Cannes - “Quem vai querer ver um filme sobre um homem no hospício?” Essa era a pergunta que os produtores de Um Estranho no Ninho mais ouviam em Hollywood, antes de conseguirem os cerca de US$ 4 milhões para rodar o drama.
Como o financiamento levou tempo, Kirk Douglas, o detentor dos direitos de adaptação do livro homônimo, abriu mão de interpretar o protagonista, por se julgar velho para o papel, deixando-o para Jack Nicholson.
Essa e outras histórias dos bastidores do longa de 1975 foram resgatadas no recém-encerrado 78º Festival de Cannes, onde o título vencedor de cinco estatuetas do Oscar foi homenageado. Em comemoração ao 50º aniversário de seu lançamento, completado este ano, uma cópia restaurada foi exibida na mostra paralela Cannes Classics, dedicada à memória e à preservação do cinema.
“Trata-se de um filme icônico e atemporal”, disse o produtor Paul Zaentz, na Riviera Francesa, durante a première da nova cópia, que teve cobertura do NeoFeed. Zaentz é sobrinho do produtor do filme, Saul Zaentz (1921-2014).
Seu tio debutou na indústria do cinema justamente com a versão cinematográfica do livro homônimo de Ken Kesey, publicado em 1962.
“É um filme sobre rebelião. E as pessoas que têm lutado contra tiranos desde o início da humanidade. É um exemplo também de projeto que exige perseverança”, afirmou Zaentz, no palco da Salle Buñuel, no Palais des Festivals de Cannes.
Em 1962, quando Douglas comprou os direitos do livro, ele já era um dos maiores astros da indústria do cinema. E nem por isso conseguiu realizar o projeto, apesar dos anos que passou percorrendo os estúdios de Los Angeles, completou ele.
Apaixonado pela obra literária, o ator queria muito realizar o filme por já ter interpretado o personagem central, Randle McMurphy, nos palcos da Broadway, em 1963.
A história do paciente que lidera uma revolta em hospital psiquiátrico foi criada a partir das experiências do escritor Ken Kesey, durante o período em que trabalhou e observou os abusos realizados em instituições de saúde mental.
Sucesso imediato
Douglas acabou desistindo e entregou o projeto ao filho, Michael Douglas, que inicialmente ouviu as mesmas desculpas. Ninguém acreditava que a plateia de cinema se interessaria por um material tão pesado quanto aquele.
O nome do diretor atrelado ao projeto, Milos Forman, também não entusiasmava muito os estúdios, já que o cineasta era mais conhecido na Europa, filmando sobretudo na antiga Tchecoslováquia, onde nasceu.
“Só depois que Michael se associou ao meu tio Saul é que Um Estranho no Ninho saiu. Como nossa família não tem medo de arriscar, meu tio, meu pai Bernie e meu tio Sammy acabaram colocando dinheiro no filme, com alguns outros parceiros. E o resto é história”, recordou Zaentz, que seguiu os passos do tio e se tornou produtor — seus créditos incluem Amadeus (1984), também dirigido por Milos Forman, A Insustentável Leveza do Ser (1988) e O Paciente Inglês (1998).
Um Estranho no Ninho foi um sucesso imediato, tanto de crítica como de público. Levou cinco dos principais prêmios da Academia: o Oscar de melhor filme, de direção, de ator (para Jack Nicholson), de atriz (para Louise Fletcher, no papel da enfermeira autoritária Mildred Ratched) e de roteiro adaptado.
Ele foi o segundo de apenas três filmes na história do Oscar a conquistar os troféus das cinco categorias chamadas de “Big 5”, depois de Aconteceu Naquela Noite (1934) e antes de O Silêncio dos Inocentes (1991).
Lançada em 19 de novembro de 1955, a produção arrecadou mundialmente mais de US$ 163 milhões nas bilheterias, assegurando a vice-liderança no ranking daquele ano. Ficou atrás apenas de Tubarão, com mais de US$ 484 milhões de renda ao redor do mundo.
“Foi uma aposta que valeu a pena”, comentou Zaentz, lembrando que Um Estranho no Ninho fez a carreira de produtor de seu tio deslanchar.
Além da conquista de mais de 40 troféus, o filme ainda entrou para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em 1993, por seu “significado cultural, histórico e estético”.
Vários aspectos contribuíram para Um Estranho no Ninho se tornar um clássico do cinema, com presença garantida em várias listas com os melhores filmes de todos os tempos. Um deles é a performance eletrizante de Jack Nicholson, vivendo um condenado por estupro que, para escapar dos trabalhos forçados na prisão, finge ter problema mental para ser encaminhado a um hospital psiquiátrico.
Lá, ele vai encontrar desafios não imaginados, levando-o a liderar uma rebelião de pacientes, que ganham um sopro de vida com a chegada do impostor.
Ao denunciar a natureza opressiva dessas instituições e o abuso dos pacientes, o filme também teve um impacto no movimento antimanicomial e na revisão das práticas médicas desumanas, como eletrochoque, não só nos Estados Unidos, mas também no mundo.
A luta por tratamento digno para pessoas com transtornos mentais foi um legado deixado primeiro pelo livro.
A tirania e a perversidade da enfermeira-chefe aqui ainda servem de metáfora para um sistema que não respeita as liberdades individuais, obrigando todos à submissão. Daí a necessidade de eliminar um anticonformista como Randle McMurphy, capaz de fazer outros do rebanho ganharem vontade própria.
“Quando Milos foi contratado para dirigir Um Estranho no Ninho, ele foi muito questionado por americanos”, disse Zaentz, acrescentando que, na época, o cineasta vivia há poucos anos nos Estados Unidos: “Ao ouvir, ‘como você ousa dirigir uma história americana?’, ele respondia: ‘Enquanto isso é uma história para vocês, para mim, depois de crescer sob o domínio dos nazistas, é vida real”.