Depois da divulgação de resultados do segundo trimestre da rede Raia Drogasil, os principais bancos, plataformas e casas de análise foram quase unânimes em dizer que a companhia apresentou ótimos dados no e-commerce, que respondeu por 8,9% da receita bruta de R$ 6,24 bilhões. Essa, entretanto, é só a ponta de um enorme iceberg em que a RD está sentada.
Desde o ano passado, a companhia vem trabalhando para se transformar em muito mais do que uma varejista do setor farmacêutico. A meta é clara: criar um ecossistema de saúde que deve fazer com que seu mercado endereçável saia de R$ 150 bilhões para mais de R$ 400 bilhões. E isso ganhou contornos reais com o lançamento da plataforma Vitat, em junho.
“A nossa estratégia tem três pilares. O primeiro é acreditar que há espaço para uma nova farmácia cada vez mais omnichannel, o segundo é o marketplace e o terceiro é um hub que ligue tudo isso”, diz Marcilio Pousada, CEO da Raia Drogasil, ao NeoFeed. A Vitat, coordenada pelo vice-presidente de negócios de saúde da RD, Bruno Pipponzi, é a peça central nesse negócio.
A plataforma, que conta com pouco mais de 15 mil usuários e ainda é vista como uma startup validando processos dentro da companhia, pode significar uma virada de chave para a empresa. Não é exagero. Tanto que, nos últimos dois anos, a RD, que abre uma média de 240 lojas por ano, num investimento milionário, tem, segundo Pousada, aportado mais dinheiro em tecnologia do que na expansão física.
A Vitat, guardadas as devidas proporções, pode fazer com que a RD ganhe um protagonismo na saúde que a Magalu ganhou no varejo e na bolsa de valores. E Pousada sabe do canhão que tem em mãos. Primeiro, uma rede física com 2.374 lojas que deve chegar a 2.700 no fim de 2022. Em segundo lugar, uma marca forte no setor de saúde. E, por último, um avanço crescente nas vendas digitais.
“O negócio digital foi multiplicado por oito desde 2019”, diz Pousada. “Somos disparados o maior e-commerce do varejo farmacêutico do Brasil. Mais de 12 milhões de clientes já baixaram o nosso aplicativo.” Fora isso, a área de atendimento presencial, nas farmácias, avançou muito, sobretudo com o surgimento da Covid-19.
“Já realizamos 3 milhões de testes de covid-19. Fizemos tantos testes que, em algum momento durante a pandemia, chegamos a ter 7% do mercado de laboratórios do Brasil”, afirma Pousada. Em aplicações de injeções e vacinas, são mais de 90 mil por mês.
Alexandre Machado, head da consultoria da Gouvêa Consulting, afirma que o setor de varejo farmacêutico estava muito distante da realidade dos negócios digitais. Mas, aos poucos, foi mudando esse cenário. A entrada da Raia Drogasil no mercado de marketplace é um desses indícios. “A RD larga na frente porque tem recorrência, escala e capilaridade”, diz Machado.
Diferentemente de uma Magalu, que precisou criar recorrência ao comprar empresas de outros segmentos e trazer outros sellers, a RD e outras empresas do setor farmacêutico conversam com os clientes com frequência. “É uma categoria que sempre vai fazer parte da cesta de qualquer família, seja com produtos de bem-estar ou medicamento”, diz Machado, que vê a Drogaria São Paulo como um forte competidor da RD no mundo digital.
Pousada faz coro a questão da recorrência. “Os clientes estão conosco da primeira fralda até a última fralda no fim da vida dele.” Com o marketplace, lançado no fim do ano passado, ele aumenta esse contato, a gama de produtos e aproveita a extensa rede de lojas. “Estamos trazendo todas as categorias de saúde para o nosso negócio”, diz ele.
Numa farmácia, por exemplo, a companhia vende no máximo 4 SKUs de secadores de cabelo. Hoje, no marketplace, tem mais de 20. Enquanto as farmácias contam com 13 mil itens, o marketplace, por enquanto sob a marca Raia, conta com 42 mil itens vendidos.
Equipamentos de ginástica, como esteira, bicicleta ergométrica, poderão estar na plataforma. Óculos de grau também. Alimentos saudáveis, idem. “O mais legal do marketplace é que usamos a nossa rede de quase 2,4 mil lojas como hubs logísticos e os sellers podem usar isso”, afirma Pousada.
A companhia conta com 11 grandes centros de distribuição espalhados pelo Brasil e vai abrir mais dois no ano que vem, um em Mato Grosso e outro no Pará. “Cerca de 70% das nossas farmácias recebem um caminhão nosso por dia”, diz Pousada. “Hoje, as 2,4 mil já fazem entregas. Destas, 700 lojas entregam em 90 minutos ou 4 horas.”
Outro número mostra a capilaridade da rede. A RD está em 436 municípios e entregou, nos últimos três meses, em 3,9 mil cidades do Brasil. “É essa estrutura logística que está a disposição dos sellers”, afirma Pousada. O executivo, entretanto, diz que isso ainda é um MVP, que começou com dois sellers e hoje são 170. Detalhe: com espaço para atingir os milhares.
A Vitat entra ligando todos esses pontos e visa alcançar os 40 milhões de clientes conectados na base das marcas da RD: Droga Raia, Drogasil e Onofre. “Nosso objetivo não é verticalizar o setor inteiro e ser o sistema de saúde para as pessoas”, diz Pipponzi, o responsável pela plataforma, ao NeoFeed. “A gente entende que a farmácia tem papel de porta de entrada no sistema. Há 100 anos, a farmácia tinha esse papel e isso foi se perdendo.”
Por isso mesmo, para resgatar esse costume, a Vitat conta com espaços físicos dentro das lojas da RD. Por enquanto, funciona em quatro unidades em São Paulo, mas, até 2022, deve entrar em todas as lojas da companhia espalhadas pelo Brasil. Cada espaço tem uma sala de atendimento para procedimentos, testes rápidos e aplicação de injetáveis, e outra sala de orientação do cliente.
Pipponzi afirma que, de certa forma, a Vitat vai ajudar a desafogar o sistema de saúde nacional com os hubs, com tecnologia e com programas preditivos. Atualmente, 28 programas estão no ar. Entre eles, o acompanhamento de Covid-19, outro para movimento, alimentação, saúde mental, pressão alta, entre outros.
Em breve, entrará no ar um programa de acompanhamento de diabetes. “É para uma pessoa que queira fazer o controle da doença.” O objetivo é oferecer conteúdo, produtos e serviços com benefícios.
“O cliente vai ter desconto nos produtos, um pacote com acompanhamento médico”, afirma Pipponzi. E todos os dados ficarão armazenados na plataforma. No marketplace de serviços, a Vitat vai conectar médicos, psicólogos, nutricionistas e personal trainers. E a Healthbit e a tech.fit, empresas recentemente adquiridas pela RD, complementam o cardápio.
Um atendimento de telemedicina feito pela Healthbit, por exemplo, sai por R$ 69. Na telenutricação e telepsicologia, o serviço é prestado pela tech.fit, responsável pela maioria dos programas na plataforma. A RD, entretanto, está trazendo outros parceiros estratégicos como Labi Exames e até o Hospital Albert Einstein, com o seu programa de controle de diabetes.
A estratégia é vista com bons olhos pelos analistas de mercado. Danniela Eiger, Thiago Suedt e Gustavo Senday, da XP, escreveram na análise do segundo trimestre que um dos pontos positivos da companhia é “a evolução da construção da plataforma de saúde, atingindo 160 sellers no seu marketplace, implementação na bandeira da Drogasil já sendo planejada e lançamento da plataforma Vitat, com mais de 25 programas de saúde diferentes.” Os números, como se vê, já cresceram.
Avaliada em R$ 42,8 bilhões na bolsa, a RD apresentou um lucro líquido ajustado de R$ 232 milhões no segundo trimestre, 276% a mais do que no mesmo período do ano passado. Ela tem quase 15% de market share em um mercado extremamente pulverizado como o brasileiro, mas sabe que não pode se dar o luxo de ficar parada olhando os concorrentes do topo da montanha. Até porque eles estão se mexendo.
Em maio desse ano, a Pague Menos, avaliada em R$ 5,65 bilhões na bolsa, comprou a Extrafarma em um negócio de R$ 700 milhões. A rede acabou se tornando a segunda maior do setor com 1.503 lojas. Na época da aquisição, Mário Queirós, CEO da rede, explicou o racional do negócio.
Um dos motivos foi o potencial de implantar o hub de saúde da Pague Menos, sob a bandeira Clinic Farma, em 70% das lojas da Extrafarma. “Ao mesmo tempo, as 402 lojas da rede irão expandir a base de pontos de retirada dos produtos comprados no nosso e-commerce”, afirmou Queirós na época.
Busca pela inovação no mundo
A preocupação com a jornada digital e o que estava acontecendo no mercado mundial levou Pipponzi, que era diretor de expansão da RD, a ficar um ano estudando fora da companhia analisando o mercado.
Em 2019, ele foi para a China, onde passou quase um mês; na sequência foi para Israel; e de junho a agosto fez um curso de liderança e gestão avançada em Stanford, nos Estados Unidos. Por último, em dezembro, frequentou um curso com foco em saúde em Harvard.
Ali, aprendeu a envelopar o que tinha visto em suas imersões. Na China, por exemplo, ele percebeu o poder das plataformas. No país asiático, viu o poder da Ping An Good Doctor. O app tem 400 milhões de usuários cadastrados, mais de 60 milhões de usuários ativos por mês e 32,1 milhões de pagantes. “Eles integram o ecossistema. São milhares de farmácias, hospitais, consultórios médicos e odontológicos.”
Em Israel, viu a gestão do sistema de saúde eficiente e como a tecnologia potencializa isso. Duas empresas que trabalham com o governo no formato de PPPs, como a Clalit e a Maccabi, foram exemplos que impressionaram.
Nos Estados Unidos, os benchmarkings foram redes como a CVS, que segue o modelo de verticalização, e a Walgreens, que trabalha em um modelo mais aberto. Por último, mergulhou em Harvard no caso da Vitality, empresa que desenvolve produtos para seguradoras controlarem a sinistralidade e cria programas de incentivo com base em hábitos saudáveis.
Quando voltou ao Brasil, em 2020, tinha que organizar tudo isso em um produto. “A gente já tinha um desenho de uma estratégia que foi sendo feito com a McKinsey e amadurecendo com o conselho da empresa”, diz Pipponzi. “2020 foi um ano de montar o quebra-cabeça.” Agora, é hora de testar. Mas, em 2022, será o momento de escalar.