O crédito privado encerrou 2024 com uma captação total de R$ 633,6 bilhões, segundo a Anbima. As debêntures, principalmente aquelas direcionadas ao setor de infraestrutura, foram o grande destaque, com R$ 381,4 bilhões. E esses números se tornam mais relevantes quando se olha o retorno desses ativos.

Segundo o Idex-CDI, indicador criado pela gestora JGP para acompanhar os títulos de crédito privado, o retorno nominal da categoria foi de 12,24% (até 23 de dezembro), 1,46% acima do CDI no mesmo período. Em 2023, o spread do benchmark ficou 2,53% acima do índice da asset de André Jakurski, que tem R$ 42,4 bilhões sob gestão.

“Em 2023 o Idex teve uma underperformance muito em função daqueles eventos do início do ano, primeiro Light depois Americana”, diz Alexandre Muller, sócio e gestor responsável pelos fundos de crédito privado da JGP, em entrevista ao NeoFeed.

“No ano passado, até novembro, o retorno estava positivo em todos os meses. Dezembro foi um mês em que o mercado estressou mais”, complementa. O Idex-CDI tem mais de 400 debêntures na sua composição, sendo que 88% tem rating AA- ou mais.

Este ano deve ser menos intenso em novas emissões, segundo projeção da JGP. O caminho de 2025 para os títulos de crédito privado começa arrastando toda a insegurança com a economia brasileira. Nesses momentos, o investidor tende a correr para os papéis high grade [baixo risco] em detrimento dos high yield [alto risco].

“Essa história da dispersão é trágica porque com a incerteza em relação à trajetória fiscal, à inflação e ao câmbio, ela acaba gerando redistribuição de capital”, afirma Muller.

“No fim do dia, gera mais concentração de mercado, porque as empresas mais frágeis ficam pelo caminho, ou quebrando ou sendo consolidadas”, complementa.

No ano passado, três eventos ligados ao crédito foram destaque: a recuperação extrajudicial da Casas Bahia, o chapter 11 da Gol e a recuperação judicial da Agrogalaxy. Todas elas, de uma maneira ou de outra, tiraram lições dos eventos Light e Americanas, que abriram novas possibilidades de estratégias de recovery para credores, como o debtor-in-possession financing (DIP) e os fundos de special situations.

“Essa tem sido uma transformação positiva do nosso mercado. As possibilidades de reestruturação de dívida estão ficando mais sofisticadas e isso é interessante”, diz o sócio da JGP.

Na entrevista que você lê a seguir, Muller fala sobre a perspectiva para o mercado de crédito privado no ano, quais são os setores que devem se destacar e por que o desenrolar da política pode ajudar ou prejudicar essa classe de ativos.

Há dois anos o mercado de crédito foi afetado por crises de grandes empresas privadas. No ano passado, foi a perda de confiança nos agentes públicos. O que vem agora?
O que vivemos em 2023 no mercado de crédito foi inerentemente uma consequência de um evento privado e agora tem toda essa deterioração de confiança em função do setor público. A origem naturalmente pode ser diferente, mas, agora, acho que a solução necessariamente tem que passar pelo setor público. O governo tem um papel de organização da economia muito importante. Então, a solução, na minha cabeça, tem que passar por uma coordenação política. Se você lembrar o que passamos em 2023, a solução veio justamente de um alívio do ciclo de política monetária, que havia sido apertada significativamente no pós-pandemia, de 2021 até 2022. No início de 2023 tem dois eventos privados de Light e Americanas, que tiveram seus problemas mais evidenciados a partir do aperto monetário, e a gente começa a ter, mais ou menos no meio do ano passado, uma flexibilização da política monetária.

Mas a situação do País era diferente.
Claro que em paralelo tínhamos um quadro de mais confiança na trajetória fiscal e isso tudo permitiu que via política a economia encontrasse um rumo melhor. Vai ser a mesma coisa desta vez. Essa política do antagonismo, esse negócio do ataque, do enfrentamento, isso não é papel da política. Política é a construção. Vai ser via política que vamos encontrar algum novo pacote, algum novo conjunto de medidas que permita que a trajetória da dívida pública não exploda e que a confiança dos agentes se restaure. Eu não consigo ver outro caminho.

"Vai ser via política que vamos encontrar algum novo pacote, algum novo conjunto de medidas que permita que a trajetória da dívida pública não exploda e que a confiança dos agentes se restaure"

Como você enxerga o ano: crédito sendo direcionado para as grandes empresas e as empresas menores com dificuldade maior?
É por aí mesmo. Lá fora, em crédito internacional, em portfólio de bonds, isso é o chamado dispersion trade ou trade da dispersão. Ou seja, um aumento maior do spread do high yield [alto risco] do que do high grade [baixo risco]. Quando tem muita insegurança, o investidor corre para o high grade, de empresas mais seguras, e fogem do high yield. Aí começa a abrir uma boca de jacaré, um trade de dispersão. E me parece que é o que vamos ver aqui. Já está vendo...

Quanto está esse spread?
No spread do Idex, a gente consegue ver já uma abertura de 25 basis points dentro do mês de dezembro. Mas isso não reflete o que está acontecendo. Tem empresas que abriram 500 basis points e tem empresas que praticamente não mexeram. Porque está dando muita dispersão. Agora, essa história da dispersão é trágica porque com a incerteza em relação à trajetória fiscal, à inflação e ao câmbio, ela acaba gerando essa redistribuição de capital. No fim do dia, ela gera mais concentração de mercado, porque as empresas mais frágeis ficam pelo caminho, ou quebrando ou sendo consolidadas, e as empresas maiores ficam mais fortes, elas ficam com mais pricing power, pela capacidade de repassar preço. E isso vira persistência inflacionária. Essa é a grande dificuldade do momento, a gente não consegue convergir a inflação para a meta dado todo o impulso fiscal. Tem um que trágico por trás dessa história: essa dinâmica favorece o mais forte e impacta o mais fraco.

O mercado de crédito precisa arrefecer para baixar esses indicadores?
Esse ponto é muito interessante. Não tenho dúvida que o mercado de crédito é feito pelo componente da oferta e da demanda por crédito. A demanda por crédito, geralmente, vem da vontade da economia real investir, dos empresários abrirem novas lojas, duplicarem estradas, fazer novos investimentos produtivos. E a oferta de crédito depende do apetite dos bancos, dos fundos de crédito e do mercado de capitais como um todo. Parece que o componente da demanda por crédito vai sofrer uma queda muito significativa, já atrelada a uma provável queda do investimento privado em todo esse ambiente de incerteza. Imagina o empresário vendo essa dinâmica de câmbio e de juros com uma fábrica nova para começar, que precisa de crédito, contratar equipe…

Ou seja, o ano começa com o pé no freio.
Ele vai esperar um pouco mais de segurança, de que essas variáveis econômicas não vão explodir. Toda essa volatilidade vai afugentar um pouco os investimentos, o que tende a diminuir a demanda por crédito e o volume de novas emissões no mercado de capitais em 2025.

Os títulos incentivados também estão nessa conta?
Os incentivados aparentemente não vão ter nenhum impacto ainda. Toda essa ideia de projeto de reforma de renda, aparentemente, é uma discussão em 2025 para, se aprovada, ser implementada em 2026. Então, não sei se vai ter um impacto imediato. Mas o efeito dos incentivados é uma discussão super quente. Acho que os incentivados tiveram um papel muito importante para abrir novos bolsos e dar mais competitividade nos canais de crédito. Eu como economista não consigo aceitar a hipótese de que é melhor termos um mercado de crédito mais concentrado do que um mais competitivo. As pessoas falam, ‘ah, hoje, a coisa não está legal porque tem um aposentado investindo em título de crédito. Era melhor como era antigamente em que quatro bancos concentravam a concessão de crédito'. Eu não consigo entender como isso pode ser melhor!? A competitividade dos canais de crédito, para mim, é desejável.

Qual debate caberia sobre os incentivados?
Tem toda uma discussão de suitability, que tipo de crédito pode ser distribuído para cada investidor, mas isso é uma questão de regulação, não é uma questão de estrutura de mercado. Agora, o que está errado nessa estrutura de incentivados são muitas grandes empresas emitindo títulos incentivados e empresas que, na prática, não precisam. Empresas que faturam bilhões de reais. Teoricamente esse cara não tem nenhum tipo de restrição para crédito. Ao contrário, as grandes empresas acabam tendo muito mais acesso a crédito do que as empresas menores. Acho que seria interessante uma reflexão sobre se não faria sentido ampliar a emissão dos títulos incentivados para emissoras de menor porte, que são emissores que efetivamente enfrentam uma restrição de acesso a capital.

"O que está errado nessa estrutura de incentivados são muitas grandes empresas emitindo títulos incentivados e empresas que, na prática, não precisam"

A estratégia de special situation continuará em alta?
Com certeza. Essa tem sido uma transformação positiva do nosso mercado. As possibilidades de reestruturação de dívida estão ficando mais sofisticadas e isso é interessante, é desejável do ponto de vista de preservação do valor social das companhias. Quando você faz uma reestruturação de dívida e não joga a empresa direto para uma falência, a intenção é não matar aquela instituição. A ideia é tentar fazer com que essa instituição siga operando. Os fundos de special situation estão trazendo um ferramental novo para o mercado de crédito. É como se a gente passasse a ter acesso a mais ferramentas de cirurgia por robótica para tratar dos pacientes. Antigamente tínhamos só o cirurgião sem o tomógrafo, depois de um tempo passamos a ter um tomógrafo, agora além do tomógrafo e de todo o arcabouço de exames temos um robô para nos ajudar a operar aquele paciente e tentar mantê-lo vivo. Ferramental de special sit é uma novidade realmente muito interessante nesse contexto de mais desafio econômico.

E já se usou todo o ferramental à disposição?
Não, estamos só começando. Em 2024 desenhamos pelo menos três estruturas que eu, particularmente, em 21 anos de crédito, não tinha nem visto. Porque hoje temos ferramentas como fundos de securitização, instrumentos que envolvem componentes de renda variável, como bônus de subscrição, os DIPs [debtor-in-possession financing], que são os financiamentos para empresas em dificuldades com autorização judicial no âmbito de uma recuperação judicial. São instrumentos que são novidades no mercado, mas que certamente vão poder ser usados no contexto de tentar evitar o pior para as companhias, tanto para evitar uma reestruturação descoordenada como para poder rentabilizar de forma diferenciada o capital dessa classe.

Quais setores vão ser melhores para o crédito?
Tem uma regra que dá para considerar que é a seguinte: qualquer setor que passar por um downturn, um ciclo de baixa de rentabilidade nesse Brasil de juros altos, está sob um risco maior. Agora o taxímetro para o empresário passou da bandeira dois para a bandeira três. Como aconteceu no agronegócio em 2023 e 2024, que sofreu uma pressão de margens por problemas climáticos, secas e coisas afins. O agro teve muita dificuldade no cenário de juros mais altos, e por acaso o agro até parece que vai se recuperar com esse câmbio mais depreciado. Mas, por exemplo, o setor de saúde, que desde a pandemia passa por uma pressão de margens, inspira cuidado. E tem setores como o óleo e gás que são dolarizados. Toda produção atrelada ao dólar e a uma commodity global. É um setor que vai se beneficiar com esse contexto, além de ter pouca dívida atrelada ao CDI, pois ela tipicamente é pré-fixada lá fora. É muito setor a setor. Naturalmente todo mundo vai ficar mais criterioso na seleção, vai exigir múltiplos de alavancagem mais baixos e garantias mais fortes, mas as dinâmicas setoriais elas continuam acontecendo.

Há algum que você goste mais e goste menos?
Com certeza setores que tenham a capacidade de repasse de preço. Por exemplo, todo o setor de utilities, as empresas de energia elétrica, de rodovias, são empresas que se a gente ingressar em um cenário de inflação acelerada por descontrole fiscal, você tem já uma dinâmica prevista de repasse de preço em tarifa. Então são setores menos expostos. Setores que estão num ambiente competitivo pior ou eventualmente pressionados por questões específicas vão ter mais dificuldade.

Qual é o seu melhor cenário para 2025 e o seu pior cenário?
O meu melhor cenário certamente seria ter uma segunda rodada de contenção de aumento de gastos, que pudesse restabelecer um pouco a confiança dos agentes e retirar um pouco desses prêmios de risco que estão implícitos nos ativos. E o meu pior cenário certamente seria um cenário de abandono completo de qualquer compromisso fiscal ou um cenário de antagonismo político, que só piora as coisas e não uma construção política que sempre se faz necessária. Aí falar sobre o que poderia ser a confiança dos agentes num cenário desse é até difícil.

E a expectativa com Gabriel Galípolo à frente do Banco Central?
É difícil fazer um pré-julgamento, mas temos uma confiança muito grande na instituição Banco Central. Acreditamos que o BC vai continuar cumprindo a sua função de ser uma defensora das metas de inflação. E vai continuar fazendo o uso de uma política monetária necessária para que as metas sejam cumpridas. Agora, toda essa dinâmica de incerteza e como o BC vai utilizar da política monetária, ela pode transcorrer em um cenário onde os agentes tenham suas confiança restabelecidas ou em um cenário onde se tem uma crise de confiança. Restaurar a confiança, na minha opinião, é papel da política. A política tem que entrar em campo e entregar isso para o País.