Quando ficou claro que as suas 176 unidades de ensino superior espalhadas por todos os Estados brasileiros teriam de ser fechadas, a Kroton, divisão de ensino superior da Cogna, tomou uma decisão arrojada. Em 24 horas, teria de colocar todos os 350 mil alunos presenciais para estudar no modelo de ensino a distância (EAD).

Pode parecer uma decisão fácil. Afinal, a Kroton já contava com 470 mil alunos estudando online. Mas era uma engenharia complexa, facilitada por algumas questões.

A primeira delas é que todos os alunos do grupo educacional já tinham pelo menos 20% da carga horária online. Portanto, já contavam com login, senha e acesso ao ambiente virtual.

O desafio era preciso migrar 100% do conteúdo do curso para a nova plataforma. O próximo passo foi treinar professores para gravar suas vozes nos PowerPoints que apresentavam em salas de aula. Além disso, os docentes passaram também a produzir vídeos, de 10 a 12 minutos, com seus próprios celulares, com os resumos dos conteúdos.

A parte final do processo de migração foram as aulas online, com os mesmos professores no mesmo horário da aula presencial. Neste caso, a Kroton usou a ferramenta Teams, da Microsoft, para conectar todos os alunos.

Essa operação de guerra foi comandada por Roberto Valerio, CEO da Kroton, um executivo que está à frente da divisão de ensino superior da Cogna.

“Na média, tínhamos mais ou menos 130 mil acessos diários, ou seja, alunos do presencial que acessavam diariamente o ambiente virtual”, disse Valerio, em entrevista exclusiva ao NeoFeed. “Esse número já pulou para 250 mil na primeira semana. Agora está na faixa de 300 mil diários.”

Não são poucos, entretanto, os desafios de Valerio por conta desse novo cenário em que 100% de seus alunos de ensino superior estão online. Ele não sabe ainda qual será a taxa de inadimplência a partir de agora. Mas se prepara para oferecer uma linha de crédito para aqueles que precisarem.

Não está também nos planos da Kroton reduzir mensalidades. O grupo educacional, cujo valor de mercado é de R$ 6 bilhões, alega que seus custos aumentaram por conta do Covid-19.

“Não temos nenhum plano de reduzir mensalidades porque não temos redução de custos”, afirma Valerio. “Todos os nossos professores presenciais continuam trabalhando e recebendo salários, assim como o coordenador do curso e o diretor da unidade.”

No quarto trimestre de 2019, a Cogna reportou um prejuízo líquido de R$ 168,3 milhões. O grupo educacional aumentou também a provisão para créditos de liquidação duvidosa em R$ 181 milhões.

O motivo? As incertezas ligadas à pandemia do Covid-19 na capacidade de pagamento dos alunos. A seguir, a entrevista de Valerio ao NeoFeed:

A Kroton migrou todos os seus alunos presenciais para o ensino a distância?
Nós temos 820 mil alunos no total. Desses, 350 mil são presenciais. E os outros 470 mil são de ensino a distância (EAD). Desde 16 de março, quando fechamos as nossas unidades, os alunos presenciais estão também estudando via educação a distância. Em menos de 24 horas, viramos todos esses alunos para o EAD.

Como fizeram isso?
É aí que entra a experiência que temos com educação a distância há 15 anos. Somos, na prática, os pioneiros com a educação a distância no Brasil. A Unopar, que é nossa maior marca, foi a primeira universidade a desenvolver isso. Já formamos mais de 1 milhão de alunos através da educação a distância. Hoje, 100% dos nossos alunos, mesmo os presenciais, tinham alguma parte de educação a distância. No ano passado, até 20% da carga horária dos alunos dos cursos presenciais poderia ser a distância. O que significa dizer que todos os nossos alunos já tinham um ambiente virtual de aprendizagem, um login, uma senha e estavam acostumados a assistir a videoaulas, a consultar biblioteca e a fazer exercícios num ambiente virtual. Só que faziam para 20% da carga horária.

"Já formamos mais de 1 milhão de alunos através da educação a distância"

Como foi implementado?
Temos 32 mil disciplinas produzidas em EAD. Não quero entrar muito na tecnicidade, mas uma disciplina é um conjunto de conteúdos que chamamos de objetos de aprendizagem. Já tínhamos produzido 480 mil objetos de aprendizagem diferentes, seja um exercício, um pequeno vídeo, um podcast. Tudo isso estava pronto. Por que foi simples fazer? Já tínhamos a plataforma e os conteúdos, era só habilitar os conteúdos na plataforma que o aluno já estava acostumado a usar.

Teve algum curso que foi mais difícil de fazer essa virada?
Sim. Tem um curso que tem uma especificidade. É o de medicina. Ele foi o mais complexo. Até porque não era permitido pelo MEC (o ministério passou a permitir EAD no curso de medicina). Então, essas atividades são feitas através de aulas gravadas pelos professores e também por transmissões ao vivo. E, ao longo dos dias, fomos implementando e subindo conteúdos à medida que íamos produzindo.

Como tem sido o uso por parte dos alunos?
Como eles já estavam acostumados a usar, observamos um aumento de engajamento e de acessos neste ambiente virtual. Na média, tínhamos mais ou menos 130 mil acessos diários, ou seja, alunos do presencial que acessavam diariamente o ambiente virtual. Esse número já pulou para 250 mil na primeira semana. Agora está na faixa de 300 mil diários. Como tenho 350 mil alunos, quase todos entram uma vez por dia para fazer as aulas. Dentro do ambiente, a quantidade de cliques e atividades aumentou 81%.

Como são as aulas dos cursos?
Já temos as videoaulas e os conteúdos pré-gravados para a educação a distância. Apesar de a nossa unidade presencial estar fechada, nosso professor está em casa e continua trabalhando. Ele está gravando aulas e tem usado duas metodologias. Uma delas é bem simples: o próprio PowerPoint que ele usa para dar algumas aulas. Ele grava uma voz em cima desses slides e sobe no ambiente virtual para o aluno assistir a essa aula. Ensinamos também eles a fazerem pequenos vídeos. Em vez de dar uma aula de uma hora, eles gravam vídeos de 10 a 12 minutos, no próprio celular, e postam. Em uma semana, criamos também uma ferramenta, onde os professores podem dar aulas ao vivo. Nos mesmos horários em que ocorreriam as aulas presenciais, o professor entra ao vivo e dá a aula.

Como é o acompanhamento do aluno e como serão as provas?
Temos uma metodologia chamada de avaliação continuada. O que isso quer dizer? O aluno não só faz a tradicional prova bimestral, como também a avaliação continuada. Como a metodologia e os conteúdos estão no ambiente virtual, à medida que o aluno faz os exercícios, acompanhamos as entregas e o desempenho. Acompanhamos o engajamento, isto é, se ele está fazendo os exercícios nos momentos em que deveria e os resultados desses exercícios para criar uma ponderação de nota. Temos como acompanhar semanalmente o engajamento do aluno através dessa ferramenta.

É uma ferramenta própria?
Sim, a plataforma que usamos é a Moodle, que é open source. Mas ela foi incorporando várias coisas. Há quase quatro anos, por exemplo, adquirimos uma startup de adaptive learning, um sistema que entende a sua resposta, vê se você está acertando ou não e te propõe novos conteúdos para aprender. Essa aquisição plugamos ao Moodle. As transmissões de aulas ao vivo dos professores estamos fazendo através do Microsoft Teams.

É meio que um chavão, mas toda crise é também uma oportunidade para alguns setores. A educação online sairá fortalecida dessa crise?
Acredito que sim. Mas tenho uma crença que o equilíbrio está sempre na educação a distância com a “presencialidade”. O aluno presencial, em geral, tem um preconceito por desconhecimento das experiências digitais. E esse momento vai servir para romper essas barreiras. Se nosso aluno presencial tinha algum preconceito com a educação a distância, ele vai cair. Mas não significa que o presencial vai deixar de existir. Até porque muitos dos nossos cursos de educação a distância, como o de enfermagem e o de engenharia, têm carga horária presencial por conta de laboratórios e estágios nas unidades básicas de saúde.

"Se nosso aluno presencial tinha algum preconceito com a educação a distância, ele vai cair"

A Kroton vai reforçar os investimentos em educação a distância?
Sempre fizemos investimentos em educação a distância. Vamos prosseguir com nosso roadmap de transformação digital, mas não posso te dizer que vai aumentar muito mais.

A Kroton tomou medidas para reduzir custos?
Ao contrário. Nesse processo todo, nós temos, inclusive, gastado até mais. Tivemos que aumentar a infraestrutura dos ambientes virtuais e comprar mais banda de internet.

Vocês são, então, uma rara empresa que não está tomando medidas para preservar o caixa.
Olhando para o futuro, vamos tomar sim medidas para reduzir custos. Até porque existe uma incerteza do que vem pela frente. Ninguém tem essa resposta. O que estamos fazendo é: todos os investimentos que podem ser segurados, estamos revisando. Estamos fazendo conta de quanta economia de fato gera uma unidade quando ela está fechada. Ela é pequena porque continuamos pagando os professores, mas economizamos com energia elétrica e com água. Todas essas contas estão sendo feitas. E acredito que não tenha um empresário no Brasil que não esteja fazendo isso. Mas é importante dizer que temos uma posição de caixa bastante confortável. Fizemos um follow on em fevereiro. Temos R$ 3 bilhões no caixa da empresa, o que nos dá tranquilidade para tomar decisões inteligentes sem desespero. Cada setor tem uma situação específica. No varejo, quando se fecha às portas, para de entrar dinheiro. No nosso caso, o aluno ainda está estudando e vamos ter mais informações à medida que os meses passam para saber se vai ter aumento de inadimplência ou não.

Você ainda não conseguiu fazer a conta do impacto no negócio, como o número de inadimplência ou de novas matrículas?
Não. Temos cenários, mas eles são ainda com pouco “data points”. Precisamos de mais “data points”. Vou te dar um exemplo de porque não temos. Fechamos as unidades na segunda quinzena de março. Os pagamentos já tinham sido feitos, porque os vencimentos são na primeira quinzena. Precisamos ver o que vai acontecer com os pagamentos daqui para frente.

A Kroton está estudando algum plano para aliviar os pagamentos das mensalidades dos alunos?
A resposta é sim. Já fazemos financiamentos. Hoje, 16% da base de alunos do presencial é financiada através de um programa chamado PEP, que é um parcelamento. Eles pagam 50% agora e 50% depois de formado. Ou 30% agora e 70% depois de formando. Temos esse produto financeiro dentro de casa. Não vai ser novidade para nós. O que vamos fazer é, dependendo das necessidades dos nossos alunos, aumentar esse nível de financiamento para que ele possa passar por essa fase. Não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos que é transitório.

"Hoje, 16% da base de alunos do presencial é financiada através de um programa chamado PEP, que é um parcelamento"

É uma nova linha de crédito que vocês vão anunciar? O que há de concreto nesse plano?
O concreto é isso. Temos uma linha de financiamento própria. Usamos o nosso balanço para financiar o aluno. Vamos continuar fazendo isso. Em que dimensão? Não sei ainda.

Você comentou sobre redução de investimentos. De que ordem?
Essa informação não posso abrir. Até porque ela não é final. Temos vários cenários.

As mensalidades dos cursos a distância são menores do que os presenciais. E a Cogna (holding que controla a Kroton), em teleconferência com analistas, informou que não pretende reduzir as mensalidades. Por quê?
Não temos nenhum plano de reduzir mensalidades porque não temos redução de custos. Todos os nossos professores presenciais continuam trabalhando e recebendo salários, assim como o coordenador do curso e o diretor da unidade. O que entendemos é que não houve uma mudança de modalidade. O que houve é uma transição para uma solução temporária através da educação a distância. Ao contrário, estamos gastando mais dinheiro para manter toda a estrutura.

Com qual perspectiva que a Kroton trabalha para o retorno das aulas presenciais?
Trabalhamos com uma perspectiva de retornar as atividades em julho. Acompanhamos diariamente e seguimos as recomendações da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde. Então, isso pode mudar. O plano inicial é abril, maio e junho fechado e retornando as atividades presenciais em julho.

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