistema de educação te obriga a ter consciência coletiva. É uma sensibilização muito diferente que internalizei há 24 anos”.