No fim de 2020, o presidente da GM América do Sul, Carlos Zarlenga, recebeu o sinal verde de Detroit para retomar os investimentos que haviam sido congelados devido à pandemia. Zarlenga anunciou no dia 5 de janeiro que a General Motors do Brasil investirá R$ 10 bilhões até 2024 exclusivamente no Estado de São Paulo. No dia 11, veio a notícia de que a Ford Brasil utilizará o equivalente a 41% desse total (R$ 4,1 bilhões) para encerrar sua produção de veículos no país.
Afinal, o Brasil é um bom lugar para investir na fabricação de carros ou não? A pergunta é válida porque, além da Ford, mais duas empresas deixaram de fabricar carros nos últimos tempos: a Audi (que não anunciou uma saída) e a Mercedes. Resposta? Podemos dizer que o Brasil não é bom nem ruim, mas também não é neutro.
Para sobreviver em um país constantemente em crise econômica, com o dólar cotado a mais de R$ 5 e com a classe média descapitalizada, é preciso ter o produto certo para ganhar dinheiro, sem abandonar totalmente o consumidor tradicional que dá volume (e reduz custos na escala), mas sempre com um olho no cliente de alto poder aquisitivo.
Para o caso específico da GM e seus R$ 10 bilhões, a saída de um concorrente histórico e da mesma origem, dono de 7,1% do mercado, abre algumas possibilidades. De cara, a família Chevrolet Onix se candidata a ser a maior beneficiária do espólio de 93 mil carros que será deixado pelo Ford Ka (hatch e sedã), além de 24 mil EcoSport no segmento de SUV compacto (que dificilmente serão herdados pelo Chevrolet Tracker, devido ao seu preço elevado).
O carro está se tornando um artigo de luxo no Brasil. Para refazer o caixa que a pandemia minguou e dar conta do alto custo dos produtos eletrônicos, que os consumidores exigem, a Chevrolet aumentou numa canetada só o preço de 51 de seus 56 carros. Quando é possível, agrega-se valor; quando não, apenas se repassa o preço ao cliente.
Por isso, apesar da atraente oferta do espólio dos carros da Ford (que poderão ser conquistados com campanhas no varejo, onde a Chevrolet reina), o foco não será no segmento popular, mas sim no lucrativo negócio daquela que foi a melhor ideia da década anterior: a picape monobloco Fiat Toro. Zarlenga sabe que a linha Chevrolet está defasada no segmento de picapes. É vice-líder na categoria de picapes médias com a S10 (atrás da Toyota Hilux), mas isso é pouco para as pretensões da marca no Brasil.
Com tíquete médio de R$ 149 mil e 54 mil vendas/ano, estimamos que a picape Toro deixou para a Fiat, somente em 2020, cerca de R$ 800 milhões de lucro, considerando uma margem operacional de 10%. Por isso, a Chevrolet vai trocar um resultado operacional estimado de R$ 52 milhões com a picape Montana por um produto mais caro e muito mais rentável. A nova Montana (que pode ter outro nome) será o quarto veículo produzido na plataforma GEM (Global Emerging Market), desenvolvida junto com a GM chinesa.
Maior e mais versátil, do ponto de vista de usabilidade, pois terá cabine dupla e será baseada no Tracker, a nova picape Chevrolet terá enorme potencial, mas não a capacidade de derrubar a Toro. Falta à GM um motor a diesel menor do que o 2.8 utilizado pela S10. Este é o grande diferencial da Fiat Toro, pois tornou a picape cabine dupla a diesel mais acessível.
Nas configurações 4x4 a diesel, a Toro é vendida em cinco versões de R$ 148 mil a R$ 183 mil. Assim, a nova Montana só conseguirá concorrer na faixa de R$ 107 mil a R$ 127 mil, onde estão as versões flex da Toro. De qualquer forma, a GM trocará a faixa atual de R$ 78 mil da pequena Montana por um patamar superior, pois uma Montana maior atuará na categoria de picapes compactas, mais lucrativa.
As picapinhas da Chevrolet têm enorme tradição no Brasil e a GM já produziu 750 mil delas. Começou com a Chevy 500 (1983 a 1985), seguiu com o Corsa Pick-up (1995 a 2003), passou pela Montana de primeira geração (2003 a 2010) e agora está na Montana de segunda geração (desde 2010). Porém, este segmento foi mal explorado, nos últimos tempos, devido à necessidade de modernizar a linha de produtos, o que foi feito com o lançamento do Onix/Prisma original e com as novas gerações do Cruze, do Onix e do Tracker.
Outra grande oportunidade para a rentabilidade do negócio é o boom provocado pela nova geração de gestores do agronegócio no segmento de picapes aspiracionais. Para além das picapes médias tradicionais, as picapes Full Size americanas se tornaram um novo objeto de desejo para esse público. Por isso, a GM vai trazer do México a Chevrolet Silverado 1500, com um motor a diesel de 281 cavalos e poderá posicioná-la entre a Chevrolet S10 e a Ram 1500 (da recém-criada Stellantis). Isso significa um preço de venda entre R$ 224 mil e R$ 377 mil, ou seja, baixo volume e alta lucratividade.
O quinto carro da plataforma GEM será o sucessor do Chevrolet Spin, baseado no Chevrolet Orlando chinês. A ideia é oferecer um veículo familiar crossover, um meio-termo entre uma minivan e um SUV. Esse carro não tem muito volume, mas é estratégico para a GM porque é a opção mais barata para um automóvel de sete lugares e poucas marcas atuam nesse nicho. Quem atua, cobra caro por SUVs grandes. O sedã Cobalt já saiu de linha e o mesmo destino aguarda o Cruze, que é produzido na Argentina.
Aparentemente, o cardápio de produtos para escolha de Zarlenga é vastíssimo, pois ele tem à sua disposição um verdadeiro conglomerado de marcas: Chevrolet, Buick, GMC, Cadillac, Holden, Baojun e Wuling. Poderia, por exemplo, trazer dos EUA uma poderosa picape da GMC, como a Sierra, ou um SUV de altíssimo luxo da Cadillac, como o Escalade. Mas não é bem assim. Ao contrário das antigas FCA e PSA (agora unidas na Stellantis), que apostaram em várias marcas – como Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e Ram –, a GM vai manter 100% de seu foco na marca Chevrolet para o mercado brasileiro.
Haverá, isso sim, uma renovação de produtos, na qual podemos esperar novas gerações para a picape S10 e para o SUV TrailBlazer, e uma aposta cada vez maior em tecnologia. Nos EUA, a GM acaba de ampliar seus investimentos do ciclo 2020-2025 para US$ 27 bilhões. No mercado americano, a aposta será total em carros elétricos e autônomos, como o Bolt EUV, que será um crossover do Bolt (já vendido no Brasil). Tanto que até o logotipo da empresa foi modernizado.
Uma nova plataforma, Ultium, permitirá que os novos carros elétricos da Chevrolet tenham alcance de 724 km com uma carga completa. Para além disso, o GMC Hummer EV, um monstro 100% elétrico capaz de se mover até lateralmente, foi desenvolvido em apenas 26 meses – e isso passa a ser o padrão. Essas novidades vão chegar ao Brasil a conta-gotas, devido à penúria da renda média do consumidor e de uma taxa de câmbio quase impraticável para quem precisa importar produtos ou insumos. Parece fácil, mas ter R$ 10 bilhões para investir não significa necessariamente que será fácil.
Sergio Quintanilha é editor-chefe do site Guia do Carro. Trabalhou nas revistas Quatro Rodas, Carro, Carro Hoje, Motor Quatro e Motor Show. Atua na cobertura do setor automotivo desde 1989 e atualmente desenvolve uma tese de doutorado na USP sobre as transformações no significado do automóvel.