O historiador britânico Peter Burke se interessou nos últimos cinco anos em estudar a carreira de 500 intelectuais e artistas que mudaram a história do mundo com obras consideradas generalistas pelos cientistas que se levam a sério (talvez a sério em demasia) e que parecem levianos e superficiais nestes anos de hiperespecialização acadêmica e excesso de informação às disposição de qualquer pessoa via internet.
O resultado é o livro “O polímata: Uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag” (Editora Unesp, 498 páginas, R$ 60,00). Em 5 de abril, Burke explicou sua pesquisa em uma live feita diretamente da Universidade Cambridge (onde ainda atua) para lançar o livro no Brasil. Casado com a historiadora brasileira Maria Lúcia G. Palhares Burke, ele se expressa perfeitamente em português. E assim ele dialogou com os internautas por meio do Facebook.
Burke citou exemplos de polímatas, como o florentino Leonardo Da Vinci (1452-1519), que se tornou sinônimo de “polímata”, ou seja, o tipo de cidadão capaz de se interessar por várias áreas do conhecimento e disciplinas, quase nunca relacionadas entre si. O autor de “Mona Lisa” foi pintor, escultor, arquiteto, engenheiro bélico e aeronáutico, dramaturgo, empreendedor no teatro e na ópera, poeta, chefe de cozinha e muitas coisas mais.
“Segui um método estrito de selecionar 500 sábios que mudaram o mundo da cultura com suas múltiplas atividades entre os séculos XIV e XXI”, afirma Burke, que ressalta o papel de críticos literários que adotaram a linguística e a semiótica em suas análises sem deixar de publicar romances best-sellers, como o italiano Umberto Eco (1932-1936) e a americana Susan Sontag (1933-2004).
Com a especialização nas ciências, que passou a vigorar a partir do século XVII e atingiu o auge no século XX, os polímatas passaram a ser depreciados. Esses sábios (seriam chamados hoje de “sábios +”?) costumavam gozar de admiração no passado como celebridades. Hoje, os professores (“scholars”) tendem a desprezá-los.
Até porque, lembra Burke, entre eles circularam cidadãos suspeitos, como o jesuíta seiscentista Athanasius Kircher, descrito em seu tempo como “o último homem que sabia tudo”. Burke prefere denominá-lo de “pansofista”, ou seja, um disparador serial de fake news, como diríamos hoje. Leonardo da Vinci despertou também suspeitas em seu tempo, já que quase nunca entregou os projetos que vendeu aos nobres e papas italianos.
Embora não estejam citados no livro, Burke diz que o escritor Vladímir Nabokov ou os empresários Elon Musk e Larry Page e o economista John Maynard Keynes podem ser considerados "Leonardos" do nosso tempo, pois são indivíduos que primam por interesses multifacetados e formações diversas e que, de quebra, se destacaram em várias atividades.
Burke diz que o escritor Vladímir Nabokov ou os empresários Elon Musk e Larry Page e o economista John Maynard Keynes podem ser considerados "Leonardos" do nosso tempo
Nabokov, por exemplo, escreveu romances de sucesso mundial como “Lolita” (1955), ministrou cursos de literatura na universidade de Cornell e uma contribuição fundamental para a entomologia. Sim, além de tudo, Nabokov se revelou brilhante em caçar, catalogar e descobrir novos espécimes de borboletas.
Elon Musk, por sua vez, se formou em economia e física para depois fundar a Tesla. E segue surpreendendo com projetos considerados excêntricos, como a construção de naves espaciais para uso comercial. Larry Page talvez não tivesse tido a ideia de fundar o Google com Sergey Brin, caso não houvesse se graduado e doutorado em matemática e ciência da computação, áreas em que ainda atua com destaque.
Keynes não foi “somente” o pai do “New Deal”, a doutrina que preconizava a intervenção na economia durante a Grande Depressão Americana de 1929, e que voltou à moda com a pandemia do coronavírus. De acordo com um amigo, Leonard Woolf, ele se destacava como “fidalgo, funcionário público, especulador, empresário, jornalista, escritor, fazendeiro, mercador de obras de obras de arte, estadista, administrador de teatro, colecionador de livros e meia dúzia de outras coisas”.
“Os polímatas se caracterizam por sua curiosidade inesgotável”, afirma Burke. “Por isso, são importantes para juntar as várias peças do conhecimento em um todo coerente, como se montassem um quebra-cabeça.”
Para Burke, passamos por uma crise não só econômica e sanitária, mas de conhecimento. Essa crise aponta para a constatação de que há muito para saber, pelo excesso de oferta de informações que não temos tempo de processar e interligar. Situações semelhantes aconteceram dos séculos XVII ao XIX, devido à disseminação do livro e da imprensa. Trata-se de uma terceira onda, imposta pela ascensão da internet e as redes sociais.
Mas hoje, diferentemente de outras épocas, há poucos polímatas realmente relevantes. Burke acredita que a solução para a fragmentação dos saberes é criar departamentos e grupos interdisciplinares que possam lidar com registros e tipos diferentes de disciplinas e conhecimentos. “Como animais em extinção, os polímatas precisam ser preservados e convidados a contribuir com o avanço da ciência”, diz. Será difícil convencer os acadêmicos orgulhosos, encastelados em suas cátedras universitárias.