O evento da pandemia causou mudanças profundas na economia global, levando as potências ocidentais a repensar sua dependência da China, seja estimulando a volta de suas indústrias que haviam migrado para a Ásia, seja recorrendo ao protecionismo ou ao boicote tecnológico para enfrentar a competitividade chinesa.
Para Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master e professor de macroeconomia de MBA na Fundação Getúlio Vargas, porém, o mundo acordou tarde demais. Com o dobro da produtividade industrial dos Estados Unidos e uma hegemonia global incontestável em patentes – com liderança em 88 setores industriais, contra apenas 4 dos EUA –, a China deverá seguir liderando a economia global nas próximas décadas.
“A dependência dos países ocidentais da China é tão grande que, mesmo que queiram, não vão conseguir cortar os laços”, diz Gala, em entrevista ao NeoFeed. “Os chineses levaram mais de 20 anos para construir isso e os países ocidentais podem levar décadas para trazer de volta as indústrias.”
Gala acrescenta que o custo de produção (quatro vezes maior nos EUA) e o problema de escala - 1,4 bilhão de chineses contra 334 milhões de americanos – são barreiras desse movimento. Na prática, segundo ele, a China repete o roteiro que os EUA seguiram no século 19 ao se sobrepor à hegemonia econômica inglesa.
De acordo com o economista, que costuma abordar com frequência a economia chinesa em suas postagens no Twitter, onde tem 40 mil seguidores, além dessa questão estrutural (a mudança da estrutura produtiva da Ásia), a pandemia gerou outros efeitos. A explosão inflacionária, causada pelos custos de frete, o estímulo dos países à população e aumento do preço de grãos e combustíveis com a guerra da Ucrânia, foi um deles.
Outro efeito foi a mudança no comércio global, com o nearshoring, termo que se refere à estratégia dos países de buscar parcerias com nações próximas geograficamente. Para Gala, surge uma oportunidade para o processo de reindustrialização brasileira, preparado pelo novo governo, via Mercosul.
“A grande vantagem do Mercosul seria ampliar a escala e o alcance de nossa produção industrial, que é baixa", afirma o economista, advertindo da necessidade de se aprovar o arcabouço fiscal, que ele elogia, e da reforma tributária, para impulsionar a retomada industrial.
“O Brasil não vai conseguir se reindustrializar produzindo botão e parafuso, que agora são feitos na Ásia. Precisamos pensar numa industrialização em novas bases, voltadas para a transição energética.”
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
A pandemia alterou a economia globalizada como conhecíamos, causando gargalos nas cadeias de suprimentos e levando os países a repensar sua dependência da China. Que tipo de economia global vai se firmar daqui para frente?
O mundo pós-pandemia gera duas análises, uma estrutural e outra conjuntural. A primeira indica que a pandemia levou os países a repensar sua estrutura produtiva, pois perceberam que estavam dependentes demais não só da China como do Leste Asiático, ao notar que começaram a faltar bens essenciais, de semicondutores a equipamentos médicos. Com isso, os governos, em especial, começaram a apostar na reindustrialização, na tentativa de trazer de volta as indústrias nacionais e no tal do nearshoring [movimento que busca criar parcerias entre países próximos geograficamente].
E a questão conjuntural?
A desestruturação das cadeias globais de valor durante a pandemia gerou um surto inflacionário por causa do aumento dos preços de vários produtos, de chips a fretes, que quadruplicaram. Depois, a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe mais uma onda inflacionária, disparando os preços de grãos e de energia. Os próprios estímulos dos países para tirar a economia do buraco tiveram uma consequência inflacionária. Os Estados Unidos, por exemplo, registraram um déficit público de US$ 2,8 trilhões em 2021, com os cheques distribuídos pelo presidente Joe Biden. Conjunturalmente, podemos dizer que a inflação é consequência da pandemia.
Como se dá a conexão entre a questão conjuntural e a questão estrutural?
Ela ocorre quando os governos perceberam que estavam dependentes da Ásia e tentaram reinternalizar a produção. Esse movimento mostrou como é caro voltar a produzir nos países desenvolvidos, porque os custos salariais são muito mais elevados que no Vietnã, Malásia, Tailândia, Indonésia e na China. Isso acaba retroalimentando a inflação, dificultando seu controle. Pelas forças de mercado, ninguém ia deixar de produzir na China, mas é fato que o pós-pandemia está sendo marcado pela volta das políticas industriais. Na semana passada, o governo francês lançou um megapacote industrial, o Biden já havia feito isso.
A economia global tem caminhado por um tripé de inflação, juros e crescimento baixo. Esse componente conjuntural da inflação corre o risco de virar estrutural, um novo normal?
Não acredito. A pandemia foi a causa fundamental da inflação. As políticas de estímulos foram muito agressivas, muito mais que nas crises de 2008 e 1929, e o efeito inflacionário deve se dissipar ao longo do tempo. Tem outra questão estrutural que é o alto endividamento dos países ricos, que já vinham endividados desde 2008 e a pandemia trouxe uma nova rodada de endividamento. A relação dívida/PIB, pública e privada, já está em três vezes. Isso limita a capacidade de crescimento. Por isso acho que os juros e a inflação devem voltar a cair num futuro não muito distante.
A velha China como fábrica do mundo e com crescimento elevadíssimo do PIB ficou para trás com essa guinada?
Longe disso, a dependência desses países da China é tão grande que, mesmo que queiram, não vão conseguir cortar os laços. No ano passado, o superávit industrial externo chinês foi de 10% do PIB, um recorde. Mostra que a China está tão forte como nunca esteve, continua sendo a fábrica do mundo e assim será por décadas. A produção industrial chinesa é de US$ 4 trilhões, o dobro da americana. Os chineses levaram mais de 20 anos para construir isso. Os países ocidentais podem levar décadas para trazer de volta as indústrias, se é que vão conseguir isso.
"No ano passado, o superávit industrial externo chinês foi de 10% do PIB, um recorde. Mostra que a China está tão forte como nunca esteve, continua sendo a fábrica do mundo e assim será por décadas"
O protecionismo, uma muleta dos países ricos para acelerar o desenvolvimento de alta tecnologia em contraposição à China, é algo transitório?
O protecionismo veio para ficar. Primeiro pela própria ameaça da China – que chegou aonde está com políticas de intervenção muito fortes e eficientes. É o caso de maior sucesso depois dos EUA, que adotaram políticas intervencionistas e protecionistas no século 19, quando superaram a Inglaterra: eram um país maior e sua economia tinha mais escala. Na prática, os EUA passaram a ser o sistema industrial inglês colocado num país continental. A Inglaterra, claro, perdeu essa corrida. É o que está ocorrendo agora. A China ficou tão grande – já é maior economia do mundo em paridade de poder de compra – que despertou a reação dos países do Ocidente.
Estamos vivendo o início da hegemonia chinesa?
É difícil dizer o que vai acontecer daqui a 30, 40 anos. Mas para se ter uma ideia dessa mudança, os americanos só agora perceberam que estão completamente atrasados em equipamentos telecom. A Huawei tem mais de 80% das patentes mundiais de tecnologia 5G e estão na dianteira no 6G. Aliás, os indicadores mais recentes em número de patentes já mostram a China na fronteira tecnológica, líder nesse quesito em 88 setores industriais do mundo. Os EUA lideram em apenas quatro setores e o Japão, em três. Isso mostra que a China está ganhando a guerra tecnológica.
A estratégia americana de impedir a venda de supercondutores para China tem chance de impedir o desenvolvimento chinês de alta tecnologia?
Costumo dizer que isso é uma política de vandalismo econômico. Pode retardar o processo e manter alguma proteção para as empresas americanas, mas a posição dos EUA é ingrata: apesar de ainda ter o domínio tecnológico de setores-chave, os americanos têm um problema de escala não só em relação à estrutura industrial chinesa, como de custo de produção e também de população - são 1,4 bilhão de chineses contra 334 milhões de americanos.
Até que ponto esse cenário de nearshoring pode alterar o comércio mundial?
No que diz respeito a bens hightech, os países do Primeiro Mundo vão conseguir fazer a transição. Quando se tem conteúdo mais tecnológico, é possível pagar salários mais elevados. A renda per capita americana é de US$ 60 mil e a chinesa, de apenas US$ 15 mil. O custo de produzir nos EUA é cerca de quatro vezes maior do que na China. Para empresas com conteúdo tecnológico muito forte, ok. Mas para bens de média e baixa tecnologia, o nearshoring infelizmente não vai ser viável.
Por quê?
Nenhum governo vai ficar subsidiando produtos de baixo nível tecnológico, especialmente os poluentes. Ou seja, o comércio de pouco ou baixa tecnologia não deve mudar. Mesmo porque a alternativa, os EUA produzindo em solo americano o que está sendo produzido em solo chinês, significaria um aumento da inflação muito maior do que estamos vendo. A China, por sua vez, tampouco conseguiu criar uma sociedade de consumo de massas a ponto de ficar livre do mercado consumidor americano.
O Mercosul pode obter alguma vantagem nesse reposicionamento do comércio global?
O Mercosul deveria ser utilizado para alavancar a produção industrial da região sul. É difícil pensar no Mercosul competindo com os americanos, porque há uma redundância de produção agrícola, ou com os europeus, por causa do protecionismo de lá. A grande vantagem do Mercosul seria ampliar a escala e o alcance de nossa produção industrial, que é baixa. Se o Brasil não conseguir se reindustrializar, o país não vai se desenvolver. A América Latina, África e Mercosul, principalmente por causa da Argentina, seriam o caminho por excelência da indústria brasileira.
Por que indústria brasileira decaiu tanto na última década?
Tivemos uma implosão do mercado interno, entre 2015 e 2016, que afetou nossa produção industrial até hoje. Infelizmente, nunca conseguimos construir uma economia exportadora de manufaturas. Conseguimos exportar commodities e agro. Vamos chegar a 10% do comércio mundial de agro, saindo de 5% no início dos anos 2000. Em commodities, esse salto saiu de 3% no começo do século para 6% do comércio global de hoje. Trata-se de um sucesso retumbante, mas o drama brasileiro é que nada disso é suficiente para empregar 70 ou 80 milhões de pessoas. Se não conseguirmos retomar o processo de industrialização e de volta do mercado interno, vamos continuar patinando. Em indústria de média e alta tecnologia, nossa participação no comércio global não chega a 1%.
Mas a indústria brasileira já não vinha perdendo produtividade antes da crise de 2015-2016?
Ela vinha patinando, mas a produção industrial brasileira aumentou 25% entre 2000 e 2011. Foi a partir do início do governo Dilma (2011-2016), até 2014, que começou a estagnação. A produção industrial ficou zerada até implodir entre 2015 e 2016, quando caiu 20%. Desde então, nunca mais subiu. A própria China tomou espaço da indústria brasileira nesse período. Hoje, nossa produção industrial está no mesmo nível de 2007. Até o Vietnã, com metade da nossa renda per capita, exporta mais que o Brasil atualmente.
O governo Lula anunciou um processo de “neoindustrialização”, com aposta em transição energética. Você acredita nessa retomada?
Acho correto esse termo “neoindustrialização”. O Brasil não vai conseguir se reindustrializar produzindo botão e parafuso, que agora são feitos na Ásia. Precisamos pensar numa industrialização em novas bases.
"O Brasil não vai conseguir se reindustrializar produzindo botão e parafuso, que agora são feitos na Ásia. Precisamos pensar numa industrialização em novas bases"
O BNDES pode ajudar nessa retomada industrial?
Gosto da ideia de usar o BNDES focado em questões específicas, de inovação e o que chamo de “missões de sustentabilidade”, como a de transição energética. O banco também tem olhado para o segmento das micro e pequenas indústrias, visando o mercado externo. Não acho que o BNDES deveria financiar o agronegócio, por exemplo. Além desse setor ser suficientemente pujante, já tem muito financiamento do Plano Safra e ainda paga menos imposto que a indústria.
O que a indústria brasileira precisa para voltar a ser relevante?
Esse esforço de neoindustrialização não vai funcionar se o Brasil não desatar o nó macroeconômico: controlar a inflação e colocar as contas públicas em ordem, com arcabouço fiscal que permita reduzir os juros. A taxa Selic precisa baixar para 10% ou menos e o câmbio tem de ficar num nível competitivo, próximo de R$ 5. Um segundo ponto é a questão tributária. Num mundo em que se desonera cada vez mais a produção industrial, nossa indústria é o setor que mais paga impostos em termos relativos - e a reforma tributária felizmente está endereçando isso.
Com o arcabouço fiscal e a reforma tributária, o país consegue dar o salto que precisa?
Acredito que sim, o problema é se vai conseguir aprovar as duas iniciativas no Congresso Nacional. O arcabouço é mais fácil, está bem encaminhado. Gostei do desenho, o plano é pragmático e deve funcionar bem. A reforma tributária é um tema mais espinhoso, tem muitos lobbies, não vai ser fácil passar a reforma. Por outro lado, está amadurecida, estamos há uma década discutindo isso.
A inflação, que sempre atrapalha as políticas públicas no Brasil, e os juros elevados atuais podem minar o arcabouço?
Existe uma novidade, que é a inflação mundial. Houve empolgação por aqui quando estipulamos a meta de inflação em torno de 3%, numa época que o mundo não tinha inflação havia uma década – nos EUA, entre 2018 e 2019, a inflação era de 2,5%. Hoje vemos índices de 6 a 7% nos EUA e 10% no Reino Unido. O Brasil está pagando um pato que não era dele, demos azar. Na perspectiva internacional, nossa inflação atual é baixa. Aliás, ela é muito mais consequência da inflação mundial do que de problemas do Brasil.