A importância histórica da assinatura do tratado comercial entre União Europeia e Mercosul na sexta-feira, 6 de dezembro, vai além da conclusão de um intricado processo de negociação, que se arrastou por 25 anos após ser seguidamente adiado por impasses políticos e comerciais aparentemente irreconciliáveis nesse período.

Além do feito de superar divergências para criar um mercado comum com PIB conjunto de US$ 22 trilhões, mais de 730 milhões de consumidores e 90% de produtos isentos de tarifas, a assinatura do acordo, em Montevidéu, no Uruguai, rendeu efeitos imediatos com impacto além das fronteiras dos dois blocos.

O primeiro efeito foi dar uma resposta à ameaça protecionista do recém-eleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – que desde a campanha prometeu impor tarifas de 10% para todas as importações dos EUA e acirrar a guerra comercial contra a China.

Outro foi retomar a agenda comercial global, que vinha perdendo espaço desde a pandemia, com a desestruturação das cadeias logísticas, o ciclo de inflação e juros global, e o crescente protecionismo americano, em especial contra a China.

“A assinatura do acordo União Europeia-Mercosul tem um significado geopolítico mais importante do que o aspecto comercial, tanto para o Brasil e os países da região quanto para a União Europeia”, afirma ao NeoFeed o ex-embaixador Rubens Barbosa, da consultoria RB & Associados.

Segundo ele, o acordo é fechado num momento em que o mundo se vê pressionado pela ameaça protecionista de Trump e diante do acirramento do confronto comercial entre EUA e China.

“Isso mostra que o Brasil, que faz parte dos Brics, assina uma terceira via com 27 países da Europa mostrando que não está vinculado apenas aos EUA ou à China e segue caminho próprio, juntamente com os demais países do Mercosul”, diz Barbosa, que em 1993, como coordenador do Mercosul, participou das primeiras negociações com o bloco europeu.

“Agora, o Mercosul volta a ter posição no cenário comercial global e já ensaia o próximo passo, mirando um acordo comercial coma Ásia”, diz, acrescentando que o mesmo vale para a União Europeia, que não vai ficar imprensada por EUA e China, abrindo um canal importante com a América Latina.

Coincidência ou não, desde a vitória de Trump, o Brasil assinou um acordo comercial com a China e outro com a União Europeia. Mesmo assim, Barbosa não prevê nenhum tipo de reação por parte de Trump: “Ele tem uma visão zero, principalmente da América Latina, os americanos não têm política para a região, apenas em relação a temas como imigração e drogas.”

Angústia europeia

O desejo de Trump de redesenhar o comércio global sob a régua dos EUA, porém, vinha causando angústia especialmente entre os países da União Europeia, uma vez que o bloco tem nos EUA seu principal parceiro comercial.

Com um crescimento econômico europeu pífio desde a pandemia e pressionada por gravíssimas crises políticas internas nas duas maiores potências do bloco – Alemanha e França –, a atual presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, percebeu que era melhor assinar um acordo comercial longe do apoio unânime do bloco, inclusive sob risco de ser barrado na ratificação posterior, a ficar sob ameaça das bravatas de Trump.

A rigor, Von de Leyen foi a principal responsável pelo destravamento das negociações e pela assinatura do tratado – do lado do Mercosul, o presidente argentino, Javier Milei, que sinalizava oposição, já havia dado sinal verde desde a semana passada.

Líder do principal órgão executivo do bloco europeu, Von de Leyen aproveitou a crise política na França, que levou à queda do primeiro-ministro Michel Barnier na última quarta-feira, 4, para isolar o principal opositor europeu à assinatura do acordo comercial, o presidente Emmanuel Macron.

Desgastado, Macron se agarrou à pauta protecionista dos agricultores franceses contra o tratado, para tentar sabotar o acordo. A rigor, o lobby político agrícola não corresponde ao seu peso na economia francesa - a agricultura representa apenas 1,6% do PIB francês.

Com o barulho dos agricultores, Von de Leyen foi hábil ao se negar a confirmar ao longo da semana se viria a Montevidéu, mudando de ideia após a queda do gabinete francês.

“Este é um acordo ganha-ganha, que trará benefícios significativos para consumidores e empresas, de ambos os lados”, afirmou uma sorridente Von de Leyen, após a assinatura do acordo. “Ouvimos as preocupações de nossos agricultores e agimos de acordo com elas; o acordo inclui salvaguardas robustas para proteger seus meios de subsistência."

A assinatura do acordo, porém, é só o primeiro de um longo e tortuoso caminho a ser cumprido antes de entrar em vigor.

Agora, o texto final terá de ser traduzido para todas as 23 línguas oficiais da UE e duas do Mercosul, além de passar pela aprovação dos Legislativo dos países do Mercosul, pelo aval do Conselho Europeu (27 chefes de Estado ou de governo) e pelo Parlamento Europeu (720 votos).

A etapa envolvendo Conselho Europeu pode ser a mais problemática, porque depende do consenso da maioria qualificada do bloco. No colegiado, o acordo precisa ser aprovado por, pelo menos, 55% dos países que compõem o grupo - sendo que esses países devem responder por, no mínimo, 65% da população total da UE.

A França, que tem apoio da Polônia e Holanda, busca adesão da Itália para compor o grupo de países com população suficiente para barrar a aprovação do tratado. No Parlamento Europeu, basta a maioria simples de votos para a parte comercial entrar em vigor.

Ganhos dos dois lados

Lobbies à parte, os ganhos comerciais para os dois blocos são inquestionáveis. O Mercosul é um grande mercado para as exportações da UE. As empresas do bloco exportaram para os quatro países fundadores do Mercosul € 56 bilhões em bens e € 28 bilhões em serviços em 2023.

A UE é o segundo maior parceiro comercial de bens do Mercosul, depois da China e à frente dos EUA. O bloco europeu foi responsável por 16,9% do comércio total do Mercosul em 2023.

Um estudo elaborado em fevereiro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que o Brasil seria o país mais beneficiado pelo livre comércio entre União Europeia e Mercosul.

Entre 2024 e 2040, o acordo provocaria um crescimento de 0,46% no PIB brasileiro, mais do que a União Europeia (0,06%) e os demais países do Mercosul (0,2%). Além disso, o acordo aumentaria os investimentos vindos do exterior no Brasil em 1,49%, na comparação com o cenário sem a parceria.

Na balança comercial, o país teria um ganho de US$ 302,6 milhões, enquanto para o restante do Mercosul seria de US$ 169,2 milhões. Já a União Europeia teria uma queda de US$ 3,44 bilhões, com as reduções tarifárias e concessões de cotas de exportação previstas.

De acordo com o Ipea, o acordo vai aumentar as oportunidades de exportação do Brasil para a Europa e possibilitar um aumento significativo de investimentos no País.

O ex-embaixador Rubens Barbosa lembra que o fato de 90% dos produtos dos dois blocos terem tarifa zero por si só já deve abrir grande vantagem para as exportações brasileiras.

“O acordo abre excelentes possibilidades para a indústria a e agricultura brasileiras”, diz. Mesmo com cotas pequenas para obter tarifa zero para as exportações de soja, milho, café, ele observa que há ganho líquido - o excedente dessa cota vai continuar inundando o mercado europeu, só que pagando as tarifas atuais.

Por outro lado, adverte Barbosa, o setor produtivo nacional terá de passar por ajustes para se adequar à competição internacional: “Os setores de serviços e industrial terão de se modernizar para competir, não adianta ter tarifa zero se não for competitivo.”