No setor de hotelaria, há dois tipos de players: os que lamentam a entrada do Airbnb no mercado de hospedagem e vivem relembrando os tempos áureos do passado e os que transformaram seus negócios diante das ameaças causadas tanto pelo Airbnb como pelas plataformas de reservas Booking.com, Expedia, entre outras. A Accor, gigante com 4,8 mil hotéis espalhados pelo mundo e faturamento de 3,6 bilhões de euros em 2018, se inclui no segundo time.
Nos últimos quatro anos, a cadeia hoteleira, dona de marcas como Ibis, Sofitel, Grand Mercure, Pullman e outra dezena de grifes, se reinventou. “A Accor está virando quase uma empresa de gestão de clientes que vão usar os nossos serviços. O objetivo é aumentar os pontos de contato com os clientes, seja para dormir, para alugar um apartamento, para jantar num restaurante, para uma reunião de trabalho”, diz Patrick Mendes, CEO da Accor na América do Sul.
Nesta entrevista exclusiva ao NeoFeed, Mendes falou sobre os planos de trazer a marca de coworking Wojo para o Brasil, como tem incentivado a inovação nos corredores da empresa, o impacto das startups nos negócios, o uso de inteligência artificial e robôs na hotelaria, e também revelou o plano de abrir 150 novos hotéis no continente até 2022. “É um investimento total de R$ 10 bilhões, junto com parceiros, bancos e fundos de investimentos estrangeiros”, diz Mendes. Acompanhe:
Qual é o momento da Accor na região?
É a primeira vez em três ou quatro anos que todos os planetas estão alinhados. Depois desses anos de crise pesada, principalmente no Brasil, as coisas estão melhorando. Aqui, conseguimos sair da crise porque somos grandes, tivemos força. Temos 375 hotéis na região, 310 no Brasil, e 130 hotéis em construção – dos quais 90 no Brasil. Abrimos um hotel a cada semana. Nosso objetivo é chegar em 2022 com 650 hotéis, sendo 500 em operação, 400 no Brasil, 100 nos hispânicos e mais outros 150 em construção.
O investimento deve atingir R$ 10 bilhões até 2022
Vai aumentar muito a oferta...
Hoje temos 60 mil quartos e vamos construir mais 40 mil quartos até 2022. É um investimento total de R$ 10 bilhões, junto com parceiros, bancos e fundos de investimentos estrangeiros. Nos últimos três ou quatro anos, investimos R$ 10 bilhões e até 2022 vamos investir mais R$ 10 bilhões.
Então o grupo abriu mais hotéis durante a crise?
Só no ano passado, abrimos 54 hotéis. O Brasil foi o segundo país do mundo em que mais abrimos hotéis. Só perdeu para a China, onde abrimos 56 hotéis.
Mas se estava em crise por que o grupo abriu mais hotéis?
Nós aproveitamos a crise para fazer aquisições e conversões. Primeiro, fizemos um acordo com a BHG e convertemos hotéis Royal Tulip e Golden Tulip em Grand Mercure e NovoHotel. Isso faz parte desse fenômeno mundial que acontece em várias indústrias que é a consolidação. Em segundo lugar, existem zonas secundárias que não têm hotéis. O Brasil tem um equipamento médio de dois ou três quartos para cada mil habitantes, na Europa são 12 a 13 quartos para cada mil habitantes e nos Estados Unidos são 16 quartos para cada mil habitantes. Não existe demanda porque essa demanda não foi criada. Tem vários destinos que criamos ao construir hotéis.
Quais?
Não-Me-Toque (RS), Chapecó (SC), Paraopeba (MG), Piracicaba (SP), Igrejinha (RS). São cidades que não tinham hotéis com padrão internacional.
“O Brasil foi o segundo país do mundo em que mais abrimos hotéis”
Então, no fim das contas, a crise ajudou na expansão?
Na hotelaria, o investimento é para longo prazo. Você investe para 50 anos e tudo vai acontecer durante esse período. Novas eleições, novas crises, novas oportunidades. Temos uma máquina de investimento, alguns projetos foram adiados seis meses, oito meses, mas não cancelados. Por exemplo, no Fairmont que vai abrir em Copacabana, investimos R$ 280 milhões. É um hotel de luxo com 400 quartos. Hotelaria é cash consumer, mas também é um cash producer. É uma fábrica. Quando você monta um hotel de 200 quartos, por exemplo, você precisa de 150 funcionários.
Há demanda para tudo isso?
A crise reprimiu a demanda e agora está voltando. Nossa receita cresceu acima de 11% no primeiro trimestre. Mas esse movimento acontece no mundo inteiro.
De que forma?
Você tem o ciclo de uma demanda crescendo, com 70% ou 80% de ocupação e todos investidores começam a abrir hotéis. De repente, tem muita oferta e ultrapassa a demanda. Aí cai a oferta. Estamos nesse ciclo agora, não tem mais projetos imobiliários de hotéis e poucos que vão abrir. Falei que vamos abrir 130 hotéis, isso representa 30% a 40% do que serão abertos no Brasil. Ou seja, vai faltar, voltará a ocupação na faixa de 70% e os preços vão subir. Agora estamos nesse ciclo. E os preços têm de subir porque muitos hotéis fecharam pois não eram mais rentáveis.
Mas será que as pessoas vão pagar mais?
O consumidor vai ter de aceitar que a equação preço razoável para um hotel razoável tem de voltar. Hoje você paga R$ 250 de diária em um hotel decente. Isso é totalmente anormal. Um hotel como o Novotel não poderia vender abaixo de R$ 400. O efeito da crise foi muito forte. Baixou a ocupação, baixou os preços, houve uma guerra de competição e os pequenos morreram ou foram comprados.
Quantas pessoas passam pelos seus hotéis?
Temos 60% de ocupação e, nos nossos 60 mil quartos na América do Sul, dormem cerca de 100 mil clientes por dia. Num ano, temos 30 milhões de clientes. No mundo, temos 700 mil quartos e, durante um ano, 300 milhões de pessoas dormem nos nossos hotéis. Se somarmos os que passam pelos hotéis para ir no bar, no restaurante ou a um evento, são 600 milhões de pessoas por ano.
“O nosso investimento em tecnologia passou a ser brutal”
Qual foi o impacto das startups no negócio da Accor?
Impactou bastante, mas positivamente. De novo, é a vantagem de ser grande. Distribuidores como Expedia, Booking, TripAdvisor, que são conectores entre o cliente final e o hotel, são parceiros, nos ajudam a melhorar a nossa ocupação e nos trazem clientes. Esses websites nos trazem 20% dos nossos clientes e nos obrigaram a ser muito mais digital.
Obrigaram de que forma?
Para capturar o cliente diretamente e para que ele tenha uma experiência digital muito bacana, o nosso investimento em tecnologia passou a ser brutal. Com isso, hoje temos mais reservas que entram pelo nosso próprio website do que pelas plataformas de terceiros.
Você disse que o investimento em tecnologia é brutal. Quanto representa?
Em 2017, foram anunciados US$ 225 milhões para um plano de três anos. Há dois anos, o nosso aplicativo servia apenas para informações, agora é para reservar. Você tem o seu perfil, seu cartão de crédito, você reserva, acumula pontos. Atualmente, ele representa 30% das nossas reservas. Hoje, fazemos com que os nossos gerentes gerais incentivem os clientes a baixarem o nosso aplicativo quando chegam na recepção. Quem reserva pelo aplicativo, paga de 5% a 10% mais barato. Com isso, o aplicativo e o site já capturam mais clientes do que os sites (de reservas de terceiros). O que ajuda também é que você só ganha pontos de fidelidade no nosso programa Le Club ao reservar pelo aplicativo.
E o Airbnb, não impactou?
Ele virou um disruptor para nós. Nos obrigou a repensar a experiência dos clientes nos nossos hotéis. Antes, há uns 10 anos, você ia em um Novotel ou Sofitel e esperava a mesma experiência em todos os hotéis, em qualquer parte do mundo. Padronização era a palavra chave. Hoje, com a internet e a possibilidade de postar as informações, obrigou os hotéis a colocarem a padronização na gaveta.
Como se faz isso?
É duro, é difícil. Durante 40 anos, a indústria trabalhou com esse tipo de padronização. Há quatro anos, quando assumi aqui na região, foi um choque, um trauma para a equipe e para os investidores. Na empresa, alguns se adaptaram e outros não. Tivemos que recrutar gente nova e repensar algumas áreas. Antes, não tínhamos uma equipe de designers, mas sim uma área de construção. Criamos um departamento de alimentos e bebidas. Pessoas que pensam cada hotel e cada localização de forma diferente. Tudo o que está por trás da operação é padronizado, mas o que o cliente vê, a experiência, deve ser diferente. Lançamos 12 conceitos de bares e restaurantes diferentes.
E a sua equipe comprou esse projeto?
De maneira geral, foi uma libertação. Os brasileiros têm criatividade, capacidade de inovação. A única coisa que eles precisam é ter liberdade para fazer. Muitas vezes, a padronização engessava os funcionários.
Como você incentiva a criatividade e a inovação?
Fiz uma mesa aberta com 20 colaboradores distintos chamada Connection with CEO. Você se registra online e se cadastra. É fantástico. Havia pessoas que eu nunca tinha conversado e ficaram muito contentes de poder trocar ideias. Um dos funcionários mostrou um QR Code usado na Coreia e faz tudo ali. Eu sou contra a criação de um departamento de inovação. Para mim, esses departamentos atrapalham a inovação, acabam concentrando dentro do departamento. Prefiro estimular a inovação e a criatividade em todos os departamentos para que me tragam ideias que possam ser executadas. A cada dois meses faremos essas reuniões para estimular essas ideias inovadoras.
Você disse que o Airbnb forçou o grupo a repensar a experiência do cliente. Não teve impacto negativo?
Teve um impacto no início. Essencialmente no segmento econômico como o Ibis.
E obrigou a Accor a também entrar no segmento do AirbnB...
Sim, decidimos entrar no Airbnb do luxo. Compramos três empresas: Travel Keys, nos Estados Unidos; Squarebreak, na França; e Onefinestay, na Inglaterra. Essas três empresas atuam em aluguel de casas e apartamentos, mas no segmento de luxo. Compramos as três empresas e concentramos tudo na marca Onefinestay. Hoje, você pode ir na plataforma da Accor e achar apartamentos e casas nos Estados Unidos e na Europa. A ideia é levar isso para a América do Sul, África e Oriente Médio, Ásia e Pacífico. A nossa plataforma faz a intermediação entre o proprietário que tem uma casa de luxo e o cliente de um segmento bem alto. Estou falando de pessoas que vão gastar de US$ 400 a US$ 1,5 mil por dia.
A empresa só faz a intermediação?
Nós também entramos com todo o serviço de check-in e ckeck-out, de café da manhã, de limpeza... É um serviço mais elaborado, mas continua sendo a casa de uma pessoa.
Mudando um pouco de assunto, como a tecnologia vai entrar no dia-a-dia da hotelaria?
Temos três exemplos de inovação ligadas a inteligência artificial, digitalização e robotização. Primeiro, é o reconhecimento facial, que estamos testando nos hotéis Pullman Vila Olímpia e outro no Belas Artes. Testamos duas câmeras que te reconhecem automaticamente e identificam que você é um cliente Le Club.
Como funciona?
Você entra no hotel, a câmera reconhece você, e, imediatamente, chega no iPad dos nossos funcionários a sua ficha com a sua reserva, as suas preferências, o seu cartão de crédito cadastrado e é só assinar o visto no iPad. É só chegar e assinar. Estamos testando desde setembro do ano passado e a tecnologia funciona. O ponto agora é ver se o cliente se sente confortável com isso, a questão das autorizações, de privacidade e segurança da informação. Não temos mais uma trava técnica, é mais uma questão de compliance. E ainda o consumidor não está preparado para isso.
Quando o consumidor estará preparado para isso?
Estive recentemente na China e eles já passaram desta dúvida. Em qualquer lugar que você vai, já é reconhecido por câmeras. Mas será que é assim que queremos viver? Será que as pessoas querem essa intrusão em suas vidas? Não sei se vou fazer. Estamos nessa fase de questionamento.
E a robótica, onde ela vai entrar?
Você tem um robô que vai melhorar a experiência do cliente. Mas, para nós, a tecnologia, a inovação e a robótica, não vão substituir o trabalho humano. A relação humana é muito valiosa e isso é a garantia de uma estadia diferenciada. Temos um programa chamado Heartist, contração das palavras Heart (coração) e Artist (artista), no qual 250 mil colaboradores foram treinados. Eles são os nossos artistas do coração. Eles têm de ter um link emocional mais forte com os hóspedes.
Mas e o robô?
Fizemos uma parceria com a empresa Pluginbot e tem um robô que te atende quando chega ao hotel. Ele diz bom dia, o seu nome e te orienta onde é o restaurante, se tem uma farmácia próxima, é como um concierge dentro do hotel. Isso já funciona em alguns hotéis nossos aqui no Brasil em fase de piloto. Inovação é um assunto que me empolga bastante.
O que mais está sendo feito do ponto de vista tecnológico para melhorar a vida dos clientes?
No Pulman, Vila Olímpia, criamos o quarto que se chama 360. São dois quartos que juntamos e, com alguns parceiros, colocamos o que há de melhor em termos de tecnologia. Samsung, LG, Castor e vários outros fornecedores nos ajudaram. Tem cama que gira, home cinema, tem uma máquina de lavagem a seco no banheiro, iluminação diferenciada.
A Accor tem uma marca de coworking na Europa. Pretende trazer esse modelo para cá?
Há dois anos, criamos a marca Nextdoor. Recentemente, mudamos a marca para Wojo. Temos mais de 4 mil hotéis no mundo com espaços inutilizados e cantos subaproveitados. E vamos aproveitar isso.
Chegará ao Brasil?
Aqui no Brasil, criei uma diretoria para pensar nesse modelo e vamos anunciar dentro de três meses qual será o modelo adotado na América do Sul. Imagina que você está preso no tráfego e pode trabalhar em um dos pontos mais próximos que estiver. Chega lá e mostra o seu cartão e pode trabalhar. E tudo isso estará ligado ao nosso programa de fidelidade. A ideia não é pensar somente no cliente que está dormindo no hotel.
A Accor, então, está deixando de ser uma empresa apenas de hotéis?
A Accor está virando quase uma empresa de gestão de clientes que vão usar os nossos serviços. O objetivo é aumentar os pontos de contato com os nossos clientes, seja para dormir, para alugar um apartamento, para jantar num restaurante, para uma reunião de trabalho. Queremos que os clientes usem muito a nossa plataforma. Em geral, um aplicativo como o nosso é usado quando o cliente dorme no hotel. Nosso objetivo é que ele use o aplicativo todos os dias.
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