Recentemente, Howard Marks, fundador da Oaktree Capital, gestora com US$ 172 bilhões em ativos e conhecimento sobre o mercado de renda fixa privada, afirmou que o boom do crédito privado será posto à prova em breve, em todo o mundo.

Quem faz a gestão desse tipo de ativo no Brasil pode compartilhar a experiência de assistir duas empresas high grade anunciarem defaults. Americanas e Light foram a surpresa em um mercado que já vinha pressionado pelas altas taxas de juros e o baixo crescimento econômico.

“Um ciclo de crédito tradicional começa a morder de baixo para cima, ou seja, a pegar as empresas pequenas até chegar no topo da pirâmide. O esquisito, e que vimos acontecer no Brasil, é que ele veio de cima para baixo, por conta de Americanas e Light. Isso gerou uma confusão grande no mercado”, diz Alexandre Muller, sócio e gestor dos fundos de crédito da JGP.

Se, no evento Americanas, a JGP não ficou entre os fundos que tiveram as maiores perdas, na Light a gestora tem atuado de forma ativa com outros credores para chegar a uma solução que não seja a recuperação judicial.

Na assembleia de Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária da empresa de energia elétrica, realizada em 28 de abril, que decidiu, entre outros assuntos, a remuneração milionária da diretoria, um assunto revelado pelo NeoFeed, a JGP decidiu registrar sua manifestação de voto na ata da reunião para firmar sua posição contrária à proposta do management.

Criada em 1998 por André Jakurski, um dos fundadores do então Pactual, a JGP detém R$ 34 bilhões sob gestão. A estratégia de crédito privado passou a fazer parte da JGP a partir de 2014, já sob a liderança de Muller. Ele foi um dos primeiros gestores a criar fundos de investimento focados em crédito privado no início dos anos 2000 no Brasil.

Apesar do primeiro quadrimestre desafiador, Muller revela, nesta entrevista ao NeoFeed, estar mais otimista com os próximos meses com o crédito privado. Ele elogia o arcabouço fiscal, embora não seja a regra perfeita, algo que ajudará na melhora do ambiente para a queda da taxa básica de juros, no início do segundo semestre, segundo as projeções atuais da JGP.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O gestor de crédito começou o ano tendo de lidar com o risco da Lojas Americanas. O cenário melhorou?
Hoje, estou até levemente otimista por ter começado o ano com expectativas muito negativas, que foram sendo ajustadas mais favoravelmente. Acredito que a surpresa veio, principalmente, desse arcabouço fiscal, do governo federal. Se não é a melhor regra do mundo, pelo menos é uma regra que tira o prêmio de “argentinização” do Brasil. Isso talvez seja suficiente para vivermos os próximos anos até que se faça uma revisão mais assertiva e sustentável. É uma surpresa positiva e uma expectativa de melhora a partir da queda da taxa de juros. Na JGP, estamos esperando o início do ciclo de queda da Selic em setembro para, no fim deste ano e em 2024, ter um vento melhor a partir da redução da Selic.

Qual é o momento atual do crédito privado?
Para quem faz gestão de recursos, em classes específicas de ativos, o mais importante é ter uma leitura assertiva do ciclo de crédito, que tem momentos de abertura, de estabilização e de fechamento do prêmio de crédito. Há cerca de 40 dias, começamos a achar que estávamos saindo da fase de abertura de spread de crédito e entrando na de estabilização. Olhando pelo índice de crédito privado, que nós reproduzimos, observamos estabilidade nos spreads de crédito, gravitando entre 285 basis points e 295 bps para os ativos em CDI. Vamos ficando cada vez mais confiantes em dizer que estamos numa fase diferente do ciclo de crédito, uma fase de estabilidade dos prêmios, quando falamos de grandes empresas e crédito high grade.

Essa estabilidade é justamente por que passou o “medo Americanas”?
O que aconteceu neste ciclo de crédito é muito curioso. Quando fizemos nosso evento anual, em outubro de 2022, estávamos esperando alguma deterioração de crédito para este ano e alguma dispersão de performance nas carteiras de crédito porque as carteiras que tivessem exposição aos nomes mais sujeitos à piora iam performar pior e as que tivessem mais assertividade na alocação iam performar melhor. Mas um ciclo de crédito tradicional começa a morder de baixo para cima, ou seja, a pegar as empresas pequenas, depois as médias, em seguida as grandes mais alavancadas, as com rating mais baixo até chegar no topo da pirâmide. O esquisito, e que vimos acontecer no Brasil, é que ele veio de cima para baixo, por conta de Americanas e Light. Isso gerou uma confusão grande no mercado. De certa maneira, houve uma reprecificação muito rápida no crédito para grandes empresas. Em 30 dias, de 15 de janeiro a 15 de fevereiro, aconteceu uma abertura de 100, 110 basis points. Essa piora foi concentrada, algo esquisito nesse ciclo.

Dá para separar melhores e piores setores no crédito?
Generalizar setores é sempre um desafio. Muita gente fala, por exemplo, do varejo, que é muito grande. Tem empresas de e-commerce com bastante dificuldade em termos de geração de caixa, como a Via Varejo, e empresas com resultados fantásticos, como o Mercado Livre. Tem dispersão de performance nesse segmento. Os shoppings , que estão com performance super consistente. Generalizar setores é sempre difícil. Mesmo a construção civil, que é um setor que tem uma relação histórica maior com os juros, existem empresas com resultados bastante satisfatórios e outras com dificuldades, como a Tenda.

Quando se olha especificamente para o crédito, é o tamanho da empresa que conta?
O que pega, de fato, é o porte da empresa. Empresas menores estão sempre mais suscetíveis a ter dificuldade de crédito. Na história do ciclo, que vai mordendo de baixo para cima, quem conhece Tok&Stok, Cervejaria Petrópolis, Zinzane, Marisa e fez a análise de crédito desses nomes não deveria ficar chocado com essas empresas tendo dificuldades em um ciclo de alta de juros. Isso era absolutamente esperado. O que não era esperado era Lojas Americanas e Light. Foi isso que embaralhou a história. Aquelas são empresas que, em geral, têm dificuldade de geração de caixa, de identificar um claro diferencial competitivo no seu negócio e em algum momento os credores vão percebendo isso num ambiente de juros altos. Aí o capitalismo entra e, como falava o economista Joseph Schumpeter (1883-1950), a destruição criativa acontece. Os ciclos de aperto monetário fazem isso, varrem as empresas menos competitivas e deixam as empresas mais habilitadas como sobreviventes.

"Quem conhece Tok&Stok, Cervejaria Petrópolis, Zinzane, Marisa e fez a análise de crédito desses nomes não deveria ficar chocado com essas empresas tendo dificuldades em um ciclo de alta de juros"

Há expectativa de novas emissões de dívidas de empresas?
Estou esperando um segundo semestre bem restrito em termos de novas emissões aqui no mercado doméstico. Nos últimos anos, o mercado de capitais ganhou uma participação muito relevante na matriz de financiamento corporativo aqui no Brasil. Quando começamos o nosso primeiro fundo de crédito em 2014, o estoque total de títulos de crédito estava na casa de R$ 70 bilhões custodiados por fundos de investimento. Hoje, esse estoque é de cerca de R$ 800 bilhões. O mercado cresceu muito, então tem muita coisa no mercado secundário que podemos olhar e usar para compor portfólios, inclusive a liquidez do secundário está bastante alta. A média móvel de negócios no mercado secundário de debêntures está cerca de 45% acima da média diária de negócios do segundo semestre do ano passado.

Então, o mercado primário deixou de ser fundamental para os fundos?
Não dependemos tanto do estoque primário para seguir tocando os fundos. Mas, claro, há alternativas, como o mercado bancário. Estamos vendo muita operação via 4131 (empréstimo em moeda estrangeira), que é uma modalidade de financiamento onde o banco capta o funding lá fora e faz o swap em reais. O próprio mercado internacional pode voltar a reabrir. Já teve emissões da Braskem, do governo brasileiro, do Banco do Brasil e o BTG andou fazendo um road show para fazer uma emissão. Então, pode ser que o mercado lá fora volte a reabrir até voltarmos a encontrar uma janela mais favorável aqui para o mercado doméstico.

É melhor comprar essa dívida emitida lá fora?
Vivemos avaliando essas possibilidades. Pela primeira vez em nove anos estamos vendo os spreads de crédito no Brasil superiores nas debêntures aos spreads de crédito dos bonds das empresas brasileiras. Em nove anos, nunca tinha visto essa inversão. Quando isso acontece fica melhor para alocarmos aqui no Brasil e para a empresa é melhor captar lá fora. Estamos sempre na ponta contrária: a empresa quer pagar barato e queremos pegar o spread alto. Por isso, acredito que as empresas estarão olhando para fora com mais carinho e nós para o doméstico.

A JGP analisa títulos de dívida de empresas estrangeiras também? Mais para companhias americanas ou cabem argentinas nesse pacote?
Já tivemos Argentina lá atrás quando o Mauricio Macri foi eleito (2015-2019). Teve um pequeno oásis na Argentina, mas quando o negócio começou a degringolar saímos porque o nosso negócio é fazer risco de crédito. Quando o macro domina o risco de crédito, passamos para outra turma aqui dentro da gestora. Mas olhamos toda a América Latina e Estados Unidos. O que não gostamos muito de fazer são outros emergentes, como os periféricos europeus ou os emergentes asiáticos. Entendemos que não existe grande vantagem em fazer.

Dê um exemplo dessa análise internacional.
O olhar internacional é interessante porque há muitas oportunidades e sem o componente de risco Brasil. Por exemplo, teve uma emissão no ano passado da 3R, a empresa brasileira privada de óleo e gás. Vimos uma briga entre os fundos de crédito doméstico para pegar essa debênture a cerca de CDI mais 3%. Enquanto isso, olhávamos nos EUA e havia uma série de produtores de petróleo com, mais ou menos, o mesmo tamanho da 3R, mas com track record maior e um ambiente com mais segurança. Por exemplo, o governo do dia para a noite não vai colocar um imposto sobre exportação de petróleo. Então, nessa perspectiva, escolhemos os bonds da WTI, que é uma produtora americana de petróleo. O perfil é similar com o da 3R, mas esse papel lá fora ficou perto de CDI mais 6,5% sem o risco Brasil. Esse é o tipo de arbitragem que é legal fazer quando há oportunidades lá fora. No fim do dia, ambas estão sujeitas ao risco do preço do barril de petróleo, mas encontramos, às vezes, oportunidades melhores lá fora do que aqui.

"Americanas e Light foram similares na sua essência de terem problemas de governança. Americanas foi uma fraude e Light é uma situação que lá fora é chamada de willingness to pay"

O que você aprendeu, como gestor, dos casos Americanas e Light?
Os dois casos, Americanas e Light, foram similares na sua essência de terem problemas de governança. Americanas foi uma fraude e Light é uma situação que lá fora é chamada de willingness to pay (vontade de pagar). No caso de Americanas, a principal lição é que não tem atalho. O ser humano é muito condicionado a encurtar caminho, é da nossa natureza. Brigamos muito para dominar este planeta por séculos e séculos, mas não tem atalho. Quem fazia uma análise da alavancagem da Americanas pela dívida líquida Ebitda estava desconsiderando que a geração efetiva de caixa da Americanas não conversava com o Ebitda. O Ebitda da Americanas era positivo e a geração de caixa era negativa. Então, essa característica sugere uma investigação mais profunda das causas dessa discrepância. Essa é a grande lição de Americanas.

E a Light?
Na Light, a decisão maior é atenção às pessoas por trás das empresas. Temos situações no mercado de crédito, em geral, com empresas de dono. Esse dono da companhia simplesmente vira e fala que não vai pagar, vamos brigar na Justiça. Está acontecendo no México, neste momento, com a TV Azteca, do Ricardo Salinas. Todas as empresas controladas pelo Salinas estão com uma baita restrição de crédito por conta dessa atitude dele na TV Azteca. Em geral, esse risco se materializava em empresas de dono. A novidade em Light foi ter uma falta de vontade de pagar numa corporation. O capital de Light é difuso na Bolsa e ela é uma corporation regulada. Então, a maior lição é que também temos de prestar atenção com essa questão do willingness to pay nas empresas de capital pulverizado, porque isso pode partir do management, que é o que está acontecendo lá na Light.