A crise entre o governo federal e as 11 agências reguladoras, cujos funcionários pedem melhores salários e quase desembocou em uma greve que podia paralisar parte do setor produtivo, entrou numa nova fase ainda mais tensa e de desfecho imprevisível.

A ofensiva do governo federal aumentou nas últimas semanas, após o episódio do apagão em São Paulo – com críticas à atuação da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica),  seguidas de ameaças de mexer no modelo de nomeações de dirigentes e até tornar as agências subordinadas ao Executivo.

Esse movimento, na prática, levaria ao fim da autonomia das agências reguladoras, principal objetivo ao serem criadas a partir dos anos 1990, seguindo modelo adotado nos Estados Unidos e em outros países.

A resposta demorou, mas veio com um desabafo e um alerta do diretor-geral da ANP (Agência Nacional do Petróleo), Rodolfo Saboia, que citou os problemas enfrentados pela sua gestão que serviram como exemplo do esvaziamento enfrentado por todas as agências reguladoras.

“A ANP já convive com limitações de toda a ordem e ainda tem recebido novas atribuições com a transição energética, como a responsabilidade sobre o mercado de hidrogênio e outros combustíveis renováveis”, afirmou Saboia, nesta semana, durante evento do Sindigas, no Rio. “Enquanto isso, o orçamento atual da ANP é 18% do equivalente há 11 anos, após correção pelo IPCA.”

Desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a relação entre o governo federal e as agências reguladoras tem sido marcada por ruídos: demora do Executivo para nomear diretores e reclamações por corte de verbas, que prejudicam a fiscalização, entre outras trocas de farpas.

Para se ter uma ideia do sucateamento, mais de 65% dos cargos do quadro de pessoal das agências estão atualmente desocupados. O último concurso da Aneel – que fiscaliza o setor elétrico, que passou por intensas mudanças nos últimos anos – foi em 2010.

A demora do governo federal em indicar os diretores devido à falta de acordo político (os nomes precisam ser confirmados pelo Senado), agravou o problema. Das 11 agências, três estão à espera de nomeações de diretores (Aneel, ANP e Anac, de aviação civil). Outras 12 vagas serão abertas até o fim do ano, quando se encerra o mandato de ocupantes atuais.

O desabafo de Saboia reflete a indefinição na ANP – que além da vaga aberta para substituir o ex-diretor Cláudio Jorge, que teve o mandato encerrado em 2023, precisa nomear o próximo diretor-geral, já que o próprio Saboia encerra seu ciclo em dezembro.

O descaso do Executivo é inversamente proporcional à importância das agências reguladoras. Reconhecidas pela capacidade técnica e independência, elas são responsáveis por criar leis, formalizar contratos públicos, traçar normas técnicas de produtos, supervisionar concessões e fiscalizar (aplicando multas) se os setores sob sua responsabilidade estão cumprindo as regras, entre outras atribuições.

Em conjunto, as agências reguladoras regulam 60% do PIB do País e arrecadam cerca de R$ 90 bilhões por ano, com multas e tarifas, por exemplo – entre os órgãos públicos, só perdem para a Receita Federal.

Autonomia em risco

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed advertem que as pressões do Executivo, a indefinição das nomeações, a falta de pessoal e as restrições orçamentárias, além de prejudicar o trabalho cotidiano, colocam em risco a autonomia das agências.

Eduardo Martins Pereira, especialista em direito público do escritório Schiefler Advocacia, observa que essa lentidão do Executivo em escolher os diretores, por exemplo, tem objetivos claramente políticos.

“Na prática, essa demora pode ser utilizada de forma estratégica, como uma forma de interferir na atuação da agência, criando um cenário de dependência administrativa e orçamentária que enfraquece seu poder regulatório e sua autonomia decisória”, diz Pereira.

Esse cenário começou a ficar evidente com a crise do apagão em São Paulo, que colocou o governo federal e a Aneel em rota de colisão. Depois de reclamar da ausência de uma punição mais dura contra concessionária Enel, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, ameaçou fazer uma intervenção na agência.

“Esse tipo de atitude dá sinais negativos para os investidores, que não aceitam a troca de decisões técnicas de uma agência reguladora por decisões políticas tomadas por quem não conhece com profundidade do setor regulado”, afirma Renato Fernandes de Castro, sócio da área de energia e infraestrutura da Almeida Prado & Hoffmann Advogados.

No início da semana, o governo começou vazar modelos para aumentar o controle do Poder Executivo sobre as agências reguladoras. Uma das medidas em análise permitiria a troca de diretores por critério de desempenho.

O governo também estuda criar um órgão responsável pela supervisão e coordenação das agências reguladoras, como existe nos EUA e Canadá. O Palácio do Planto chegou a encomendar à Advocacia-Geral da União (AGU) uma revisão da Lei Geral das Agências.

Além do embate com o governo federal, as agências passaram a ser ameaçadas também pelo Congresso Nacional. Uma articulação do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE) tem como objetivo levantar apoio para apresentar um projeto de lei que prevê subordinar as decisões das agências ao Legislativo.

A proposta de Forte seria uma resposta à ofensiva do governo. O deputado quer que cada uma das agências reguladoras fiquem sob fiscalização das respectivas comissões temáticas da Câmara dos Deputados – na prática, trocaria a tutela do Executivo pela do Legislativo.

Castro, do escritório Almeida Prado & Hoffmann Advogados, diz que todas as propostas apresentadas tendem a levar ao mesmo objetivo – acabar com a autonomia das agências reguladoras.

“A eventual criação de projetos de lei que visem retirar esses poderes das agências, além de ferir frontalmente a legalidade e a autonomia decisória regulatória, também tornam a atuação técnica vulnerável frente a interesses políticos”, adverte.