O Brasil finalmente ingressou no clube de países vencedores de um Oscar de melhor filme internacional. E com a vitória de Ainda Estou Aqui sobre Emilia Pérez, o principal rival do filme de Walter Salles, o país conseguiu desbancar uma nação com muito mais tradição cinematográfica, a França, a vice-líder no ranking de estatuetas da categoria, com 12 vitórias — atrás apenas da Itália, com 14 prêmios.

"Em nome do cinema brasileiro, é uma honra tão grande receber isso de um grupo tão extraordinário. Isso vai para uma mulher que, depois de uma perda tão grande em um regime tão autoritário, decidiu não se dobrar e resistir. Esse prêmio vai para ela: Eunice Paiva. E também vai para as mulheres extraordinárias que deram vida a ela: Fernanda Torres e Fernanda Montenegro", disse Salles durante seu discurso de agradecimento.

Como melhor filme, Ainda Estou Aqui realmente não tinha chances. Em toda a história da Academia de Hollywood, só um título, o sul-coreano Parasita, de Bong Joon-Ho, conquistou o Oscar principal em 2020, se consagrando como o primeiro longa-metragem não falado em inglês a arrebatar a estatueta.

E isso porque Parasita já tinha se tornado um fenômeno global, com mais de 170 prêmios, incluindo a Palma de Ouro de Cannes, um dos maiores festivais de cinema do mundo. O melhor filme do ano ficou com Anora, que ganhou cinco das seis indicações que recebeu.

Só a indicação de Fernanda Torres ao Oscar de melhor atriz já foi um feito para o Brasil. Principalmente por se tratar de uma edição com mais atrizes merecedoras de indicação do que vagas — o que não se pode dizer dos atores, que impressionaram menos neste ano.

Nem Pamela Anderson conseguiu ser indicada, embora tenha provado ser uma atriz séria em The Last Showgirl, trabalho que lhe rendeu indicações ao SAG Awards e ao Globo de Ouro de atriz dramática (troféu que acabou nas mãos de Fernanda Torres).

E foi justamente na categoria de melhor atriz que a academia surpreendeu. A estatueta foi para a jovem atriz Mickey Madison, de 25 anos, pelo seu papel em Anora.

Em sua primeira indicação, ela desbancou a favorita Demi Moore, que em A Substância teve uma poderosa performance como Elisabeth Sparkle, a estrela que é descartada ao passar dos 50 anos.

A trilha do Brasil

Até o Brasil finalmente conseguir o seu primeiro Oscar de filme internacional foram quatro tentativas frustradas: com O Pagador de Promessas, em 1963, O Quatrilho, em 1996, O Que É Isso, Companheiro?, em 1998, e Central do Brasil, em 1999.

E não se pode dizer que a vitória de Ainda Estou Aqui era necessariamente esperada, já que Emilia Pérez era o candidato com o currículo mais favorável. Afinal, o título estava na liderança nesta 97ª edição do Oscar, somando 13 indicações contra as três do drama histórico brasileiro ambientado durante a ditadura militar.

Ao todo, o musical sobre a transição de gênero de um chefe de cartel de drogas somava mais de cem troféus. Entre eles, Prêmio do Júri de Cannes e os Globos de Ouro de melhor comédia ou musical e de filme em língua não inglesa, além do Bafta e do Critics Choice de melhor produção estrangeira.

"Esse prêmio vai para ela: Eunice Paiva", diz Salles, em seu discurso de agradecimento (Foto: Phil McCarten/The Academy)

A caminho do palco, Salles fez questão de abraçar Fernanda Torres (Foto: Phil McCarten/The Academy)

A atriz Penélope Cruz entrega o Oscar de Melhor Filme Internacional para Walter Salles (Foto: Trae Patton / The Academy)

Geral do Dolby Theatre de Los Angeles, enquanto Salles recebe o Oscar de melhor filme internacional por "Ainda Estou Aqui" (Foto: Richard Harbaugh/The Academy)

Adrien Brody (melhor ator por "O Brutalista"), Mikey Madison (melhor atriz por "Anora"), Zoe Saldaña (melhor atriz coadjuvante por "Emilia Pérez) e Kieran Cullen (melhor ator coadjuvante por "A Verdadeira Dor") (Foto: Etienne Laurent/The Academy)

Sean Baker levou o Oscar de melhor diretor por Anora, que também recebeu o prêmio de melhor filme (Foto: Etienne Laurent/The Academy)

Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham formam o coletivo palestino-israelense, autor do documentário "No Other Land", vencedor do prêmio de melhor documentário. O filme mostra a destruição de Masafer Yatta por soldados israelenses na Cisjordânia ocupada (Foto: Etienne Laurent/The Academy)

O que certamente pesou a favor do Brasil foi a polêmica em torno da estrela de Emilia Pérez, a espanhola Karla Sofía Gascón. Primeiro, a atriz acusou o time de Ainda Estou Aqui de incitar ataques contra ela na internet — sendo que a Academia não permite que um candidato critique outro.

E, para piorar, antigas postagens de Gascón vieram à tona, revelando comentários racistas e xenofóbicos sobre muçulmanos, chineses e George Floyd nas redes sociais.

O escândalo prejudicou muito a campanha do filme de Jacques Audiard, que prega justamente o contrário, a diversidade e a inclusão. E por Gascón ser a primeira atriz trans indicada ao Oscar de melhor atriz, a sua intolerância soou como uma grande decepção na indústria — a ponto de a espanhola ser afastada da campanha.

Sem falar que o musical também foi muito criticado pelo roteiro carregado de estereótipos sobre o México e o narcotráfico e pela transição de gênero ser empregada aqui como um subterfúgio para a protagonista fugir de seu passado violento, o que incomodou a comunidade LGBTQIA+.

Diante disso, premiar Ainda Estou Aqui como melhor filme internacional pareceu a melhor alternativa, aos olhos da Academia. Até porque a trajetória de Eunice Paiva resgatou um símbolo de resistência e resiliência, ao contar a história da viúva que nunca se deixou vitimizar, mesmo tendo perdido o pai de seus seus cinco filhos para a ditadura militar.

Ou seja, um tema que se mantém relevante na cena política atual, principalmente nos Estados Unidos, com Donald Trump em seu segundo mandato, ao encorajar o mundo a enfrentar o autoritarismo.