Berlim - Em tempos de coronavírus, “Chernobyl”, da HBO, figura praticamente em todas as listas com as séries mais recomendadas durante a quarentena.

À medida que o número de mortos por Covid-19 aumenta no mundo, impossível não perceber alguns paralelos com o pior acidente nuclear da história, ocorrido em 1986, na Ucrânia. Principalmente no que diz respeito ao embate entre a ciência e os interesses políticos.

Em março, o deputado Eduardo Bolsonaro citou Chernobyl para culpar a China pelo coronavírus, afirmando que mais uma vez “uma ditadura preferiu esconder algo grave” – o que quase provocou uma crise diplomática entre o Brasil e um de seus maiores parceiros internacionais.

Enquanto isso, o presidente americano Donald Trump negava a gravidade da pandemia, por ela ameaçar os seus planos de reeleição, e a mídia se referia ao Covid-19 como a “Chernobyl de Trump”, incluindo os jornais The Washington Post e The New York Times.

O sueco Stellan Skarsgård, vencedor de um Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante por “Chernobyl”, entende o motivo do “revival” da série – disponível atualmente na plataforma HBO GO.

Afinal, ela resgata não só as consequências da explosão de reator na Ucrânia sob o domínio soviético, mas das medidas tomadas posteriormente, contrariando as análises científicas.

“Precisamos ter em mente que é sempre a população que paga o preço pelas decisões dos governos, sobretudo as mais cínicas tomadas em nome de ‘um bem maior’’’, diz o ator de 68 anos, em entrevista concedida ao NeoFeed, na última edição do Festival de Cinema de Berlim, pouco antes de a Alemanha anunciar o distanciamento social.

“Precisamos ter em mente que é sempre a população que paga o preço pelas decisões dos governos, sobretudo as mais cínicas tomadas em nome de ‘um bem maior’’

A declaração de Skarsgård, o ator mais conhecido da Suécia no cenário internacional, sobretudo por “Mamma Mia!” (2008), “Millennium - Os Homens Que Não Amavam as Mulheres” (2011) e por viver o Dr. Erik Selvig nos filmes da Marvel, talvez possa ser aplicada ao comportamento da China.

O país é acusado de ter administrado o risco político, temendo uma desestabilização do regime comunista, no início do surto, em Wuhan, em dezembro passado. Conforme relatório que o setor de inteligência dos EUA entregou nesta semana à Casa Branca, a China teria escondido a extensão do surto por lá.

Ao subnotificar o número de casos e de mortes no primeiro epicentro da pandemia, para preservar a imagem que o regime quer projetar internacionalmente, o país teria adiado e prejudicado a resposta mundial ao vírus.

Conforme relatório que o setor de inteligência dos EUA entregou nesta semana à Casa Branca, a China teria escondido a extensão do surto por lá

Skarsgård conta que Boris Shcherbina (1919-1990), seu personagem em “Chernobyl”, se deparou com uma situação burocrata semelhante como vice-presidente do Conselho de Ministros da então União Soviética. Como as autoridades estavam determinadas em abafar a verdade, foi de responsabilidade de Shcherbina limpar a bagunça.

“O homem que passou a vida inteira trabalhando dentro do sistema, defendendo-o, precisou questionar o sistema, reconhecendo que ele não era tão perfeito como diziam”, afirma, lembrando que Shcherbina foi apontado inicialmente pelo Kremlin para liderar os inquéritos sobre o desastre.

Tão grave quanto a explosão do reator 4 em si foi o modo irresponsável com que as autoridades soviéticas negaram e tentaram acobertar o ocorrido. Isso custou a vida de milhares e deixou outros milhares com sérios problemas de saúde, incluindo câncer.

Ao final da série, de cinco episódios, os créditos informam que o número de mortos oscila entre 4 mil e 93 mil, dependendo da fonte. “Nunca saberemos o número real. A lição valiosa para aprender aqui é o perigo dos sistemas que se julgam infalíveis. A situação é a mesma quando uma religião ou o nacionalismo de um país vai longe demais.”

Os interesses políticos durante uma crise devem sempre ser questionados, segundo Skarsgård, que inicialmente queria ser diplomata. “Quando eu era criança, o secretário-geral das Nações Unidas (ONU) era Dag Hammarskjold (1905-1961), um sueco que morreu na queda de um avião, provavelmente provocada por mercenários (durante viagem para discutir o cessar-fogo no Congo)”, diz ele.

Skarsgård afirma que esse fato o deixou “com uma ideia equivocada do que significava ser um diplomata. Eu achava que eles eram heróis que salvavam o mundo, o que poucos realmente fazem. A maioria é apenas megafone para os governos que representam.”

Embora se interesse até hoje por política, Skarsgård não se imagina tendo sucesso nessa carreira. “Eu possivelmente seria melhor que um Trump, mas, por outro lado, apresentaria algumas fraquezas.” Qual delas? “A de jogar irresponsavelmente algumas ideias no ar, esperando que o tempo se encarregue de provar que ele estava certo”, conta, rindo.

No caso da pandemia, Trump voltou atrás, interrompendo a sua campanha inicial de negação do Covid-19 e da emergência na área de saúde pública que ele representa. Por ser um ano eleitoral, especialistas apontam que a atitude refletia o medo de Trump de ver a sua campanha prejudicada, já que os eleitores historicamente culpam quem está no cargo por uma eventual recessão econômica.

Já o presidente Jair Bolsonaro aparentemente ainda é o único a seguir pela contramão, desmoralizando o que a ciência prega, ao defender o término do isolamento social e classificar o momento de “histeria”.

“Vivemos em um mundo assustador, em parte pelo avanço desses líderes populistas de direita aparecendo em todo o lugar”, afirma Skarsgård. O que mais consola o ator é saber que os líderes vêm e vão, como prova Berlim, “pelo simples fato de estar de pé”.

“Esta cidade foi totalmente devastada durante a Segunda Guerra mundial, em uma das piores tragédias humanas que o mundo já viu, e hoje estamos aqui de novo.”

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