A cidade de Cupertino, na Califórnia, tem pouco mais de 60 mil habitantes: um município pequeno, mas grande o suficiente para acomodar visões de mundo bastante opostas.

Se por um lado a região abriga a sede da Apple, uma das mais poderosas empresas do mundo, hoje avaliada em US$ 1,4 trilhões, do outro recebe também pensadores que se opõem ao capitalismo e defendem a regulamentação das big tech, como a filósofa Cynthia Kaufman.

Declaradamente de esquerda, a americana de 60 anos é professora da Faculdade De Anza, onde lidera o Instituo Vasconcellos pela Democracia em Ação, e onde acompanha sem medo as reações a suas ideias quase sempre polêmicas.

Autora de três livros, Kaufman lançou sua primeira obra, "Getting Past Capitalism: History, Vision, Hope", sem tradução para o português, em 2012. Ali, a docente mostra algumas alternativas já em prática a esse sistema "insustentável" de busca pelo lucro a qualquer preço.

Em 2013, foi a vez de publicar "Action: Relevant Theory for Radical Change", uma espécie de dossiê com algumas das teorias usadas por ativistas como ela, que atua em causas de igualdade social, de gênero e, mais recentemente, em causas ambientais também.

Agora, a professora e ativista se prepara para a chegada de sua mais recente obra, o livro "Challenging Power – Democracy and Accountability in a Fractured World", que deve ganhar as prateleiras americanas em junho deste ano.

Antes mesmo de ser lançado, o livro já vem criando uma enorme polêmica entre os acadêmicos por criticar o capitalismo e a democracia justamente no país que é símbolo do capitalismo e tão afeito a sua democracia e instituições.

Nesta entrevista ao NeoFeed, a professora falou sobre suas ideias sobre democracia, capitalismo e responsabilidades. Acompanhe:

Como nasceram a teoria e as ideias por trás deste livro?
Comecei a minha pesquisa há seis anos, quando percebi que o poder estava fora de controle e que o nosso sistema democrático não sabe lidar com essa realidade.

E alguma coisa mudou nesse tempo?
Acho que o cenário se agravou, porque as pessoas estão perdendo a fé na democracia e estão descrentes de que os mecanismos de controle exerçam sua função. 

Mas muita gente não compartilha dessa visão de que a democracia está sob ameaça…
Acho que as pessoas posicionadas à direita não ligam muito para a democracia, daí o avanço do autoritarismo em diferentes partes do mundo – inclusive no Brasil, com a eleição do Bolsonaro. Tenho a impressão de que alguns grupos impõem uma visão pessoal na política, elegendo essas "figuras paternas" que se dizem capazes de deixar tudo bem para todo mundo.

E você não acha que o entendimento sobre o que é democracia mudou também?
Tento explicar no livro que não se pode pensar na democracia apenas como um governo representativo, porque vivemos num tempo em que o poder sequer passa por essa esfera – ele está nas mãos das multinacionais. Esses conglomerados transcenderam os governos e, em muitos casos, falam mais alto que os eleitos. Como em questões ambientais, por exemplo: muitas regulamentações e acordos são feitos de acordo com os interesses dessas empresas. 

Então como você explicaria a democracia?
Democracia é ter voz sobre as coisas que impactam sua vida, e isso significa participar das decisões, quer elas passem pelo governo ou não. No final das contas, temos apenas que fazer com que as pessoas e as organizações que detêm o poder sejam e se sintam responsáveis.

Como podemos colocar isso em prática?
Os movimentos sociais e a imprensa são dois mecanismos de extrema importância para isso. 

"Minha experiência como educadora me mostrou que as pessoas acreditam naquilo que lhes convêm e, ao mesmo tempo, penso que elas são facilmente manipuladas"

Você acha que essa distância entre ideia e prática passa pela educação e que a raiz de certos desentendimentos esteja no conhecimento?
Minha experiência como educadora me mostrou que as pessoas acreditam naquilo que lhes convêm e, ao mesmo tempo, penso que elas são facilmente manipuladas. Se você olhar para os Estados Unidos, existe uma razão pela qual certos grupos apoiaram e apoiam Donald Trump: são, em sua maioria, pessoas brancas que abraçaram a narrativa de que estão perdendo espaço e precisavam ser notados. Mas minha crítica não é partidária. Os democratas, por exemplo, venderam o país para Wall Street. E as pessoas sabem disso. Ainda que eu culpe a extrema direita por muita coisa, também culpo o mainstream corporativista liberal. Em nome de justiça, democracia e igualdade, eles negociaram o país. As pessoas perdem a esperança com razão, porque fica parecendo que não há saída. 

Acha que uma simples mea culpa da esquerda é suficiente?
Uma das coisas que me motivou a escrever este livro é a preocupação que tenho com o fato de a esquerda não se responsabilizar. Temos que nos policiar também. Só porque nos posicionamos a favor da igualdade, da justiça social e outras pautas associadas à esquerda, não significa que a realidade vai refletir nossa crença: precisamos desenvolver formas de mensurar e validar nossas ações. A esquerda não faz um bom trabalho neste sentido. 

E isso piorou com a internet?
Acho que antes, com as editoras e jornais, havia sempre um filtro, alguém para legitimar as notícias e reter as fake news. Com a internet, isso mudou completamente. A vantagem é que agora nem sempre temos o interesse de uma grande corporação mandando e desmandando na imprensa. Agora não há nenhuma barreira e nenhum filtro, o que é igualmente empolgante e assustador.

Acha que as grandes empresas de tecnologia devem ser regulamentadas?Elas precisam, sim, ser reguladas. Os europeus já estão trabalhando neste sentido. Acho ridículo que o Facebook pode comprar todos os seus concorrentes e desviar das leis anti-monopólio que temos aqui. Quinze anos atrás, quando o Vale do Silício engatinhava, a internet parecia uma liberdade, conexão e um mundo de possibilidade para furar estruturas autoritárias. 

"O capitalismo transformou tudo em commodity. O Google, que era uma empresa gente boa, só disposta a fazer o bem, virou esse monstro que é agora – tudo por conta de empresas do tipo venture capital"

E o que mudou?
Aí chegou o capitalismo e transformou tudo em commodity. O Google, que era uma empresa gente boa, só disposta a fazer o bem, virou esse monstro que é agora – tudo por conta de empresas do tipo venture capital.

O capitalismo se transformou nesse "bicho papão" só agora?
Não, o capitalismo já era uma besta quando começou o colonialismo e a escravidão. 

Você fala do capitalismo como uma oposição à democracia...
Sim, eu acho que o capitalismo e a democracia são completamente incompatíveis, porque capitalismo é, fundamentalmente, colocar o lucro à frente de outras pessoas ou decisões. 

Sendo assim, todas as batalhas e conflitos nos quais os EUA se envolveu com outros países sob a justificativa de que aquelas não eram nações democráticas…
Dizíamos que estávamos lutando pela democracia, mas era pelo capitalismo…

Você é contra o mercado?
Não, nem acho que o mercado seja ruim: acho que você deve poder comprar e vender o que quiser, só acho que o mercado também precisa de regras. Na Dinamarca ou na Suécia, por exemplo, existe mercado e capital, mas ambos são domados por governos, com taxas e leis. 

"Nem acho que o mercado seja ruim: acho que você deve poder comprar e vender o que quiser, só acho que o mercado também precisa de regras"

A luz de tudo isso, você está otimista com o que está por vir? 2020 é ano de eleição presidencial nos EUA.
Difícil prever qualquer coisa agora. Pode ser que estejamos a caminho de uma era de fascismo, ou pode ser que esses temores caiam por terra. Temos que estar atentos e, sobretudo, aposentar essa ideia passiva de governo, achando que a ação é terceirizada e que o poder pertence somente a ele. O governo é só uma das locações por onde o poder deve passar. 

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