Se no passado o ciclo das videiras seguia datas relativamente fixas para brotação, floração e colheita, hoje, com as mudanças climáticas, esses marcos variam de ano para ano, provocando alterações nos perfis sensoriais dos vinhos e exigindo dos produtores estratégias de adaptação.

Na Europa, o aumento das temperaturas e a instabilidade hídrica têm forçado ajustes importantes em regiões tradicionais como Bordeaux, Valência e Toscana. Nessas áreas, a média anual já subiu cerca de 2 °C nas últimas décadas, segundo dados do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). E a tendência é de alta contínua.

Por isso, algumas vinícolas estão migrando para áreas mais elevadas, com temperaturas mais amenas, e há apostas em variedades mais resistentes ao calor. Um relatório do Potsdam Institute for Climate Impact Research, em parceria com a Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), aponta que uvas híbridas — mais tolerantes ao estresse térmico e a doenças — devem se tornar mais comuns.

Sérgio W. Bruxo, sommelier da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS-SP), confirma o movimento. “O desafio é achar espécies que se adaptem a climas mais quentes. Bordeaux e Borgonha estão adotando o plantio de uvas híbridas”, diz ele ao NeoFeed, explicando que elas são fruto do cruzamento entre espécies de uvas europeias e outras, geralmente americanas, mais resilientes ao calor e às doenças.

Além das temperaturas elevadas, produtores europeus têm enfrentado uma crescente instabilidade no regime de chuvas — com precipitações concentradas ou fora de época, que afetam a maturação das uvas e agravam o risco de fungos, por exemplo. No Brasil, embora os impactos sejam menos extremos, a variabilidade climática também tem comprometido a previsibilidade das safras.

A RASIP — grupo agroindustrial que atua na fruticultura e tem entre suas marcas a RAR Vinhos — enfrentou quedas nos dois últimos ciclos.

“Na safra 2023/24, perdemos parte da produção devido ao excesso de chuvas na primavera e no período da colheita, o que afetou tanto o volume quanto a qualidade”, revela Celso Zancan, diretor da vinícola, ao NeoFeed.

Já na safra 2024/25, o calor prolongado em fevereiro e março não afetou as uvas brancas nem o Pinot Noir, cujas colheitas foram antecipadas. "Mas, as variedades mais tardias, como Merlot e Cabernet Sauvignon, tiveram uma redução de cerca de 25% no volume devido à desidratação", diz o executivo. "Por outro lado, houve concentração de açúcares e compostos fenólicos, o que elevou a qualidade final.”

Nas vinícolas da Miolo Wine Group, o padrão de instabilidade se repete. “Mesmo em anos de La Niña, que em teoria favorecem o cultivo, temos observado chuvas muito intensas em pouco tempo, seguidas de secas prolongadas. Isso afeta especialmente áreas com solos mais rasos”, explica ao NeoFeed Adriano Miolo, diretor-superintendente da vinícola.

Essas condições impactam diretamente a floração e maturação, comprometendo tanto a produtividade quanto a qualidade. Para mitigar os efeitos da irregularidade climática, a vinícola adotou uma série de práticas.

“Se antes deixávamos as uvas mais expostas à radiação solar, hoje oferecemos maior cobertura foliar para proteger os cachos”, diz Adriano. Porta-enxertos também foram selecionados de acordo com o tipo de solo e a fertilidade natural de cada área.

"Mesmo em anos de La Niña, que em teoria favorecem o cultivo, temos observado chuvas muito intensas em pouco tempo, seguidas de secas prolongadas. Isso afeta especialmente áreas com solos mais rasos”, explica a Adriano Miolo, diretor-superintendente da Miolo (Foto: Divulgação)

Nas plantações da RAR Vinhos, as variedades Merlot e Cabernet Sauvignon, da safra 2024/25, tiveram uma redução de cerca de 25% no volume devido à desidratação (Foto: Divulgação)

A Miolo adotou uma série de medidas para contornar os efeitos das mudanças climáticas (Foto: Divulgação)

Nos vinhedos mais jovens, a irrigação passou a ser adotada desde o plantio, já que mudas com raízes superficiais não resistem bem a períodos secos. Além disso, a Miolo se apoia em previsões climáticas de alta resolução e estações próprias para planejar irrigação, podas e colheitas. “A mecanização da colheita, presente em todas as unidades fora da Serra Gaúcha, nos permite colher exatamente no ponto ideal de maturação”, destaca o executivo.

Em 2025, toda essa estrutura foi posta à prova. “Tivemos uma safra de excelente qualidade, apesar das ondas de calor acima de 40 °C durante dez dias, que anteciparam a colheita em cerca de 20 dias. O ciclo, que normalmente levaria de 75 a 80 dias, foi encerrado em 55”, relata Adriano.

A vinícola recorreu a estratégias como colheita nas horas mais frescas, maceração pelicular e controle rigoroso da fermentação. “No caso dos vinhos brancos e espumantes, aplicamos a técnica de bâtonnage [que consiste em agitar as borras finas durante a maturação do vinho] para agregar textura e complexidade diante das variações na acidez.”

O sucesso da dupla poda

Em regiões tropicais do Brasil, como o Sul de Minas, a Serra da Mantiqueira e o Cerrado, a técnica da dupla poda tem sido fundamental para viabilizar a produção de vinhos finos com qualidade. O método consiste em duas podas ao longo do ano: a primeira apenas estimula o crescimento vegetativo; a segunda, feita no outono, induz a frutificação durante o inverno — período mais seco e estável nessas áreas.

Mas, além disso, a técnica também tem se mostrado eficaz para lidar com as instabilidades climáticas. “Há muitas pessoas vindo da Europa para o Brasil para aprender o método”, diz Sérgio Bruxo.

Ele observa, no entanto, que a prática só funciona bem em regiões onde o inverno é seco. “No Rio Grande do Sul e no Piauí, não dá certo porque nesses locais essa estação costuma ser úmida. Mas onde funciona, os resultados são consistentes. À medida que essas videiras estão envelhecendo, a qualidade das uvas está melhorando.”

Com a dupla poda, é possível ainda aumentar o número de cachos por planta, enquanto, em condições normais, vinhedos mais antigos tendem a produzir menos.

As práticas regenerativas também têm sido adotadas por algumas vinícolas como estratégia para mitigar os efeitos do clima. A RAR investe em cobertura vegetal, adubação orgânica e controle de erosão para manter o equilíbrio físico e biológico do solo.

Na Miolo, os resíduos da vinificação são compostados e reincorporados aos vinhedos — cerca de quatro a cinco toneladas de matéria orgânica por hectare ao ano, com ganhos em estrutura, fertilidade e capacidade de retenção hídrica.

Mas não é apenas a tecnologia ou o manejo do solo que estão sendo revistos para enfrentar as alterações climáticas. Em algumas regiões, os impactos já desafiam as bases do conceito de terroir, historicamente associado à estabilidade entre solo, clima e tradição produtiva.

A Cabernet Sauvignon, originária de Bordeaux, passou a enfrentar dificuldades em sua região de origem devido a ondas de calor mais intensas e chuvas fora de época. Na Califórnia, onde o clima é mais estável, seco e com boa amplitude térmica, a variedade se adaptou muito bem.

Já a Syrah, típica do Vale do Rhône — que também tem sofrido com verões mais extremos — encontrou no Brasil condições favoráveis, com alta insolação e contrastes de temperatura entre o dia e a noite que favorecem seu desenvolvimento.

“O setor já assimilou a necessidade de resposta constante. E estamos vendo surgir novos microterroirs, além da adaptação a novas condições climáticas, apoiada em avanços tecnológicos, desenvolvimento genético e práticas agrícolas inovadoras”, afirma ao NeoFeed Mario Luca Ieggli, vice-presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE). “E a tecnologia avança no mesmo ritmo — ou até mais rápido — do que as mudanças climáticas.”