Os setores de energia eólica e solar vivem uma contradição no mínimo curiosa. Apoiadas por subsídios, as duas fontes renováveis vêm ampliando sua participação na matriz elétrica brasileira de forma exponencial. Só em 2024, a expansão de oferta de energia elétrica desses dois segmentos representou 93% do total de 7 gigawatts (GW) do País, por meio de 93 novas centrais fotovoltaicas e 90 eólicas.

Em contrapartida, os dois segmentos têm registrado prejuízos que somam R$ 1 bilhão porque o sistema de transmissão de energia elétrica não consegue dar conta da oferta de geração de energia conectada ao sistema por essas duas fontes renováveis. Com isso, Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é obrigado a cortar a geração em determinados momentos para não sobrecarregar o sistema de transmissão.

Esses cortes, chamados de constrained-off pelo setor, são feitos sem prévio aviso ou programação, impactando as empresas dos dois setores renováveis – que têm contratos de fornecimento de energia elétrica que não conseguem cumprir e são obrigadas a comprar energia no mercado livre, a um custo mais alto, para atender os clientes.

Muitos casos foram judicializados, com as empresas exigindo ressarcimento dos prejuízos, o que tem pressionado as autoridades do setor elétrico por uma solução. O prejuízo maior é das usinas eólicas, que chega a R$ 700 milhões. Os cerca de R$ 300 milhões restantes caem na conta das usinas solares.

Uma norma do ONS que entrou em vigor na terça-feira, 17 de setembro - a princípio nos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, com possibilidade de ser ampliada - foi bem recebida pelos agentes do setor. Em linhas gerais, deixa de concentrar os cortes de geração de energia em poucos pontos e com maior volume, o que penalizava mais algumas usinas, distribuindo esses cortes de forma mais dispersa e em maior número de unidades.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed apontam essa contradição como um dos principais gargalos do setor elétrico de hoje. A rigor, são dois problemas superpostos. Um deles é o excesso de oferta de geração de energia conectada ao sistema elétrico por essas duas fontes renováveis, que não tem sido acompanhado pelo crescimento da demanda nem pela capacidade de escoamento da energia para os centros consumidores.

O outro problema é geográfico: boa parte da geração eólica e solar é concentrada no Nordeste do País, enquanto o consumo dessa energia se dá, em maior proporção, no Sudeste. Se o consumo dessa energia abundante fosse próximo ao local de consumo, não haveria maiores consequências.

Como a energia é transportada em longas distâncias por linhas de transmissão, os chamados linhões, o ONS é obrigado a cortar a geração em determinados momentos, pois o avanço de geração não foi acompanhado pelo aumento de instalação de linhões.

Pedro Dante, sócio de energia no escritório Lefosse Advogados, afirma que a situação é complexa e não é de hoje – o problema se agravou nos últimos dois anos. “Regulação existe, mas ela não está sendo suficiente para resolver o problema que, no fundo, é falta de linhas de transmissão para escoar a energia do Nordeste para o Sudeste”, diz.

Segundo ele, o que os geradores reclamam e, com razão, é a imprevisibilidade. “Veio uma regulação, mas as empresas já haviam financiado o projeto, construído o ativo e vendido energia, a crítica é que os órgãos reguladores foram lentos e omissos em resolver a questão.”

A crise ganhou densidade depois do apagão de agosto do ano passado, quando o ONS decidiu desligar o sistema para não ter oscilação. Desde então, os cortes de energia foram maiores e mais frequentes.

“Depois desse episódio, o ONS tem sido muito conservador, na visão dos agentes, impactando muito as empresas geradoras”, acrescenta Dante, lembrando que a crise pode aumentar com a entrada do período de seca. Com a queda de água nos reservatórios das hidrelétricas, as térmicas serão acionadas, impactando no custo futuro de energia.

“O segundo semestre será mais desafiador, pois os geradores ficarão expostos e terão de contratar energia mais caro”, prevê. Dantas diz que a solução, além de ampliar a oferta de transmissão de energia, é discutir a alocação desses custos de cortes. “Por enquanto, são os geradores que estão pagando, a regulação não está conseguindo acompanhar esses sinais econômicos de mercado.”

Cautela

As associações que representam as empresas dos dois segmentos renováveis foram comedidas ao comentar a nova norma do ONS. Francisco Silva, diretor regulatório da ABEEólica, do setor de energia eólica, elogiou a decisão do órgão de deixar de concentrar os cortes de energia em poucos pontos e expandir para mais agentes.

“Temos usinas que tiveram 70% dos cortes de geração de um mês; mesmo que na soma geral os cortes não serão reduzidos, a ideia de espalhar esses cortes é melhor”, diz Silva, ao NeoFeed, acrescentando que a entidade não vai abrir mão de ir à Justiça para as empresas receberem ressarcimento. “Temos tido boa interlocução com o poder público, apresentando possíveis soluções no curto, médio e longo prazo.”

Carlos Dornellas, diretor técnico-regulatório da Absolar, associação do setor solar, diz que a entidade vai esperar a publicação da norma, mas elogiou a iniciativa do órgão de endereçar o problema. Ele afirma que a Absolar contratou uma consultoria para analisar o relatório do apagão do ano passado. Foram detectados vários pontos sensíveis no sistema, não apenas das fontes renováveis.

“Estamos apoiando o ONS, juntamente com os fabricantes, para validar modelos de equipamentos de fontes renováveis que permitam uma operação mais confiável”, diz Dornellas. O diretor da Absolar, porém, afirma que o ONS deveria restabelecer os limites pré-apagão de cortes, de 3,7 GW maiores que os atuais - ou seja, limites maiores de transmissão visando menores cortes de geração renovável. Ele diz que a entidade também defende o ressarcimento integral dos cortes, como prevê a lei.

Elise Calixto Hale Crystal, sócia e head de Energia e Infraestrutura do escritório FAS Advogados, diz que o pagamento de encargo para o gerador que teve a produção de energia frustrada é previsto desde 2004 pelo Decreto 5.163. Ela cobra coerência do ONS e da Aneel, agência reguladora do setor.

“O que dava direito ao ressarcimento foi revisto, como todo mundo sabe, em razão do apagão do ano passado”, diz Crystal. “Mais do que ausência de regulamentação, o que falta hoje é uma aplicação coerente daquilo que foi estabelecido em lei.”